Vencedor no
Festival de Sundance e odiado por aqueles que vão ao cinema apenas para comer
pipoca e se divertir, o filme “Primer” (2004) do diretor Shane Carruth é um
quebra-cabeça sobre questões lógicas sobre a viagem no tempo: paradoxos,
lacunas, pontas soltas, causalidade. Esqueça o famoso “paradoxo dos gêmeos”
(Paradoxo de Langevin) sobre a relatividade das viagens no tempo. Esse é o
menor dos problemas nesse filme. Influenciado pelo ocultismo de Aronofsky de “Pi”
e os “warmholes” de “Donnie Darko”, o filme se defronta com as grandes
interdições estruturais do contínuo tempo-espaço que impedem o homem se libertar do
Tempo: as noções de atratores estranhos e da geometria recursiva da Teoria do
Caos. Filme sugerido pelo nosso leitor Marcos Garcia.
Primer se insere em um subgênero dos
filmes de ficção científica que poderíamos chamar de low sci-fi como Another Earth, Sound of My Voice, Safety Not Guaranteed etc. Filmes de baixíssimo
orçamento (Primer foi realizado com
sete mil dólares) onde os temas científicos são pretextos e muitas vezes apenas
um cenário para questões éticas e morais sobre relacionamentos humanos.
Carruth
obviamente foi influenciado pela intensidade ocultista de Darren Aronofsky do
filme Pi e os “warmholes” de Donnie Darko. Primer mostra como jovens engenheiros, com poucos recursos em uma
pequena garagem, constroem alguma coisa que envolve campo magnético e
manipulação da gravidade em pequenos objetos, mas que produz um inesperado
efeito colateral de possibilidade de viagem no tempo.
Como todo
bom filme low sci-fi, essa
possibilidade não é mostrado em tom épico em cenas tensas, trilha musical de
suspense ou closes em rostos perplexos. Há um fascínio na maneira de falar uns
com os outros, de forma rápida, em tom baixo, mas com entusiasmo. Os diálogos
são repletos de jargões técnicos com referências a gases inertes e metais que
conseguem retirando catalisadores de automóveis para obterem palladium ou
roubar uma geladeira para extrair freon.
Em
muitos momentos, o espectador perde o fio da meada tendo que retomar o que foi
perdido no caminho para juntar as peças do quebra-cabeça. Sem dúvida Primer é um filme para nerds, geeks e
CDFs, assim como os protagonistas da narrativa. Mas é justamente isso que
instiga os espectadores: há algo muito maior por trás dos diálogos intimistas e
introvertidos. Isso é o que fez muitos fãs do filme elaborarem verdadeiros
mapas do roteiro do filme e diagramas da máquina do tempo para tentar juntar as
linhas soltas – veja um desses diagramas na ilustração acima.
Seguindo
os filmes Pi e Donnie Darko, o diretor Carruth explora a estrutura paradoxal
tempo-espaço não apenas relativística, mas caótica marcada por atratores estranhos, recursividade e dependência hipersensível às condições iniciais, também conhecido
como “efeito borboleta”.
Ao
mesmo tempo o Carruth parece explorar a simbologia ocultista dos metais e gases
que envolvem o experimento dos engenheiros – sincronicamente na simbologia
ocultista o palladium simboliza o guardião dos níveis mais altos, o metal da estabilidade
e segurança em viagens muito distantes.
O Filme
Quatro
engenheiros (Abe, Aaron, Robert e Philip) buscam financiamento para uma máquina
que estão construindo na garagem. Nos diálogos nunca fica muito claro do que se
trata, mas parece ter a ver com manipulação da gravidade. Logo Aaron e Abe
percebem estranhos fenômenos envolvendo os gases inertes e o campo magnético no
interior da máquina: um fungo que leva cinco anos para se desenvolver cresce em
cinco minutos, um relógio que funciona para trás e assim por diante. Sim!
Descobriram uma máquina do tempo. Abe e Aaron escondem essa possibilidade dos
outros dois engenheiros da equipe e decidem sozinhos levar adiante o
experimento.
Depois
de alguns testes, Abe secretamente constrói uma máquina protótipo grande o
suficiente para caber um homem e decide retornar algumas horas no passado. Lá
encontra Aaron e os dois veem o “duplo” de Abe entrando na máquina protótipo,
localizada em um depósito. Ou seja, a máquina tem uma estranha propriedade de
unir os pontos A e B no tempo em looping:
presente, passado e futuro podem criar um contínuo vai e vem. Aparentemente
muito simples, não fosse um problema: a coexistência com seus duplos, que farão
constantemente novas máquinas, criando um efeito recursivo. O tecido temporal
exponencialmente começa a ficar instável, devido à hipersensibilidade às
condições iniciais: cada novo duplo vai produzir novos efeitos, sempre
exponenciais.
Como
bons engenheiros que são, tentarão fazer uma engenharia reversa, quer dizer, “ressetar”
o sistema caótico e recursivo. Tentam criar uma “máquina sem falhas”,
secretamente, sem seus duplos saberem. Tentam retornar a um ponto onde sequer
cogitavam a possibilidade da viagem no tempo. Algo como quando um sistema
operacional em um computador tenta se recuperar de um catastrófico erro de
programação, tentando retornar a um ponto anterior da instalação.
Tempo e atratores estranhos
Para os
gnósticos o tempo é a principal falha do cosmos físico, aquilo que prenderia o
homem nesse cosmos. O tempo seria uma seta que tende inexoravelmente para o
futuro. Todos os eventos são irreversíveis tendendo para um estado de
dissipação de energia, caos, inércia – a entropia.
Mas os
cientistas Michael Feigenbaum e Benoit Mandelbrot descobriram que essa
tendência à entropia em um suposto caos e desordem esconderia uma estranha
simetria: os “atratores estranhos”. Regularidades geométricas e contornos
altamente irregulares, estruturas recursivas como redemoinhos dentro de
redemoinhos ou os dormentes de estradas de ferro que desaparecem no horizonte.
Uma escala de repetição que faz certos fenômenos tender a uma constante universal.
Assim como o número pi, presente em
eventos tão distintos: do movimento das ondas numa praia ao trajeto diário das
estrelas no céu.
Isso significa
que a viagem no tempo, o secreto e arquetípico desejo humano pelo anseio de se
libertar da entropia do tempo que nos prenderia a esse cosmos físico, é
interditada pela censura da geometria recursiva dos atratores estanhos: Abe e
Aaron irão cair na cilada do lopping
temporal, sendo condenados ao vai e vem entre os pontos A e B (presente e
passado), produzindo indefinidamente duplos que conspiram entre si, tentando
produzir secretamente novas máquinas do tempo “sem falhas” para tentar
reiniciar o sistema, produzindo ainda mais caos e recursividade.
É uma
espécie de censura estrutural tempo-espaço: a impossibilidade de
auto-cancelamento, isto é, de retornar a um ponto anterior do momento em que a
máquina do tempo foi inventada. Nisso o filme Primer aproxima-se da
relatividade de Einstein: é impossível existir algo além da velocidade da luz.
A misteriosa caixa onde está um dispositivo com metais e gases inertes
conseguiu, de algum modo, intervir na gravidade a tal ponto de curvar o
espaço-tempo criando um warmhole entre passado e presente.
Mas
acabou criando um atrator estranho, uma geometria recursiva que a certa altura
do filme lembrará o filme O Feitiço do
Tempo onde revisitarão diversas vezes uma mesma festa para desarmar um
homem armado e, dessa forma, impressionar o pai de uma mulher – um importante
capitalista de risco que pode torná-los milionários.
Ética e viagem no tempo
Primer retoma o mesmo tema do filme Pi de Aronofsky: a manipulação do tempo
e da matemática como forma de conseguir não só informação privilegiada, mas
conseguir prever os complexos e caóticos movimentos dos mercados financeiros.
Mas se
por um lado Abe e Aaron estão cientificamente comprometidos, por outro lado,
eticamente são deficientes. Ao se defrontar com efeito colateral de tamanha
magnitude da pequena invenção de garagem, a primeira coisa que pensam é escondê-la
dos demais companheiros e tentar fazer dinheiro, muito dinheiro: ver o comportamento
das cotações das ações na Bolsa de Valores para retroceder horas antes com
informações privilegiadas.
Aos
poucos a amizade e o poder de cooperação entre Abe a Aaron entram em colapso
com a paranoia e a desconfiança mútua: cada um tenta interferir no duplo do
outro.
Primer apresenta o velho sonho americano
de que a criatividade, o conhecimento aliado ao empreendedorismo fez do
capitalismo e do liberalismo o grande motor do progresso e da liberdade. De
fato, uma das grandes virtudes do filme é mostrar que as grandes descobertas
científicas surgem por acaso, quando paradoxalmente os métodos científicos
falham e são superados.
Porém,
a ciência parece libertar grandes forças com muita rapidez, para além da
capacidade do amadurecimento ético e moral se equiparar a essa velocidade.
Ficha Técnica |
Título: Primer
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Direção: Shane Carruth
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Roteiro: Shane Carruth
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Elenco: Shane Carruth, David Sullivan, Casey
Gooden, Anand Upadhya
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Produção: ERBP
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Distribuição: THINKFilm
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Ano: 2004
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País: EUA
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