Uma espécie de organização fascista, os Incubus, habita o plano astral da humanidade, instigando pesadelos relacionados com humilhação e ressentimentos nos humanos no plano físico. Isso faz dois personagens, simultaneamente nos diferentes planos, serem consumidos pela vaidade e orgulho colocando em perigo a alma de uma criança raptada pelos Incubus. Ela será defendida por "Storytellers", guardiões dos bons sonhos. Esse é o filme independente "Ink" (2009) que revoluciona as tradicionais representações do cinema sobre as relações entre os mundos espiritual e físico. Fiel ao moderno hermetismo, o filme mostra a interpenetração entre os dois planos, com consequências que lembram a psicologia do nazi-fascismo tal como discutida por Alfred Adler e Erich Fromm.
Os mundos espirituais, etéricos ou sobrenaturais têm sido
representados pelo cinema de três formas diferentes:
(a) regiões da pós-morte
ou quase morte ("twilight zone") habitada por mentores espirituais que nos
ensinam grandes lições morais ou de onde olhamos a vida em perspectiva e
extraímos lições eternas (“Amor Além da Vida”, “A Passagem” etc.); (b) região
de onde provem fantasmas que nos assombram, espíritos vingativos que nos
perseguem, entidades obsessoras que nos tentam ou, às vezes, o próprio demônio
em pessoa que surge querendo dominar o gênero humano (“Poltergeist”, “Pesadelo
em Elm Street” ou “O Advogado do Diabo”); (c) o “sobrenatural”, uma outra
dimensão que, dadas certas condições, tangencia com o nosso mundo abrindo
portais, criando enigmas metafísicos e fenômenos sobrenaturais (“Donnie Darko”
ou as adaptações dos contos de Edgar Alan Poe).
Com o moderno hermetismo de Madame Blavatsky e Charles
Leadbeater no século XIX o mundo espiritual começou a ser visto com uma outra
dinâmica, como dimensões que se interpenetram e se influenciam mutuamente de
tal maneira que a divisão entre “vivos” e “mortos” passou a ser meramente
formal, como apenas “diferentes estados e agregação da matéria”. Essa visão
concretiza-se nas descrições de André Luiz na obra “Nosso Lar”, psicografada
por Chico Xavier na década de 1940, onde temos uma descrição do que ocorria no
plano espiritual perto de eclodir a Segunda Guerra Mundial: “falanges obscuras
do Umbral amontoam-se sobre a Europa impulsionando a mente humana para crimes”.
A guerra travada em dois planos: o físico e o espiritual.
O filme independente “Ink” inova as tradicionais
representações cinematográficas dos planos espirituais descritas acima ao criar
uma narrativa fielmente próxima à visão do moderno hermetismo sobre os
chamados “Planos Astrais”. Com uma instigante e complexa narrativa com
flash-backs e flash-fowards consegue criar essa linha de continuidade e mútua
influência entre “vivos” e “mortos” de tal maneira que o diretor e roteirista
Jamin Winans vai tecendo como as motivações das ações humanas rebatem no Plano
Astral criando futuros alternativos que influencia passado e presente
simultaneamente.
Em outras palavras: o que fazemos no presente já teria
ocorrido no Plano Astral (o “futuro” para nós), o que, em “looping”, vai nos
influenciar no presente, a não ser que “quebremos” o círculo vicioso por meio
do livre-arbítrio. Mas há falanges espirituais (os “Incubus” – referência às
lendas medievais de demônios que agem à noite sugando energias vitais enquanto
as pessoas dormem) que não querem isso, e lutam a todo custo para que o círculo
vicioso seja mantido.
O filme começa com um argumento aparentemente clichê que lembra
filmes como “Pesadelo em Elm Sreet”: Ink, o personagem título do filme,
necessita entregar a alma de uma criança chamada Emma aos Incubus mediante o
rapto dentro dos sonhos dela. Ink é um demônio, uma alma atormentada e
humilhada, vestido de trapos e com um rosto horrivelmente deformado. Ele
precisa cumprir esse trabalho para ascender na hierarquia do mundo espiritual
chegando ao status dos Incubus onde terá uma melhor aparência, orgulho e poder.
Antes do rapto da alma de Emma, o espectador é
introduzido aos seres que atuam nos nossos sonhos para nos proteger, para nos
dar esperanças (Storytellers) e os que nos aterrorizam (os Incubus). A atuação
destes no mundo etéreo causará efeitos no mundo terreno, podendo um ser humano
morrer num pesadelo, entre outros efeitos.
Enquanto isso, uma equipe de salvamento prepara-se
para resgatar Emma das garras dos Incubus, formada por Allel (a guardiã
storyteller que está encarreguada de proteger Emma), Jacob um guia cego, capaz de
sentir os ritmos e compassos do Mundo e das vidas dos seres humanos, e Liev uma
poderosa storyteller que, ao tentar cumprir a missão de salvar Emma, acaba por
cair nas mãos do demônio Ink.
O Fascismo Espiritual
O tema central do
filme é a mútua influência do mundo espiritual e físico. Ao longo da narrativa
percebemos a correspondência entre o pai de Emma, John, e o demônio atormentado
Ink. Ambos, em cada plano, vivem situações instáveis onde lutam pela ascensão
simbólica de poder.
John trabalha no
mercado financeiro e luta para fechar um negócio milionário que o fará poderoso
e admirado por todos. Sua vaidade é uma forma de superar uma infância repleta
de humilhações na família e na escola decorrentes da pobreza. A ambição pela ascensão
profissional e as exigências decorrentes torna-o ausente da família. Sua filha Emma
é hospitalizada em um estranho estado de coma (sua alma está sendo levada por
Ink) o que faz John ficar em uma encruzilhada, entre largar um negócio
milionário para ficar ao lado da filha ou concentrar todos os seus esforços
para realizar uma transação financeira que o fará rico, poderoso e admirado por
todos.
Ink, igualmente
humilhado por sua pobre figura, luta para levar a alma de Emma aos líderes dos
Incubus para merecer a promoção de status tão invejada.
Os Incubus são
uma falange claramente de inspiração fascista. Acham-se uma raça superiora às
imperfeições dos seres humanos (eles perderam a memória que também foram humanos
no plano físico) e evitam serem contaminados pela humanidade. Por isso, trajam
estranhas roupas de plástico e borracha e portam uma máscara/tela na frente do
rosto onde são projetados os pesadelos humanos.
Se os
Storytellers são os guardiões dos bons sonhos (amor, realizações, ideais etc.), ao contrário, os Incubus incentivam pesadelos relacionados com humilhação e ressentimento.
Eles querem manter o fluxo de sentimentos que, no final, sustenta a sua
organização fascitoide no Plano Astral. Esse “fluxo” poderia ser assim descrito:
a humilhação leva a culpa e a culpa leva o homem à vergonha. Então, ele
compensa a vergonha com orgulho e vaidade. Quando o orgulho falha, o desespero
toma conta e tudo isso leva à destruição.
Essa é a condição
tanto do pai ausente John quando a do pobre demônio Ink. O diretor Jamin Winans
afirma que a batalha espiritual entre Storytellers e Incubus foi inspirada em
uma citação que um dia ele leu: “Como os tiranos do mundo são iguais e quão
maravilhosamente únicos são os santos!”.
Esse argumento
que sustenta a narrativa do filme “Ink” nos faz lembrar toda a discussão sobre
a psicologia do nazi-fascismo, empreendida pelos psicanalistas Erich Fromm
(1900-1980) e Alfred Adler (1870-1937) na primeira metade do século XX. Adler,
por exemplo, sustentava que a busca por perfeição do ser humano era uma
compensação ao sentimento de inferioridade surgida dentro de um contexto social
de crise socioeconômica como a experimentada no período entre guerras.
Fromm argumentava
que esse “montante de frustração social” se coverteu em importante fonte para o
nazi-fascismo: os ideais de pureza racial e perfeição, superioridade nacional e
destruição sádica dos “inferiores” eram a compensação à impotência,
ressentimento e isolamento.
Princípio da
Correspondência
O filme “Ink”
inova o campo da representação cinematográfica dos mundos espirituais por
claramente se inspirar no esotérico “Princípio da Correspondência”, um dos
princípios do Gnosticismo Hermético de Hermes Trimegisto (o primeiro a
transmitir o conhecimento divino e celeste – Filosofia, Química e Cabala - por
escrito na antiguidade): “O que está em cima é como está embaixo, e o que está
em baixo é como está em cima”. É o princípio da Correspondência aplicado tanto
na Astronomia na antiguidade como na Alquimia. Na verdade, um princípio hermético
influenciado pela metafísica platônica (para Platão, o mundo percebido pelos
sentidos é uma reprodução distorcida das formas puras existentes no mundo das
Ideias).
Os Incubus, como “magos
negros” no sentido dado pelas descrições nos mundos astrais por Leadbeater, são
aqueles que manipulam o pensamento humano, forma poderosa e plástica por criar
formas-pensamento nos planos etéricos, manipulados por essas organizações.
Como afirmou Jamis
Winans “acredito que há coisas acontecendo em torno de nós que não somos
capazes de ver, e acredito que há um monte de influências externas sobre o
fluxo do mundo físico” (veja “An Interview with Jamis Winans” em Midnight
Showing).
O filme foi
exibido em alguns festivais e um número limitado de cinemas por ter uma
distribuição independente. "Ink" passou a ter maior notoriedade quando foi
colocado em sites de partilha de filmes, o que se revelou bastante positivo:
acabou sendo criada uma autêntica rede de apoio ao filme com a compra do DVD,
trilha sonora, camiseta e até doações de apoio ao projeto. Tudo isso
encontra-se à venda no site que pertence ao próprio realizador do filme: http://www.doubleedgefilms.com/
Ficha Técnica
- Título: Ink
- Diretor: Jamis Winans
- Roteiro: Jamis Winans
- Elenco: Christopher Soren Kelly, Quinn Hunchar e Jessica Duffy
- Produção: Double Edge Films
- Distribuição: independente
- Ano: 2009