Filmes cuja premissa parece ser de ficção científica como viagens no tempo ou universos alternativos. Mas esses temas são apenas o pretexto para discutir questões existenciais e relacionamentos. "Sound Of My Voice"(2011), sugerido pelo nosso leitor Fábio Hofnik, segue essa tendência que os críticos definem como "psicodramas alt.sci-fi". Aqui a narrativa sobre uma estranha seita cuja líder teria vindo do futuro põe em discussão a chamada "mentalidade da sobrevivência", forte traço da mentalidade atual: a nossa difusa sensação de abandono e insegurança em relação ao futuro que alimentaria a frenética busca contemporânea por seitas, religiões e técnicas de autoajuda e autoconhecimento alardeadas pela cultura midiática.
Uma mulher é encontrada vagando pelas ruas de Los Angeles apenas trajando um lençol enrolado pelo corpo, sem memória e apenas trazendo como marca visível do passado uma tatuagem de uma âncora com o número 54 ao lado.
Um jovem casal decide fazer um
documentário sobre uma estranha seita, cuja líder é aquela mulher que foi
encontrada vagando pelas ruas. Agora ela afirma vir do futuro, mais
precisamente do ano 2054 – ela teria chegado a essa conclusão depois de
estranhos flahs de memória e o número 54 tatuado.
Uma menina com traços de autismo
brinca sempre solitária em seu quarto, fazendo estranhas figuras com blocos de
montar.
E finalmente aterrissa em Los
Angeles uma agente do FBI que começa a montar em um quarto de hotel avançados
dispositivos de espionagem.
Esses são os ingredientes do
thriller psicológico “Sound of My Voice” do diretor Zal Batmanglij, mais um
filme indie que os críticos definem como “psicodrama alt. Sci-fi”, isto é, com
um tema de ficção científica colocado como pano de fundo são exploradas
questões existenciais e de relacionamentos humanos. Nesse trabalho de Batmanglij
o tema viagem no tempo é um mero pretexto para discutir como a mentalidade de
sobrevivência (que parece trivializar a proximidade de alguma catástrofe e
todos parecem sempre esperar pelo pior) repercute nos relacionamentos humanos
atuais.
Filmes como “Another Earth” (2011
- veja links abaixo) do mesmo diretor e “Melancolia” (2011) de Lars Von Trier
são outros exemplos dessa estética “alt. Sci-fi”.
O filme
Peter (Christopher Denham) e sua
namorada Lorna (Nicole Vicius) são os novos adeptos de uma estranha seita cujas
reuniões são feitas no porão de uma residência em algum lugar nos subúrbios de
Los Angeles. Eles têm os olhos vendados e as mãos amarradas e são conduzidos
até o local onde são recebidos com um típico personagem dessas seitas bizarras:
cabelos longos, óculos com armação redonda como um hippie de meia idade. São
conduzidos à presença de Maggie (Brit Marling, co-autora do roteiro), a
viajante de 2054 que traz más notícias do futuro: afirma que estão próximos de
uma guerra civil e da escassez de alimentos.
Peter e Lorna pretendem fazer um
documentário sobre aquela seita e se infiltram como repórteres investigativos.
Peter é mais cético e pretende desmascarar Maggie como uma charlatã. Mas Lorna está
cada vez mais se rendendo ao carisma de Maggie. Essa divergência de percepções
será o pivô da narrativa do filme, ao lado do estranho aperto de mãos ritual e
super-maçônico que os fieis têm que dar ao ser saudado pelo hippie de meia
idade toda vez que chegam para os encontros.
Apesar das divergências, Peter e
Lorna têm algo em comum: nunca terminaram nada a que se propuseram na vida e
veem no documentário a chance de realizar algo até o final.
Lentamente as sequências vão
apresentando as técnicas de manipulação psicológica clássicas nas seitas como o
momento em que todos comem uma maçã que representa a racionalidade e os valores
desse mundo decadente. São induzidos à vomitá-la – na verdade um efeito
psicológico em cadeia tal qual o bocejo. Cético, Peter não vomita, o que faz
Maggie envolvê-lo em uma armadilha psicológica que o faz revelar os abusos que
sofreu na infância. Em choque, Peter acaba vomitando também a maçã para o
delírio dos fiéis.
A mentalidade da sobrevivência
Em um livro chamado “O Mínimo Eu
– sobrevivência psíquica em tempos difíceis” (editora Brasiliense, 1986) o sociólogo norte-americano
Christopher Lasch procurou entender porque apesar de vivermos em uma época de
confortos materias desconhecidos em épocas passadas, vivemos obcecados por
ideias de catástrofes iminentes – ecológicas, energéticas, econômicas,
militares, nucleares, astronômicas etc. A preocupação da sobrevivência
passaria, então, a ser o traço proeminente na cultura atual. O tema teria
entrado de forma tão profunda na cultura popular e no debate político que
qualquer tema se apresentaria como um questão de vida e de morte.
Para Lasch, o comportamento da
vida cotidiana passa a assumir as características mais
sinistras típicas de vivências em situações extremas: auto-observação irônica,
individualidade multiforme e anestesia emocional.
“Sound Of My Voice” explora de
forma seca e objetiva essas características de um cotidiano marcado por uma
espécie de trivialização da catástrofe: a misteriosa líder Maggie impõe
exercícios para que os adeptos liberem seus “eus verdadeiros” e suas
potencialidades para que se tornem uma elite de pessoas fortes (os
“escolhidos”) para sobreviverem ao futuro.
Os protagonistas mantêm um
constante auto-distanciamento irônico – na medida em que Maggie, Peter e Lorna
criam inusitadas situações cômicas em momentos emocionalmente pesados, suas personalidades
e identidades vão se apresentando instáveis : quem é Maggie? Será uma charlatã? Uma narcisista? Uma viajante do tempo? Ou uma golpista perseguida pelo FBI?
Peter e Lorna passaram suas
existências pulando de projeto em projeto de vida sem nunca terminar nada. Para
eles, o documentário é simbólico: uma forma de se encontrarem. Mas ao mesmo
tempo a divergência de percepções sobre Maggie, aliado com o ceticismo de Peter
(na verdade uma forma de defesa emocional diante do seu próprio passado de
abusos) e a necessidade de Lorna crer em algo cria um incrível vazio emocional
em sequências propositalmente lentas, gélidas e precisas.
A trivialização da
catásfrofe: seitas e autoajuda
Lasch argumenta que por trás
dessa cultura terapêutica que oferece verdadeiras tecnologias do eu (autoajuda,
autoconhecimento, técnicas de desenvolvimento pessoal e das potencialidades
internas) estaria uma “subcultura do milênio”: a imaginação apocalíptica
derivada de fundamentos religiosos e na versão secularizada do apocalipse
pregada por ecologistas (Clube de Roma), economistas neo-malthusianos
(esgotamento energético e a ameaça da explosão populacional) etc.
Seitas como a dramatizada por
“Sound Of My Voice” ou a expansão atual dos grupos de autoajuda baseia-se na crença comum da necessidade
urgente da reconstrução do eu, no desenvolvimento de poderes mentais mais
elevados e nunca explorados e na transcendência das limitações biológicas e das
emoções humanas ordinárias. Para os tempos difíceis que hão de vir, somente uma
elite de “escolhidos” sobreviveria. Por isso, simples questões como acordar
pela manhã todos os dias, lidar com as próprias emoções e pensar no futuro,
metas e objetivos passam a ser questões de vida ou de morte.
Guardadas as devidas diferenças,
“Sound Of My Voice” lembra muito a abordagem que o filme “Clube da Luta” (Fight
Club, 1999) faz sobre os grupos de autoajuda e da própria seita Clube da Luta
em torno da qual gira a narrativa: diante da catástrofe que nos aguarda no
futuro, temos que aprender a ser duros com nós mesmos e aprender a suportar a
própria dor.
Nunca o indivíduo se preocupou
tanto consigo mesmo, obcecado com o crescimento pessoal e na expansão das suas
potencialidades e, ao mesmo tempo, nunca esteve tão cercado de confortos e
facilidades urbanas inéditas na História. E, ao mesmo tempo, talvez nunca o
homem tenha experimentado tamanho abandono e insegurança em relação ao futuro.
Daí a busca desesperada por algum sentido na vida, nem que isso signifique
seguir líderes, profetas ou visionários que acabem representando novas formas
de prisões.
Ficha Técnica
- Título: Sound Of My Voice
- Diretor: Zal Batmanglij
- Roteiro Zal Batmanglij e Brit Marling
- Elenco: Christopher Denham, Nicole Vicius, Brit Marling
- Produção: Skyscraper Films
- Distribuição: Fox Searchlight Pictures
- Ano: 2011
- País: EUA