“O
Enigma do Horizonte” (Event Horizon, 1997) é uma ficção científica curiosa. Mal
recebida pela crítica, a produção de Paul Anderson, que segue a linha de terror
sci fi iniciada por “Alien” em 1979, junta alusões a clássicos como “Solaris”
de Tarkovsky e “2001” de Kubrick. Mas por trás de camadas de explosões e
clichês de terror espacial, há uma interessante combinação de física e
metafísica, Cosmologia e Teosofia: um portal dimensional que curva o
tempo-espaço não nos levará para novos mundos ou dimensões. Apenas revelará os
nossos infernos íntimos, capazes de criar mundos etéricos que podem nos
aprisionar. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
No livro Uma Breve História do Tempo, o físico
Stephen Hawking define o “horizonte de eventos” como a região fronteiriça de um
buraco negro, a fronteira da região do espaço-tempo a partir da qual não é
possível escapar. E Hawking comenta: “Pode-se dizer sobre o horizonte de
eventos a mesma coisa que o poeta Dante disse da entrada no Inferno: Vós que
entrais aqui, abandone todas as esperanças”.
Esta frase
foi o ponto de partida do roteiro do filme O
Enigma do Horizonte do diretor Paul Anderson (Resident Evil, Alien versus
Predador). Numa audaciosa combinação do filme Solaris (1972) de Andrei Tarkovsky com o terror de Clive Barker de Hellraiser (1987) e com muitas alusões
visuais ao clássico 2001: Uma Odisséia no
Espaço de Kubrick. Paul Anderson tentou se enveredar por um subgênero da
ficção científica iniciado por Alien de Ridley Scott em 1979: o terror sci fi,
típico subgênero pós-moderno que abandona o otimismo futurista da ficção
científica para sugerir um destino sombrio do progresso tecnológico – lá no futuro o homem
encontrará monstros, predadores e o horror.
A frase falada de forma sombria pelo cientista que projetou a tecnologia que é o tema
principal do filme (um buraco negro artificial), é
sintomática: “Eu criei a Event Horizon para alcançar as estrelas, mas ela nos
levou para algo muito, muito, muito mais além...”.
O filme
O Enigma do Horizonte ficou marcado pela crítica como uma produção que
prometeu muito mais do que poderia entregar. O filme foi reduzido em meia hora
pela Paramount e no seu relançamento em DVD em 2006 alguns fotogramas dessas
sequências cortadas e perdidas da edição original foram divulgadas, imagens
sangrentas e de embrulhar os estômagos mais fracos. O que demonstra a pretensão
inicial do diretor em se aprofundar no tema de Hellraiser – portais
dimensionais que nos conduzem a reinos do caos e terror.
Além de um projeto ambicioso que pretendia alinhavar uma série de alusões a filmes clássicos sci fi, o
filme sugere alguns contatos entre a física e metafísica que afinal estava tão
em voga no final do século passado em filmes como O Décimo Terceiro Andar,
Cidade das Sombras e o próprio Matrix: os buracos negros e a curvatura
tempo-espaço não criariam apenas um atalho no Universo para chegarmos
rapidamente a pontos distantes. A curvatura poderia revelar que na verdade o
cosmos é um Multiverso, podendo nos conduzir a outras dimensões tragicamente
imprevisíveis.
O Filme
No ano de 2040, a nave
experimental Event Horizon desaparece perto de Netuno. Sete anos mais tarde a
tripulação da nave USAC Lewis & Clark é enviada em missão secreta, depois
de a Event Horizon misteriosamente ter reaparecido. Comandada pelo capitão
Miller (Laurence Fishburne), também está a bordo o cientista Dr. William Weir
(Sam Neil) que projetou e construiu a Event Horizon.
Dr. Weir revela que a Event
Horizon não explodiu (como divulgado oficialmente) mas simplesmente
desapareceu. A nave foi construída com o objetivo de ser mais rápida que a luz,
através de uma unidade gravitacional que dobraria o espaço-tempo por meio de um
buraco negro artificial. A nave poderia se mover de um ponto a outro do Universo
instantaneamente. O objetivo da missão era chegar ao sistema de Proxima
Centauri.
Eles encontram a Event
Horizon intacta. Porém, ao entrarem nela à procura do diário de bordo encontram
corpos da tripulação com olhos arrancados e os corpos mutilados, além de sangue
e carne humana dilacerada nas paredes da ponte de comando.
Inesperadamente o núcleo
gravitacional da nave começa a funcionar sozinho, vitimando um dos astronautas
da equipe de resgate e provocando uma explosão que racha o casco da Lewis &
Clark, obrigando-os a permanecerem na sombria Event Horizon, com um estoque de
oxigênio que só durará 20 horas.
Estranhas alucinações
começam a acometer cada tripulante da equipe, todos relacionados com
sentimentos de culpa e tormentos pessoais:
Peters tem a visão de seu filho aleijado e com as pernas cobertas de
feridas supuradas; Miller é confrontando com a visão de um homem em chamas e
ainda vivo pedindo ajuda para ele; Dr. Neil vê a sua esposa que se suicidou em
uma banheira. Lembrando o filme Solaris,
a nave parece ter um estranho poder de materializar as culpas e remorsos mais
íntimos de cada um.
Aos poucos, todos vão
chegando a uma conclusão sinistra: a Event Horizon não foi e voltou de Proxima
Centauri. O Portão dimensional aberto pela experiência fez a infeliz tripulação
daquela nave não só saltar para uma outra dimensão, mas entrarem no próprio
Inferno descrito por Dante e pela Igreja. E trouxeram de volta o Mal,
corporificado na própria nave espacial.
Universo ou Multiverso?
Em uma sequência inicial o
Dr. Weir tenta explicar à tripulação da Lewis & Clark como é possível
viajar numa velocidade superior a da luz. “Fale em linguagem clara”, replica o
Capitão Muller percebendo que ninguém da sua tripulação entendia os termos de
física. Então, Dr. Weir tenta ilustra sua ideia pegando uma folha de papel,
dobrando as extremidades de um papel para representar a curvatura tempo-espaço
e como os pontos A e B, antes distantes na folha, ficam sobrepostos.
A questão é que o Dr. Weir,
assim como a Cosmologia, pensa as questões relativísticas ou quânticas em
termos de Universo – um verso, extenso como a folha de papel. No máximo pensam
em diferentes “dimensões” ou diversos tempo-espaço convivendo juntas no
Universo por causa de diversas curvaturas produzidas por elementos densos
capazes de deformar a gravidade como buracos negros, sois ou quasares.
A Event Horizon demonstrou
que o Dr. Weir estava errado: a curvatura tempo-espaço não só abriu um portal
para outra folhas curvadas ou dimensões paralelas, como também abriu o inferno
íntimo de cada um dos tripulantes. Esse parece ser o principal tema do filme,
por trás de muitas camadas de explosões, ação e os clichês tradicionais de
terror sci fi.
Multiversos abririam infernos íntimos?
As concepções cosmológicas
de multiverso são muito anteriores à ciência moderna. Por exemplo, o gnóstico
Basilides (120 D.C.) falava de um deus supremo que emanou diversas realidades e
seres que ocupam “365 céus”, cada qual com seu Arconte - ser de natureza
inferior que chefia espíritos inferiores e éons, capazes de dotar o homem
apenas com a psique (alma sensível), mas não com o pneuma (alma racional).
Antes disso, Jesus falava
que “na casa do meu Pai há muitas moradas”, conectando essa “multiversalidade”
com uma nova ética: a do perdão, compaixão e amor ao próximo.
O espiritismo kardecista vai
interpretar essa frase de Jesus como uma pluralidade de mundos espirituais que
se interpenetram: mundos puramente espirituais, moradas de espíritos
desencarnados, moradas físicas etc.
Mas parece que o filme O Enigma do Horizonte se aproxima mais
da concepção Teosófica da combinação sutil dessa pluralidade de mundos com os
corpos mental e espiritual dos indivíduos. Cada mundo é uma realidade etérica
moldada por nossas formas-pensamento. Ressentimentos, dor, culpa, remorso etc.
poderiam criar mundos que nos aprisionam, criando um inferno íntimo e ao mesmo
tempo externo, criando formas-pensamento capazes de estruturar mundos – sobre
isso clique
aqui e aqui.
Filmes como Amor Além da Vida (What the Dreams May Come, 1998) ou A Passagem (Stay, 2005)
já exploraram esse tema onde as múltiplas dimensões seriam espirituais,
etericamente moldadas por formas-pensamento, capazes de criar mundos infernais.
Tal como no clássico Solaris, os sentimentos de culpa e
remorsos de cada tripulante da Event
Horizon criou uma nova dimensão de punição. O portal dimensional não levou
a tripulação para “novos mundos, indo onde nenhum homem jamais esteve” (como
dizia a célebre abertura da série televisiva Jornada nas Estrelas), mas para os seus próprios infernos íntimos.
Culpa e remorsos criaram seus próprios Arcontes, formas-pensamento para
puni-los sangrentas sessões de tortura e morte.
E os olhos são simbólicos no filme: todas as vítimas têm seus olhos arrancados, numa clara alusão ao personagem da mitologia grega Édipo que, culpado por ter reconhecido Jocasta como sua própria mãe e casado com ela, fura seus próprios olhos.
Parafraseando o Dr. Weir, a
tripulação da Event Horizon viajou
até as estrelas, mas encontrou algo muito mais além... o seu inferno íntimo.
Ficha Técnica |
Título: O
Enigma do Horizonte (Event Horizon)
|
Diretor:
Paul Anderson
|
Roteiro:
Philip Eisner
|
Elenco: Laurence
Fishburne, Sam Neil, Kathleen Quinian, Jason Isaacs
|
Produção:
Paramount Pictures
|
Distribuição:
Paramount Filmes (DVD)
|
Ano:
1997
|
País: EUA
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