O que há por trás
da performance de uma palestra de um executivo norte-americano? Broadway,
Hollywood, teatro vaudeville e todo um mix cultural único de um país que
conseguiu fundir “business”, “show” e “entertainment”. Assistir ao discurso
desses protagonistas corporativos é testemunhar o ineditismo de um país que
conseguiu fundir a fé tecnológica, o espírito pioneiro dos puritanos e o
triunfo do liberalismo comercial. O pesquisador canadense Arthur Kroker chamava
isso de “capitalismo pentecostal”: a calculada canastrice da palestra de um executivo
inspirada no pantheon dos simulacros da cultura pop , a crença no pragmatismo tecnológico como
moralmente bom e a fé em um destino manifesto de levar a religião americana
para todo o mundo.
Toda vez que temos
a oportunidade de assistir a uma palestra de um executivo, CEO, ou qualquer
dirigente político ou corporativo norte-americano, é a chance de testemunharmos
in natura uma amostra daquilo que o
pesquisador canadense Arthur Kroker chamava de “capitalismo pentecostal”. Para
ele, o que há de tão sedutor na cultura dos EUA é a maneira como ela funde a fé
cega na tecnologia, o missionário senso de libertação originário do espírito dos
pioneiros puritanos e o triunfo da liberdade comercial e do direito à
propriedade privada.
Pois tive a
oportunidade de assistir na Universidade Anhembi Morumbi à palestra de Eric-Jan
Schmidt, responsável pela estratégia de comunicações e marketing corporativo e
digital da Hitachi Data Systems, subsidiária da Hitachi Ltd e parte da Hitachi
Sistemas de Informação e Telecomunicações.
O tema era Marketing Digital,
Comunicação B2B, Big Data/Dark Data e o impacto dessas temáticas no
profissional de Marketing e Comunicação.
Altos dirigentes
em ação, principalmente quando visitam outros países, prezam pelo esmero em
demonstrar o melhor dos seus negócios. Porém, o mais interessante não é o que eles
falam (o enunciado), mas a sua enunciação, a chamada comunicação não
verbal. É marcante nesses profissionais de alto nível das corporações
norte-americanas o domínio do espaço em uma ampla sala em anfiteatro, a exata
marcação de cena, o timing e o ritmo
do discurso (suas pausas, ironias e momentos de humor), respostas sintéticas,
gestual meticulosamente estudado e um certo senso de “esportividade”
(relaxamento mesclado com performance) e jogo.
Canastrice
norte-americana versus latino-americana
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Hollywood, Broadway e toda a cultura pop por trás de um meticuloso domínio de cena |
Fico pensando o
quanto de teatro vaudeville, Broadway, indústria hollywoodiana e de
entretenimento e cultura pop estão por trás nesse meticuloso domínio de cena. Um século XX de cultura visual e
de entretenimento está por trás da naturalidade de Eric-Jan Schmidt, uma
cultura que acabou fundindo show, entertainment e business. Uma atuação overacting
certamente, canastrona pela sua naturalidade estudada e ensaiada a partir
de uma mitologia pop gerada por Hollywood e repercutida por todas as técnicas
de oratória e de falar em público. Mas uma canastrice bem diferente da nossa,
latino-americana.
Isso é o que
difere um David Letterman de um Jô Soares. Enquanto em Letterman, ícone do
gênero talk show televisivo, o timing e o senso do humor seco são ajudados pela
natureza sintética da língua inglesa, no Programa
do Jô o timing é mais lento,
frases longas, convidados dando respostas arrastadas nas entrevistas e o
apresentador tendo que levar o entrevistado nas costas.
Sem uma indústria
teatral, cinematográfica e de entretenimento genuína, nossa canastrice se torna
mais melodramática, trágica, exemplificada pelos tipos de galãs decadentes que
a encarnam: desde corretores de imóveis, vendedores de carros usados, até
palestrantes que circulam pelo meio corporativo com seus ternos mal cortados e
gestual estereotipado, como fossem cópias mal feitas dos clichês
hollywoodianos.
Ao contrário, Eric-Jan
bebe na fonte original do pantheon do
simulacro norte-americano – Elvis, James Dean, Madonna, Michael Jackson –
porque os EUA não precisam de uma mitologia externa, como nós. Cultura única
onde a transitividade entre ficção e realidade é brutal: onde atores de
Hollywood se transformam em presidentes e governadores e um filme como Argo ganhou o Oscar por narrar uma
estratégia da espionagem norte-americana na crise do Irã em que simulava ser
uma produção cinematográfica.
A canastrice
norte-americana é mais ambígua e, por isso, mais eficaz: é estudada e ao mesmo
tempo meticulosamente “espontânea” pelo seu fair
play e “esportividade”; gestual espontâneo e relaxado enquanto a fala é em
timing rápido e voice roll (ritmo
vocal que sugere a existência de uma batida rítmica imaginária criando um
efeito hipnótico, abrindo o receptor à sugestão). Mas, principalmente, o
domínio de cena, do espaço e do tempo cria a chamada “bomba do amor”: criação
de atmosfera de intensa positividade, muito utilizado por líderes religiosos
para criar estados de excitação e boa vontade.
Essa é a essência
do capitalismo pentecostal de que fala Arthur Kroker: uma secreta conexão une
CEOs de corporações a pastores pentecostais televisivos norte-americanos como
Billy Graham e Jimmy Swaggart.
Eric-Jan veio nos
falar de um novo mundo onde o marketing estimulará a produção de novos produtos
e serviços a partir da forma inteligente de armazenar dados sobre tudo e todos
através da chamada internet das coisas (sistema global de registros de bens em
um sistema wireless e nanotecnologia): o desafio do armazenamento e análise
estratégica de dados para encontrar pistas do comportamento e confiança do
consumidor, geolocalização e padrões de tráfego que podem auxiliar no
planejamento do negócio.
Um cenário que tornam
as denúncias de Edward Snowden sobre espionagem eletrônica da NSA (Agência de
Segurança Nacional dos EUA) parecerem fichinha. Mas então, porque essa
atmosfera positiva e otimista em relação a um novo mundo neoplatônico onde
todas as nossos comportamentos serão registrados em dados armazenados para
análises estratégicas comerciais? Por que os artífices desse novo mundo não
serão mais políticos ou governos, mas puros e genuínos pioneiros da iniciativa
privada e profetas do livre comércio.
Eric-Jan abriu
para nós o núcleo da religião americana, aquilo que faz pulsar o seu “destino
manifesto”: a fé na livre iniciativa, no pragmatismo comercial como moralmente
bom porque voltado à eficiência e eficácia do lucro. Isso é o que faz
distinguir o capitalismo americano das origens espirituais do capitalismo
europeu descrito por Max Weber no livro clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Nos EUA o
capitalismo não é mais protestante,
ele é pentecostal.
Se na Europa a
ética protestante impulsionou um capitalismo marcado por uma espécie de
ascetismo mundano (Deus deve reconhecer a sua fé pelas obras e realizações que
você acumulou na Terra – e o capital seria uma delas), na América a relação com
o Divino foi buscada de forma mais direta e dinâmica por meio de um pacto com a
tecnologia: a fé na possibilidade radical de transformar a sociedade e o
indivíduo por meio da tecnologia como um meio para o desenvolvimento da
liberdade e a realização dos nossos potenciais, o que nos aproximaria de Deus.
Um senso de
individualismo pragmático onde a plena liberdade comercial realizará a
liberdade de escolha e consumo individuais. Um senso de praticidade (tudo
rápido, prático, princípio do menor esforço, tudo ao alcance de um clique em um
mundo de dados disponíveis com o menor esforço e custo) que é moralmente bom em
si mesmo, sem maiores questionamentos políticos como controle social – quem é o
dono do hardware?
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A religião americana: tecnoreligião puritana? |
Uma vez o escritor
Harold Bloom chamou de “religião americana” a combinação entre sulismo batista,
pentencostalismo e mormismo que preconizava uma espécie de auto-divinização:
uma conexão direta e pessoal com Deus. Essa combinação entre misticismo e
religião será a base da fé na liberdade comercial, na liberdade individual de
iniciativa e consumo e em toda uma literatura de autoajuda para o aprimoramento
das potencialidades individuais (auto-divinização).
Se a ética
protestante pensava no gênero humano, a ética pentecostal preconiza a
emancipação individual, a liberação das suas potencialidades através daquilo
que é moralmente bom: o eficaz e o pragmático.
A América Virtual
Daí o pacto
americano com a tecnologia, principalmente com a virtualidade, a telemática e
os computadores: a lei do menor esforço e da eficiência na livre iniciativa, no
consumo, na liberdade de escolha como fossem em si mesmas moralmente boas
porque puras – o novo puritanismo. Esse é o dínamo de uma cultura que se
acreditada dotada de um destino manifesto de levar essa boa nova para todo o
planeta.
Admirável Mundo
Novo? Big Brother? Controle Social? Autoritarismo cibernético? Controle da
privacidade? Essas são críticas muito europeias, incompreensíveis ao
puritanismo pioneiro norte-americano. Para Arthur Kroker, essa fé
inquebrantável tem a ver com um eu virtual bem diferente do eu da ética
protestante de Weber: não apenas acumular realizações na Terra para que Deus as
veja, mas performar uma imagem de si mesmo para os outros.
A América possui
um forte senso de ego, porém de um ego frágil e puramente ficcional onde as
energias da libido se conectam diretamente com o vortex eletrônico sem a
mediação racional do Eu. Ego relacional, não mais freudiano, mas kleiniano: um
ego feito a partir de gadgets tecnológicos que media seus relacionamentos.
Um ego semelhante
àquele do protagonista David Aymes (Tom Cruise) no filme Vanila Sky: dentro de um sonho lúcido formado por todas as memórias
icônicas de toda a cultura pop absorvida por ele em vida antes de ser colocado
em estado criogênico. Imagens icônicas que, inconscientemente, performa diante
dos outros e a partir dela tenta criar relacionamentos.
Por isso a América
é tão sedutora. Ter a oportunidade de assistir a uma palestra de um dos
artífices da sua cultura ultra-tecnológica é testemunhar ao vivo o resultado
dessa brutal transitividade entre ficção e realidade, libido e virtualidade, show/entertainment e business que tornaram os EUA um país único.
A religião da América é ela mesma.