Indicado a três Oscar (melhor ator, atriz e ator coadjuvante) “O Mestre” (The Master, 2012),
inspirado claramente na trajetória do fundador da Cientologia L. Ron Hubbard, trata
sobre a relação entre o carismático líder de uma seita (“A Causa”) e um
seguidor decadente, violento e alcoólatra. Mas sentimos o tempo inteiro que
alguma coisa de mais interessante foi deixada de fora, algo que o diretor Paul
Thomas Anderson apenas sugere sem aprofundar: o ressentimento de uma América
profunda que produz seitas na mesma velocidade que surgem atiradores matando pessoas nas
universidades americanas.
Conta-se que Freud, ao avistar o
porto de Nova York e a Estátua da Liberdade em 1908 na sua única visita aos
EUA, teria supostamente comentado a Carl Jung ao seu lado: “Eles não sabem que
trazemos a peste”. Freud acreditava que retiraria os norte-americanos do
conforto das tradições ao fazê-los reconhecer nelas a origem das doenças do
psiquismo.
Mas ele jamais poderia imaginar
que os EUA recompõem tudo de acordo com suas necessidades e de que a teoria do
inconsciente e da neurose seria traduzida e reformulada pela chamada “religião
americana” representadas em slogans como esses: “liberte-se dos traumas do
passado!”, “assuma o controle da sua vida!”, “Liberte-se das suas doenças!”.
São os slogans formulados pela
“A Causa” do carismático líder Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman) no filme
“O Mestre”, claramente inspirado na trajetória do fundador da Cientologia L. Ron Hubbard que em 1950 lança o livro
“Dianética: A Ciência Moderna da Saúde Mental” – obra que mistura ficção
científica e autoajuda. Depois que atores como Tom Cruise e John Travolta
manifestaram publicamente a adesão à seita, a Cientologia cresceu a tal ponto
de anunciar a construção de um centro de mídia em Hollywood para difundir seus
ensinamentos através do rádio, TV e Internet.
Isso talvez explique o fato do
diretor Paul Thomas Anderson ter ignorado o verdadeiro “elefante na sala” que possuía:
ele se mostra desinteressado em explorar o explosivo tema da origem, ascensão e
queda de uma seita, ainda mais sobre a Cientologia que pudesse irritar amigos
íntimos de Hollywood. A narrativa estranhamente não é centrada no “Mestre” do
título, mas em um dos seus seguidores, o decadente, alcoólatra, violento e
viciado por sexo Freddie Quell (Joaquim Phoenix) – ex-combatente da marinha na
Segunda Guerra que vive de biscates e sempre à procura de uma figura paterna.
O núcleo do filme é o
relacionamento entre esses dois homens, mas sentimos todo o tempo que alguma cosia
interessante foi deixada de fora. Ao conhecer Freddie, o megalomaníaco líder
Dodd diz: “você será minha cobaia e protegido”. Mas as cenas se sucedem sem
haver impacto de um personagem sobre o outro. Embora Hoffman Seymour e Phoenix
tenham soberbos desempenhos (principalmente quando contracenam), não há nenhum
efeito sobre a causa ou algum impulso para frente na narrativa.
O diretor Thomas Anderson aqui e
ali no filme parece iniciar temas interessantes para depois deixá-los soltos,
sem aprofundamento – como, por exemplo, na sequência da organização do “I
Congresso Mundial da Causa” no Arizona onde acompanhamos uma excelente
descrição visual da “América profunda” por trás da seita: conservadorismo dos
“red necks”, pátria, família e vaqueiros armados...
A América profunda e a “religião americana”
Esse é o “elefante na sala” que
o diretor tinha diante dele e que solenemente ignorou para se concentrar na
trajetória do “loser” Freddie Quell que, ambiguamente através do seu fracasso,
parece confirmar as teses da “Causa” que Thomas Anderson parece criticar.
O filme “O Mestre” apenas sugere
o núcleo imaginário da chamada “América profunda”: aquilo que uma vez o crítico
literário Harold Bloom descreveu como um mix de autodivinização gnóstica,
mormismo, sulismo batista e pentencostalismo – a “religião americana”. Uma
estranha forma de puritanismo cujas origens estavam nas chamadas “Providências”
(formas narrativas anedóticas puritanas que descreviam milagres que ilustravam
como a vontade divina se manifesta na vida cotidiana), estórias sobre magia
africana, magazines e livros de bolso. Um amálgama entre o fantástico, o
grotesco e uma reinterpretação da teologia cristã a partir da autodivinização, ou
seja, a busca do Divino dentro de si mesmo. Uma particular americanização da
religião a partir da junção de aspectos do hermeticismo, alquimia, gnosticismo,
magia popular para produzir uma totalmente plena alternativa para o
Cristianismo.
A Cientologia, assim como as
literaturas e vídeos populares sobre autoajuda e autoconhecimento desde o
seminal livro “Como fazer amigos e influenciar pessoas” de 1936 de Dale
Carnegie até o recente documentário “O Segredo”, são as resultantes dessa “religião
americana” da fé em si mesmo como força para a realização e o sucesso.
Assim como a Cientologia de
Hubbard, “A Causa” de Dodd professa que toda a origem das nossas doenças espirituais
estão localizadas nas sucessivas vidas que remontam milhares de anos atrás quando
fomos vítimas de um imperador galático que nos aprisionou na Terra e mandou
tudo pelos ares através de uma explosão nuclear. As almas desses seres ficaram
vagando até se encarnarem no primeiro homo sapiens. Por isso, para atingirmos a
felicidade e ter a vida sob o nosso controle, devemos apagar os “engramas”
(memórias das experiências negativas dessas existências passadas) para que cada
indivíduo se torne o seu próprio deus.
Freud jamais imaginava que “a
peste” da psicanálise que tantos estragos causaram no Humanismo europeu seria recomposta
para se adequar à terapia comportamental que busca a melhor forma do indivíduo
se ajustar de forma eficiente e eficaz à sociedade, arrefecendo os sintomas por
meio do esquecimento sem atinar para as causas. Ainda mais dentro desse estranho mix de
misticismo, ficção científica, autoajuda, puritanismo e autodivinização.
Se Freud procurava entender a
dinâmica da dor psíquica através de uma interpretação simbólica dos sonhos,
atos falhos e da neurose, a religião americana foi mais prática: simplesmente
deletamos os traumas, agora redefinidos como “experiências negativas”.
Outro ponto jogado e não desenvolvido
pelo diretor Thomas Anderson é como a América intelectualizada, representada no
filme por personagens da cidade de Nova York, critica e ridiculariza a seita do
líder Dodd. Vemos que o sucesso da “Causa” tem um quê de ressentimento e
vingança da América profunda contra essa América letrada e europeia que insiste
em ignorá-la, mas que ocasionalmente sente os seus efeitos: escândalos midiáticos
envolvendo seitas e religiões, atiradores disparando em universidades etc.
O violento e alcoólatra Freddie
simplesmente espanca todos aqueles que levantavam qualquer tipo de crítica à
Causa ou ao seu líder, tornando-se o “leão de chácara” da seita sob a
complacência do líder Dodd.
O “ascetismo mundano”
O filme se passa na década de
1950. Como já desenvolvemos em postagem anterior (veja links abaixo), nessa
década encontramos o ponto de viragem da engenharia de controle social: as
instituições repressivas como escola, igreja e família (tão bem analisadas por
Freud como produtoras de neuroses) são substituídas por discursos midiáticos
como os da autoajuda e terapias de autoconhecimento que incentivam a “autoexpressividade”:
o impulso confessional e narcísico de expressar publicamente seus desejos e
pesadelos mais íntimos.
No filme vemos como as técnicas
desenvolvidas por Dodd (o “processamento”, o correspondente da “dianética” da
Cientologia) corresponde a regressões hipnóticas e criação de situações de
stress para o indivíduo se “expressar” – na verdade se confessar em situações
performáticas, diante de espectadores formados pelos integrantes da “Causa”,
que são gravadas para posterior análise.
Se na religião tradicional o
impulso confessional é realizado solitariamente diante de Deus (“um monge que se flagela a si mesmo diante de Deus, na
privacidade da sua cela, não pensa na sua aparência diante dos outros” –
SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras,
1987, p. 406.), na religião americana há o claro componente narcísico
que Sennett define como “ascetismo mundano” derivado da ética protestante: um
componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a
Deus, mas aos outros a sua renúncia e sacrifício, provando a todos ser um
merecedor das graças divinas.
Isso
se insere na cultura narcísica atual como um impulso confessional como uma
performance do eu interior diante dos outros. Um impulso confessional
hoje potencializado pelas redes sociais onde a intimidade abandona a natureza
existencial para adquirir aspectos performáticos: expor fotos, desejos, hobbies
para expor a si próprio ao escrutínio externo na esperança de merecer aprovação
– o substituto da figura paternal perdida, assim como o que o perturbado
Freddie tenta encontrar no líder da “Causa”. Ou, pelo menos, conseguir do outro o aperto do
botão “curtir”.
Ficha Técnica
- Título: O Mestre
- Diretor: Paul Thomas Anderson
- Roteiro: Paul Thomas Anderson
- Elenco: Philips Seymour Hoffman, Joaquin Phoenix, Amy Adams
- Produção: The Weinstein Company, Ghoulard Film Company
- Distribuição: The Weistein Company
- Ano: 2012
- País: EUA