No passado era o
proletariado, os explorados e os excluídos. Hoje temos os precarizados:
trabalhadores terceirizados, estagiários, temporários e todo um conjunto de
profissionais treinados espontaneamente para suas funções através da
manipulação de ícones em telas de celulares e mensageiros instantâneos usados no dia-a-dia, desde o velho ICQ até o atual Skype. Participantes incautos de uma ordem que foi secretamente gestada no interior de gigantescos prédios espelhados, com o apoio de uma estética e linguagem igualmente
precarizadas criadas por planilhas eletrônicas e elegantes gráficos e tabelas
projetadas em reuniões onde orgulhosos gestores professam discursos que
misturam efeitos de ciência, religião, misticismo e fenômenos da natureza.
“Aquele que é duro consigo mesmo também é com os demais” (Theodor
Adorno)
No início foi o gerundismo dos telemarketings e SACs de empresas que
invadiu a fala cotidiana. Ao mesmo tempo, imensos prédios corporativos em concreto
e vidros espelhados tomavam a paisagem urbana como fossem bunkers isolados do
contato com o mundo exterior por meio de seguranças privados e sistemas
centrais de climatização.
E no interior desses prédios foi secretamente gestada uma nova ordem
estética e linguística para dar sentido imaginário a um novo tipo de organização
de trabalho: a precarização – trabalhadores terceirizados, temporários, por
tempo parcial, estagiários, trabalhadores da “economia subterrânea” etc.
Surgiu dessa maneira toda uma jovem geração que ainda não se deu conta
da própria condição precária em que começa a construir sua carreira profissional.
E também antigos funcionários agora pressionados a se demitir de forma "voluntária", seja porque se tornaram caros demais graças aos direitos trabalhistas
conquistados em outra era do capitalismo ou, então, porque se tornaram
experientes demais para aceitarem o processo de precarização das próprias
atividades.
O estágio avançado da precarização
Em prédios como esse foi secretamente gestada uma nova ordem estética e linguística |
A precarização é o estágio avançado do processo de exploração do
capitalismo que já ultrapassou a fase do proletariado
e dos excluídos como vítimas
preferenciais do processo de reprodução do capital.
Tal como Karl Marx descreveu, para realizar o lucro no processo de troca
econômica de bens e serviços o capital explorava a “mais valia” (horas não
remuneradas ao trabalhador) resultando no surgimento do proletariado. Para
combater essa exploração absoluta (expansão das horas de trabalho não remuneradas)
e relativa (aumento da produtividade mediante a mecanização da produção, mantendo
os salários constantes), pela via do movimento sindical o proletariado conseguiu
historicamente impor limites e criar margens de negociação através da consolidação
dos direitos trabalhistas.
Com a Globalização e todo o processo de reengenharia das organizações na
década de 1990, o novo paradigma software
da microinformática e telemática cria a figura dos excluídos: pela defasagem educacional e tecnológica, muitos se
deram conta que nem para serem explorados serviam. Idosos, aposentados e
classes subalternas pouco escolarizadas foram pegos de surpresas e jogados para
uma economia subterrânea de subempregos.
Porém, a massificação dos microcomputadores e telefonia celular
universalizou esse novo paradigma software.
Mensageiros instantâneos desde o velho ICQ
e Messanger até chegar aos atuais Skype e WhatsApp, redes sociais como Orkut
e Facebook, microblogs como o Twitter e a manipulação de ícones em
telas de celulares possibilitou um treinamento informal e intensivo de uma nova
massa de força de trabalho, agora incluída no novo paradigma e pronta para
ingressar no mercado de trabalho exigido pelos novos ambientes corporativos.
Surge uma nova mão de obra que de imediato absorve uma ilusão que
confunde ciência com efeitos de ciência. Que confunde os ícones de softwares,
sistemas operacionais e aplicativos como um verdadeiro saber profissional,
quando na verdade não passam de trabalho simplificado, rotinizado e
fragmentado, pronto para ser controlado e monitorado por gestores.
Planilhas, gráficos e tabelas elegantes para modernizar velhas práticas corporativas |
Associado ao chamado “neodesenvolvimentismo”, modelo de desenvolvimento
capitalista brasileiro conduzido pelos governos do PT baseado na inclusão
social através do mercado de consumo, surge o precarizado: uma nova geração de
trabalhadores cujas noções de cidadania e trabalho passam muito mais pelas
ambições por consumo do que pelos valores de classe social, direitos de
trabalho e sindicalização – sobre isso leia ALVES, Giovanni. “Neodesenvolvimentismo
e precarização do trabalho no Brasil” In: Blog
da Boitempo.
E por isso, são facilmente seduzidos pelo que chamamos aqui de estética
e linguagem do precário – conjunto composto de imagens que a corporação faz de
si mesma para seus “colaboradores” e a criação de um jargão baseado no
eufemismo e, muitas vez, de um brutal cinismo justificado por uma espécie de
“darwinismo social” do tipo “a vida é assim mesmo”. Uma linguagem que nem a
novilíngua concebido pelo escritor George Orwell na sua distopia 1984 poderia imaginar.
Vamos preliminarmente tentar mapear alguns elementos dessa estética e
linguagem que dá sentido e sustentação à miséria do precarizado.
Powerpoints, Excels e Prezis
O professor da Fundação Getúlio Vargas, Thomaz Wood Jr., dá um
interessante depoimento no filme O Abraço
Corporativo (2009): “Com a Globalização e a desregulamentação o nível de
competição e insegurança nas empresas cresceu muito. Isso deu margem ao
crescimento de uma série de serviços a partir da década de 1990: consultorias,
MBAs, mídias de negócios e os gurus e eventos corporativos cujas
matérias-primas são ideias ou supostas inovações”.
O modus operandi das corporações: corte de custos em qualquer situação |
Gurus corporativos com palestras e dinâmicas motivacionais repleta de
apresentações em powerpoints,
animações em Flash ou Prezi que apresentam a última onda
inovadora criaram uma estética que ao mesmo tempo dá um ar de modernidade para
as práticas gerenciais de sempre (cortes, enxugamentos, centralização, controle
etc.) e também agrega uma aparência de planejamento científico.
Gestores têm que justificar seus cargos que estão muito longe da
experiência empírica do “chão da fábrica”. Pesquisas e mais pesquisas internas
são aplicadas para gerar dados que resultarão em planilhas Excel que gerarão elegantes
gráficos e tabelas para serem projetados em reuniões. Isso acaba criando um modus operandi dos gestores para
justificar a si mesmos: não importa qual a situação da empresa, sempre cada
setor deve reduzir custos como parâmetro de eficiência a ser comprovado sistematicamente
em planilhas e gráficos. Terceirizações de terceirizações, contratos
temporários e a proliferação de estagiários são as faces da precarização do
trabalho submetida a esse faz de conta corporativo.
Gestão do medo
Essa situação acaba criando um efeito colateral que se reverte em
subsídio positivo para a organização: a crescente atmosfera de medo e ansiedade
que, na linguagem do precarizado, é interpretado como “adrenalina” necessária
para a busca de resultados.
Richard Sennett: gestão do medo corrompe o caráter |
Pesquisadores como Richard Sennett já demonstraram como atmosferas de
stress propositalmente criadas para beneficiar a estratégia de gestão
generalizada do medo acabam corrompendo o caráter – sobre isso leia SENNETT,
Richard, A Corrosão do Caráter. São
Paulo: Record, 2009.
Como Maquiavel dizia “dividir para reinar”: nesses
ambientes proliferam o individualismo, o carreirismo e o oportunismo que acabam
minando qualquer forma de negociação ou mesmo de resistência coletiva. Por mais
que o discurso do precarizado enalteça a colaboração e o trabalho em equipe, de
forma esquizoide e subliminar encara o talento e a criatividade como qualidade
inata individual, isso desde os tempos dos bancos da universidade.
A linguagem do precarizado: uma nova seita?
A princípio, a linguagem do precarizado corporativo lembra muito a
linguagem orwelliana de união de sentidos mutuamente contraditórios: “crise é
oportunidade”, demissão é “novo desafio” etc. Nessas expressões há um quê de
esportividade ou de encarar as relações profissionais e trabalhistas como
fossem um “jogo”, esvaziando de qualquer sentido político-corporativo-sindical:
a admissão de um “colaborador” será para ele “um novo desafio profissional” pressupondo
como “desafio” um jogo cuja data de validade parece estar pré-definida.
Demissões ocorrem porque “fechou-se um ciclo”, tornando um fato trabalhista em
um fenômeno sazonal como as estações climáticas.
A estética e linguagem da corporação criam uma nova seita? |
Por isso subjaz na linguagem do precarizado uma espécie de misticismo
ligado à natureza: fala-se em “missão”, “desafios”, “ciclos” que abrem e
finalizam. Talvez daí a semelhança das corporações com organizações religiosas
ou cultos, principalmente no momento em que uma organização fala que o “foco é
o cliente”. Tal qual cultos e religiões que falam em amor, compaixão, perdão
para com o “próximo” (o crente/cliente a ser cooptado) e internamente se
organizam em cruéis hierarquias verticalizadas marcadas pelo autoritarismo e
castigo, da mesma forma as empresas falam em “ética” e “respeito” ao cliente,
enquanto internamente vivencia-se o oposto.
Esse misticismo associado à natureza e o desprezo ao próprio “colaborador”
se expressa de forma contundente em e-mails com mensagens duras ou sadicamente
ambíguas, enquanto lê-se no cabeçalho inferior mensagens politicamente corretas
como “pense duas vezes antes de imprimir” ou “recicle a natureza”...
Eufemismo e ambiguidade
Ao contrário das organizações de períodos anteriores do capitalismo onde
a dissimulação e a inexistência de comunicação interna eram sintomas das conflituosas
relações trabalhistas marcadas pelo confronto de classes, hoje as empresas são
verborrágicas. Sob a égide da ética e da transparência, as comunicações internas
tornam-se rios caudalosos de e-mails em uma linguagem eufemística e ambígua.
Vamos destacar alguns elementos nessa nossa análise preliminar:
(a) Evita-se usar frases negativas: fala-se em desativar ou descontinuar
ao invés algo fechar ou não mais existir; usa-se “indisponível” para coisas
quebradas ou que não mais funcionam.
(b) o gerundismo é a típica locução verbal ambígua: “vamos estar fazendo
amanhã” é uma locução escorregadia e não muito assertiva, típica de
organizações que procuram se eximir de responsabilidade através de sucessivas
terceirizações.
(c) utilização de expressões motivacionais como “engajamento”, “agregar
valor”, “vestir a camisa”, “participar” etc. que remete à discussão das linhas
acima sobre religião e misticismo que subjaz na organização precária: o
elemento da fé das antigas religiões agora foi modernizado e adaptado no
conceito de motivação. Um conceito individualista e subjetivo e que ao mesmo
tempo esvazia todas as relações trabalhistas (potencialmente explosivas numa
organização) em relações de crença cega.
Considerações finais: mal estar e vingança
A estética e a linguagem precária procura suavizar, abrandar a realidade
dura da precarização do trabalho, tornando uma mensagem dura ou uma realidade
cruel em uma inevitabilidade científica, mística ou mesmo natural.
E, principalmente, mitigar o mal estar psíquico que assombra a geração
de precarizados (medo, ansiedade e paranoia). Tal como na universidade em que
se submetiam aos trotes cruéis à espera do revide nos calouros no ano seguinte,
da mesma forma estagiários, autônomos e demais precarizados esperam um dia se
tornarem gestores para, munidos de suas planilhas Excel e slides em Powerpoint,
descontar o medo e ansiedade nos novos trabalhadores precarizados. Criaria-se
dessa forma uma espécie de correia de transmissão da precarização.
O filósofo Theodor Adorno sintetizava a origem do fascismo e do caráter
autoritário numa breve frase: “aquele que é duro consigo mesmo também é com os
demais”. Talvez, o mal estar psíquico da precarização do trabalho esteja por
trás do atual ressurgimento de uma constelação manifestações fascistas e
autoritárias: intolerância, preconceito, desprezo à política ao mesmo tempo em
que se defende golpes de Estado e militarização da política.
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