“Quando deve 100.000 o problema é seu, mas se você deve um milhão o
problema é do banco”. É essa linha de diálogo solta no meio do filme “Rosalie Vai Às
Compras” (Rosalie Goes Shopping, 1989) que sintetiza toda a crítica que o
diretor alemão Percy Adlon faz da “doença contemporânea”: o cartão de crédito.
Apesar da fotografia com muita luz e cores, uma trilha musical composta
originalmente para o filme e muito bom humor, Adlon faz um conto sombrio sobre
uma sociedade de consumo onde a única barreira para a realização dos desejos
não é mais moral ou religiosa, mas financeira.
“Rosalie Vai às Compras é uma sátira ao consumismo, ao
materialismo yuppie de uma década de 1980 conservadora de Ronald Reagan e
Margareth Thatcher, e que terminou em um violento crash da Bolsa de Nova York
em 1988. Mas que continua ainda muito atual em uma época de crises financeiras
globais, mais uma vez após outra década de conservadorismo neoliberal.
Rosalie (Marianne Sägerbrecht) é uma dona de casa alemã que vive dentro do sonho americano, morando interior do estado do Arkansas: tem um marido perfeito (um aviador de
dedetização aérea), uma família maravilhosa com sete filhos e uma coleção de
cartões de créditos falsos e talões de cheques “borrachas” tão vasta que
consegue alimentar seus filhos como reis e comprar qualquer produto que ela vê
nos comerciais sem fim que toda a família adora (preferem ver os intervalos
comerciais e canais de televendas a filmes ou shows).
Rosalie é uma simpática e carismática tranbiqueira que
sozinha com seus golpes na praça sustenta os desejos de uma família excêntrica
que lembra a de filmes recentes como “Pequena Miss Sunshine” e “Os Excêntricos
Tanembauns”: duas gêmeas limítrofes, um jovem cujo sonho e torna-se um "chef" (Rosalie colabora comprando as mais caras iguarias de gastronomia), outro com
um irritante tique de bater um pé nas refeições, o marido fanático por aviação que grava sons
de motores de aviões para todos ouvirem e vive dando voos
rasantes sobre a casa, e assim por diante.
Todos com um inquebrantável otimismo no sonho americano
transmitido pelos histéricos canais de televendas diante dos quais a família
toda se reúne para acompanhar os jingles e antecipar os slogans. Para eles todo
sonho ou desejo tem o dever de ser realizado pelo consumo. Se a única barreira
que impede isso é a financeira, Rosalie vai dar conta desse empecilho.
Mas as dívidas de Rosalie vão crescendo e os cheques
“borrachas” dela não são mais aceitos pelas lojas e supermercados locais o que
a obriga a partir para golpes no interior da própria família: limpar a poupança
do filho que presta serviço militar na Alemanha e vender as passagens aéreas de
volta dos pais que vieram da Bavária para visitá-la.
Tudo muda ao conhecer um computador completo, com modem e
impressora. De consumista Rosalie torna-e uma hacker e compreenderá a frase
dita pelo carteiro que sempre entrega suas correspondências cheias de cartas de
cobrança: “Quando deve 100.000 o problema é seu, mas de você deve um milhão o
problema é do banco”. Pronto, Rosalie estará no topo outra vez, revertendo o
jogo do sistema financeiro ao criar uma volumosa dívida e uma empresa fantasma.
Consumismo e
Esquizofrenia
Numa entrevista para a revista norte-americana “Bomb” em
1990, o diretor Percy Adlon afirmou que “Rosalie Vai às Compras” é o lado
sombrio do filme anterior “Bagdá Café” de 1987: “em Bagdá era pura esperança e
sentimentos positivos. Em Rosalie, nós olhamos para o espelho de uma das nossas
doenças contemporâneas: o cartão de crédito. Neste filme estou alfinetando o sistema,
a sedução que está em toda parte dizendo que para ser feliz é necessário
comprar. Para mim, o mundo está sempre simultaneamente feliz e triste,
agressivo e suave, risos e lágrimas, mas nunca o paraíso” (“Percy Adlon” por
Lance Loud In: “Bomb”, 32/Verão 1990).
Percebe-se nesse depoimento que a crítica de Adlon à “doença
contemporânea” no filme vai mais além do que a crítica moralista à sociedade de
consumo, onde o “ter substitui o ser”. O problema não é comprar, mas os significados
esquizofrenicamente contraditórios que as mensagens publicitárias comunicam aos
potenciais consumidores: de um lado, a afirmação universal de que todos têm o
direito à felicidade e à realização dos seus sonhos, e, do outro, a situação
particular de impedimento – a clivagem financeira.
Isso lembra a chamada situação de “duplo vínculo” (double bind)
do antropólogo Gregory Bateson que estudava situações de esquizofrenia a partir
de ciladas comunicativas onde a vítima ficava paralisada: a mãe transmite uma
ordem negativa (“não faça isso, eu te castigo”) e uma contra-ordem positiva,
geralmente transmitida de forma não-verbal, que entra em conflito com a
primeira (“não entenda isso como punição” ou “se faço isso é porque te amo”) –
veja MARCONDES FILHO, Ciro, A Produção
Social da Loucura. São Paulo: Paulus, 2003.
Pois a publicidade e toda a sociedade de consumo criam essa
verdadeira cilada comunicativa para os indivíduos: explicitamente, cada filme
publicitário parece uma reivindicação universalista do direito à felicidade;
mas uma contra-ordem não-verbal, uma espécie de sub-texto transpassa todo o
campo das mensagens publicitárias: sem dinheiro não há felicidade.
“Ao fim da cota inteira de publicidade absorvida diariamente pelo indivíduo, e ainda mais, da anual, esse puro receptor se encontrará vinculado por uma série infinita de produtos em contraposição ou em justaposição entre si, imersos na sua mente, sem que o seu “corpo” tenha a possibilidade de satisfazer-se, não certamente, com a totalidade, mas nem mesmo com a possibilidade de investimento visual. E então geram-se a ansiedade e o rancor nessa tesoura que vincula e, ao mesmo tempo, não resolve a ligação” (CANEVACCI, Massimo. Antropologia da Comunicação Visual, São Paulo: Brasiliense, 1990, p.49-50).
Rosalie, como uma alemã e estrangeira imersa no sonho
americano transmitido pelos canais de televendas, não consegue entender esse “duplo
vínculo” contraditório entre o literal e o metafórico, entre mensagens que ao mesmo
tempo afirmam e condicionam.
Por isso, ela vai compreender o vazio moral existente na
sociedade de consumo, após muitas confissões com um padre católico que,
perplexo, acompanha as descrições das falcatruas que Rosalie comete na pequena
cidade: não existem barreiras morais ou religiosas para buscar a satisfação dos
desejos. Se o único impedimento é de ordem financeira, ela poderá dar um jeito.
O vazio moral na
Sociedade de Consumo
Se o sociólogo alemão Max Weber estiver correto, a base
moral do capitalismo esteve na ética protestante baseada na realização pessoal
através do mérito. O “mérito” não era simplesmente um conjunto de
características inatas no indivíduo (inteligência, habilidades etc.), mas
capacidade de adiamento da gratificação, operosidade, poupança e a
imortalização do ato por meio de obras para a posteridade (como no provérbio
sobre “livros, árvore e filhos”, realizações que o indivíduo deveria alcançar
na vida) para o reconhecimento social e divino.
Pois essa capacidade de sublimação é pulverizada pelo
discurso esquizofrênico publicitário. No filme, Rosalie confessa ao padre cada
um dos seus “pecados” não porque quer a redenção ou tornar-se uma pessoa
melhor. Como ela diz, “quando a gente confessa deixa de serem pecados”, para
desespero do padre que vê em Rosalie um caso perdido.
Nos canais de televendas e intervalos publicitários, todos os
desejos e sonhos se equivalem por que são expressões legítimas de um livre-arbítrio
abstrato, e não mais resultantes de esforços pelo mérito individual. Por isso a
busca por crédito (forma líquida do dinheiro em espécie na sociedade de consumo,
simbolicamente mágica, pois nas suas formas eletrônicas – cartões de débitos e
créditos – não dá a sensação desagradável de “gastar”) é vazia de responsabilidade
ética, moral ou religiosa: é apenas um meio para alcançar um direito legítimo
porque universal.
Rosalie vai escapar do “duplo vínculo” esquizofrênico da
sociedade de consumo através de uma irônica estratégia: criar um débito tão
gigantesco que jogue a responsabilidade para o sistema financeiro como um todo.
Rosalie vai entender literalmente as mensagens publicitárias e desvicular de qualquer
responsabilidade ética e moral a busca pela viabilização financeira dos seus
desejos. Se, como afirma aquele anúncio de cartão de crédito que clama “porque
a vida é agora”, Rosalie vai entender a mensagem ao pé-da-letra. Os banqueiros
que se cuidem!
Ficha Técnica
- Título: Rosalie Vai Às Compras (Rosalie Goes Shopping)
- Diretor: Percy Adlon
- Roteiro: Christopher Doherty e Percy Adlon
- Elenco: Marianne Sägerbrecht, Brad Davis, Judge Reinhold, Erika Blumberg e Willy Harlander
- Produção: Bayerischer Rundfunk, Pelemele Film
- Distribuição: Lions Gate Films
- Ano: 1989
- País: Alemanha, EUA