No ônibus-estúdio do
programa “Globo Esporte” da TV Globo o jornalista Tiago Leifert comanda uma
espécie de “narrativa em abismo” em pleno CT do São Paulo F.C.: um programa
televisivo em um estúdio itinerante mostra através do monitor que compõe o cenário um evento (coletiva do técnico da
seleção brasileira de futebol Mano Menezes) programado para coincidir com o
próprio programa esportivo global. Qual é afinal a notícia: a novidade do
ônibus-estúdio estacionado no meio de um centro de treinamento ou a coletiva
que, no final, era um “evento-encenação” programado para acontecer dentro da
grade horária da emissora? Nesse abismo metalinguístico encontramos tanto o
resultado da evolução histórica das mídias quanto a constituição do próprio monopólio midiático
e político da TV Globo.
Vemos imagens de uma tomada aérea do Centro de Treinamento
do São Paulo FC e percebemos, em destaque, no centro do campo visual, o teto do
ônibus-estúdio do programa “Globo Esporte” da TV Globo. Corta para dentro deste
estúdio onde vemos o apresentador Tiago Leifert fazendo as tradicionais
introduções ao noticiário esportivo da seleção brasileira. Em segundo plano uma
tela onde vemos a imagem do repórter Mauro Naves, pronto para iniciar a cobertura
de uma coletiva à imprensa com o técnico da seleção brasileira Mano Menezes. “Está
iniciando nesse momento a coletiva do técnico da seleção...”, começa a falar o
repórter. Na verdade “está iniciando nesse momento” é um eufemismo para dizer “está
iniciando dentro do Globo Esporte”, isto é, a assessoria de imprensa da CBF
apenas esperava a introdução de Tiago Leifert para iniciar o evento.
A imagem do
apresentador do Globo Esporte tendo ao fundo uma tela de um evento logisticamente
programado para a grade horária da TV Globo produz uma estranha sensação
daquilo que os teóricos do cinema chamam de “narrativa em abismo”: vemos um
filme sendo produzindo e dentro dele outro filme também é produzido. Um curioso
efeito recursivo, reforçado pelo enquadramento de câmera que sugere uma “profundidade
de campo” que lembra o expressionismo alemão e o filme noir: quadros dentro de
quadros com a presença de janelas, portas e espelhos.
Porém, estamos falando de uma emissora de TV com controle
monopolístico onde tudo isso que descrevemos acima nada tem a ver com os profundos
significados que a profundidade de campo produz na narrativa cinematográfica - ligação
com outras dimensões, o medo e ilusões. Há uma espécie de saturação ou abismo
metalinguístico: os sistemas de comunicação midiáticos parecem funcionar como
se eles mesmos fossem o mundo e como se não houvesse nenhum mundo além deles.
Se no cinema a profundidade de campo aponta para sentidos e
a realidades fora da narrativa ficcional, a metalinguagem da narrativa global é
tautológica e solipsista: aponta para si mesma ao transmitir eventos nos quais
ela interferiu, roteirizou e agendou. E nessa espécie de “caverna orbital” não
há chances de sair, pois a narrativa metalinguisticamente mostra como ela mesma
é construída: em certos momentos, a notícia não é mais o esporte, mas o próprio
ônibus-estúdio que se desloca para onde houver grandes eventos esportivos. E Tiago
Leifert não é mais um repórter, mas o protagonista da informação.
O potencial crítico da metalinguagem se deteriorou em "making off" como no programa "Video Show" |
Para sermos mais precisos e fazermos jus ao conceito, na
verdade o que testemunhamos é a deterioração da riqueza potencialmente crítica
da metalinguagem em uma espécie de making
off diário da TV como em um interminável "Vídeo Show". É como se a cada programa ficcional ou a cada cobertura
jornalística a TV quisesse fazer um strip
tease diante do espectador, mostrando seus bastidores, as câmeras, as
agruras do repórter, o boom operator
tentando capturar o som ambiente etc. O exemplos do ônibus-estúdio do Globo
Esporte ou do avião do Jornal Nacional que pretende viajar pelo país para
mostrar as mazelas dos lugares mais distantes são sintomas dessa estratégia de
enunciação televisiva onde o real é um mero espelho que reflete a existência da
televisão.
Uma história recente da metalinguagem
Na década de 1980 surgiu na TV brasileira uma série de
produções em linguagem experimental assentados na metalinguagem que, então, era
tomada como possibilidade de criação de ruído, desestabilização, crítica e interatividade,
coisas vedadas na grande mídia.
Em 1981 surge “A Fábrica do Som” liderado por Tadeu Jungle
exibido em 1981-82 na TV Cultura. Gravado no Sesc Pompéia em São Paulo, foi o primeiro
programa a dar espaço ao rock e cultura underground em plena Ditadura Militar.
Câmera nervosa com ângulos inusitados e delirantes, quebras de eixo constantes,
vários eventos ocorrendo simultaneamente no palco e o programa praticamente
sendo ensaiado e construído ao vivo. Exibição não era o termo certo, o programa
era desconstruído diante do espectador.
"Perdidos na Noite": metalinguagem como crítica ao mainstream da linguagem da TV Globo |
“Perdido na Noite”, apresentado por Fausto Silva, surge em
1984 na TV Gazeta trazendo para a televisão o escracho e a diversão do programa
radiofônico “Balancê” da Rádio Excelsior. Todas as mazelas de uma produção
alternativa e de baixo orçamento eram apontados ao vivo pelo apresentador (ausência
de cenários – um fundo branco um escada e latas de tinta – inexistência de cachê
e buracos que surgiam no programa com a ausência de convidados na última hora).
“Se vocês querem qualidade, mudem para o plim-plim”, dizia Fausto Silva fazendo
alusão à poderosa Globo diante de uma plateia que lotava o auditório do teatro
da Gazeta.
Em um mix de ator e jornalista, Marcelo Tas fazia o
desajeitado e aparentemente ingênuo repórter Ernesto Varela que se infiltrava
em coletivas e coberturas “sérias” de eventos políticos e esportivos para fazer
perguntas inesperadas que fugiam ao roteiro e colocava os entrevistados em
situações de embaraço e constrangimento. Ernesto Varela desconstruía os clichês
e roteiros padronizados do telejornalismo em hilárias metalinguagens, como, por
exemplo, seus diálogos com o câmera “Valdeci” (vários cinegrafistas fizeram
esse personagem, entre eles Fernando Meirelles) que movimentava a câmera em
sinal de concordância ou desaprovação.
Pederíamos dar outros exemplos dessa década como a
experiência do “TV Mix” na Gazeta (com Astrid Fotenelle e Sergio Groisman) ou
Goulart de Andrade com o “Comando da Madrugada”. Em todas essas experiências a
metalinguagem era exercida de forma crítica e com um destino certo: a crítica à linguagem
convencional e “certinha” do mainstream
representado pela poderosa TV Globo.
A metalinguagem vira making off
"Show do Esporte": no final da década de 1980a metalinguagem coverte-se em eventos-encenação |
O ápice do autismo e solipsismo do “Show do Esporte” foi
quando o repórter Elia Júnior entrevistou seu patrão Luciano do Valle (ao vivo
no estádio do Pacaembu) dublê de técnico da seleção brasileira de futebol
sênior e dono da empresa que criara o evento que o próprio programa estava
transmitindo como “evento esportivo” – e enfrentando adversários pagos pela
empresa do qual era proprietário o que criava um situação de surreal ironia.
Umberto Eco chamava esses eventos irônicos e solipsistas de “eventos-encenação”:
“Nos últimos dez anos [este texto de Umberto Eco foi publicado em 1983], porém, a transmissão ao vivo apresentou mudanças radicais no que se refere à encenação: das cerimônias papais a muitos acontecimentos políticos e espetaculares, sabemos que eles não teriam sido concebidos da maneira como foram, se não tivessem existido as telecâmeras. Aproximamo-nos cada vez mais da predisposição do evento natural para com os fins da transmissão pela televisão. O acontecimento que demonstra a verdade dessa hipótese é o casamento do príncipe herdeiro do Reino Unido. Esse evento não só não teria desenrolado como se deu, mas possivelmente não teria mesmo se desenrolado, caso não tivesse sido concebido para a televisão” (ECO, Umberto. “Televisão: a transparência perdida” In: Viagens na Irrealidade Cotidiana p. 196-7.
A televisão não se limita a transmitir eventos: ela deve
criá-los, apropriar-se deles para encaixá-los na sua logística, timing, grade
horária. Mais ainda: como já apontava o historiador Daniel Boorstin na década
de 1960, a mídia viveria um descompasso entre a necessidade de um fluxo
constante de acontecimentos (fornecimento constante de conteúdos para preencher
a grade de programação) e a produção espontânea e real de eventos.
Os eventos-encenação e a metalinguagem convertida em making off são as resultantes do
crescimento e complexidade da mídia que, de tão obesa, fecha-se em si mesma e
filtra o real de acordo com sua onisciência e onipresença. Se isso é o
resultado de uma evolução histórica das mídias como apontam Eco e Boorstin,
imagine no caso brasileiro onde se acrescenta a isso o monopólio político da TV
Globo.
Portanto, o abismo metalinguístico comanda por Thiago Leifer
deve ser compreendido nessas duas dimensões: a da história geral das mídias e da
história da constituição do monopólio midiático e político da TV Globo.
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