terça-feira, julho 26, 2011

Uma Série de Cadáveres Cobre a Estrada das Invenções: o filme "O Homem do Terno Branco"

Entre a narrativa tragicômica do cientista ingênuo e idealista do filme ingles "O Homem do Terno Branco" ("The Man in the White Suit, 1951) e a tragédia real do inventor da Frequência Modulada, Edwin Armstrong, encontramos dois paralelos: a orientação alquímica de um inventor perdido em meio ao capitalismo cartelizado e a "commoditização" da Ciência.

O inventor do motor a explosão, Rudolph Diesel, desapareceu a bordo de um navio no mar do Norte em uma noite calma. O inventor da frequência modulada (FM), Edwin Armstrong, se jogou da janela do décimo terceiro andar de um edifício em Manhattan em 1954. O inventor do náilon, Wallace Hume Carothers, também se suicidou. Uma série de cadáveres cobre a estrada das invenções.

Quando esse assunto é debatido as pessoas logo pensam em invenções proibidas. Imagina-se que os grandes trustes possuem em seus cofres fortes a lâmina de barbear interminável, o fósforo perpétuo, a lâmpada elétrica eterna, o comprimido que dissolvido na água substitui a gasolina, os tecidos indestrutíveis.

Mas uma evidência histórica é certa: determinadas invenções são combatidas, suas patentes tornam-se objeto de batalhas judiciais e objeto de difamações na mídia com o objetivo de serem controladas e suas aplicações adiadas quando coloca em risco o equilíbrio de mercado em determinado momento ou, mais ainda, quando ameaça a própria natureza mercantil das invenções e da própria tecnociência. 

A comédia inglesa “O Homem do Terno Branco” é um ótimo filme que nos faz lembrar da clássica questão marxista da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção, isto é, de como um modo de produção determinado pode ser uma camisa de força para o livre progresso tecno-científico. O plot central do filme é sobre uma invenção que, de tão revolucionária, pode colocar em risco o mercado e as relações capital-trabalho. Olhando a história das invenções, a tragicômica estória do idealista cientista dessa comédia tem muitas analogias com a tragédia real do inventor da frequência modulada, Edwin Armstrong.

O filme narra as desventuras de Sidney Stratton (Alec Guinness) um cientista ingênuo e idealista, recém-formado por Cambridge, que obsessivamente persegue um objetivo: o desenvolvimento de uma fibra sintética que produza um tecido que nunca desgaste e suje, produzindo roupas praticamente indestrutíveis e capazes de durar uma vida inteira.

Secretamente se infiltra nos laboratórios de pesquisa das maiores indústrias têxteis para conseguir os melhores equipamentos para alcançar seu intento. Descoberto na indústria Birnley’s, Sidney acaba convencendo o seu proprietário Alan Birnley (Cecil Parker) de que a descoberta lhe trará grande vantagem contra a concorrência.

No início, as pesquisas são catastróficas, com explosões que levam parte das instalações da Birnley’s pelos ares. Hidrogênio e tório radioativo tornam as experiências cada vez mais perigosas e explosivas. O que começa a criar boatos e chamar a atenção da imprensa. Tudo é sistematicamente desmentido por Alan Birnley até Sidney conseguir a grande descoberta: a fibra sintética indestrutível.

A notícia vaza para o mercado que entra em pânico diante da perspectiva de uma invenção que poderá provocar óbvia crise em larga escala: fechamento de fábricas têxteis, desemprego em massa, lavanderias que ficariam sem trabalho etc. O cartel têxtil se reúne e tenta a todo custo comprar a patente de Sidney para dar fim à perigosa invenção. Determinado pela missão humanitária da sua descoberta ele foge querendo avisar a imprensa. Sidney será perseguido tanto pelos representantes do capital, quanto pelas lideranças sindicais temerosas pela ameaça do desemprego.

Da tragicômica ficção à tragédia histórica

Na vida real, a trágica biografia de Edwin Armstrong encontra muitos paralelos com o filme “O Homem do Terno Branco”.

Armstrong nasceu em Nova York em 1890. Apaixonou-se pela eletricidade e, mais tarde, pelo rádio. Com 21 anos vendeu tudo o que tinha para patentear o circuito elétrico em “feedback”. O princípio da retroação não era novo , mas Armstrong foi o primeiro a aplicá-lo à eletrônica. Sua patente foi concedida, mas imediatamente os processos começaram. Alguns cientistas tentaram provar que o aparelho de Armstrong não podia funcionar. A invenção, que mais tarde renderia milhões de dólares a diversas companhias, não conseguia ser vendida.

Com a Primeira Guerra Mundial, Armstrong embarcou para a França, na época o país ideal para os inventores. O serviço de comunicações do exército americano instalou-se no boulevard Montparnasse. Nesse local Armstrong descobriu o circuito super-heteródino com um objetivo militar: localizar transmissões dos inimigos alemães.

O circuito super-heteródino foi uma das grandes invenções modernas, como o motor a explosão e o dínamo, utilizado por todos os rádios de válvula ou transistor. Foi condecorado pelo governo francês e recebeu uma medalha de honra pelo Institute of Radio Engineers de Nova York. Tudo indicava que sua carreira seria de vitórias, mas...

Armstrong vendeu a patente de seu invento a Westinghouse por um montante apenas suficiente para pagar suas dívidas e viver uma vida decente (quando o normal seria uma venda que previsse uma quantia a receber no futuro por cada rádio vendido, o que resultaria numa soma astronômica). Quando começou a fabricação deste tipo de rádio, as vendas atingiram 60 milhões de dólares em 1922, e continuaram a subir até atingir 900 milhões em 1929. A maior fortuna de todos os tempos havia passado entre seus dedos.

Vendeu em julho de 1922 um novo circuito de rádio, o circuito à super-regeneração, à firma Radio Corporation of America (RCA) por 200 mil dólares mais 60 mil em ações da sociedade. Armstrong ficou milionário, mas as batalhas judiciais se tornaram furiosas, até que a Corte Suprema dos EUA declarar que suas patentes na eram válidas.

A orientação alquímica de um cientista perdido
em meio ao capitalismo cartelizado
Furioso, Armstrong retorna à França e começa as pesquisas relativas à frequência modulada (FM): eliminar, pelo comprimento da onda, os ruídos provenientes das máquinas e descargas elétricas atmosféricas dos rádios comuns em AM. Ao ver o primeiro aparelho em FM em 1940, Sarnoff, o presidente da RCA, exclamou: “Isso não é uma invenção, mas uma revolução”.

Mas Armstrong não percebeu que essa declaração não era um elogio, mas uma ameaça. A rede de rádios AM estava ameaçada, principalmente quando Armstrong conseguiu uma aprovação da FCC (Comissão Federal de Comunicações) para explorar uma frequência  entre 42 e 49 MHZ para montar uma pequena rede de rádios FM na Nova Inglaterra (a chamada “Rede Yankee”). Armstrong tentava convencer a América de que o rádio FM era superior ao AM.

A RCA pressionou a FCC para que fossem retirados os comprimentos de ondas necessárias à frequência da rede Yankee, atrasando em décadas a tecnologia FM. Mais uma vez se intensificaram os questionamentos judiciais às patentes de Armstrong. Uma campanha jornalística foi organizada contra ele.  Além disso, a RCA reclamou e conseguiu sua própria patente em tecnologia FM, retirando todos os direitos de Armstrong.

Sem um centavo graças às batalhas judiciais e destruído emocionalmente, Armstrong pularia de uma janela em 1954 em Manhatan encontrando a morte.

Podemos encontrar dois paralelos entre a ficção do drama de Sidney no filme “O Homem de Terno Branco” e a tragédia de Edwin Armstrong: a orientação alquímica das suas ciências e a “commoditização” do conhecimento científico.

Sidney é o mago alquímico. Os insistentes enquadramentos do filme em provetas, pipetas, centrífugas, tubos de ensaio, vapores, estranhos sons eletrônicos etc. e o caráter intuitivo e inventivo do protagonista conferem à sua pesquisa uma natureza alquímica, quase mágica. Seu sonho não é quantitativo ou matemático, mas qualitativo e sem hierarquias ou controles. É um artesão perdido em meio ao Capitalismo dos cartéis têxteis.

Dentre as várias batalhas que Armstrong enfrentou, uma delas foi contra cientistas que, baseados em modelos matemáticos, achavam impossível a frequência modulada. Em um artigo escrito na época intitulado “A Teoria Matemática contra os Conceitos Físicos”, Armstrong declara guerra aos modelos quantitativos e matemáticos, impondo uma compreensão mais qualitativa à física. Isso lembra o paradigma alquímico de outro inventor que teve um destino trágico, Nikola Tesla, que entrou em choque com o “mainstream” tecnológico digital e quantitativo ao propor um modelo baseado em noções analógicas e intuitivas como éter, onda e ressonância (veja links abaixo).

Por fim, o paralelo da “commoditização” da ciência. Sob a forma mercadoria, o destino do conhecimento científico é jamais alcançar a plenitude humanitária, a satisfação plena do “valor de uso” da ciência, já que ele deve ser confinado à teoria do valor econômico que é dada pela escassez como pressuposto imaginário de todo o sistema produtivo.

A “commoditização” da Ciência

O idealismo humanitário de Sidney vai se chocar
contra os interesses tanto do Capital quanto do Trabalho
O que torna brilhante o roteiro de Roger McDougall e a direção de Mackendrick é que a tragicomédia do protagonista não é reduzida ao egoísmo da natureza humana (desejo por lucro, materialismo etc.). O enfoque é ontológico: ciência, capital e trabalho estão submetidos a uma forma que independe das orientações éticas ou morais dos indivíduos: a forma mercadoria.

Tanto em Marx quanto em Weber, em última instância a economia capitalista exige o pressuposto subjetivo da escassez: o valor de uma mercadoria somente pode ser determinado se ela for um bem “escasso” no sentido de que atenda a uma demanda sempre crescente e nunca satisfeita, pois a sua “utilidade” é sempre tomada como insuficiente ou um bem escasso na sociedade.
“É propriamente decisivo, para uma atuação racional com respeito a um objetivo, que tal escassez seja pressuposta subjetivamente, e que se trabalhe em consequência com tal orientação” (WEBER, Max. Economia Y Sociedad, Edit. Fondo de Cultura, México, p. 17.)
Se um produto torna-se um bem facilmente disponível ou que atenda integralmente o seu valor de uso (satisfação, durabilidade, qualidade etc.) torna-se um perigo ao sistema econômico de valor por se tornar tão barato que inviabilize sua exploração como mercadoria. Se isso se torna inevitável com o desenvolvimento científico, a publicidade deve torná-lo escasso psiquicamente (por meio da exploração da insatisfação psicológica, consumo compulsivo etc.).

O idealismo ingênuo de Sidney busca a plena satisfação humanitária através de um tecido sintético. Ele não percebe que o seu desejo transcende a forma mercadoria e a própria teoria do valor econômico. Uma mercadoria indestrutível e durável por toda uma vida inviabilizaria o seu valor e a transmutação em mercadoria. Seu sucesso científico lhe trará a melancólica decepção ao ver o preço que terá de pagar.

Da mesma forma, Armstrong não percebeu que a “revolução” da frequência modulada ainda não poderia acontecer. O rádio AM ainda era uma mercadoria de alto valor por sua “escasses”. Só mais tarde, com a saturação do mercado de equipamentos de rádio, o FM entraria como novidade “escassa”, com alto valor agregado para trazer altos lucros. Mas Armstrong não estaria vivo para ver.

Ficha Técnica

  • Título: O Homem do Terno Branco (The Man in the White Suit)
  • Direção: Alexander Mackendrick
  • Roteiro: Roger McDougall e Alexander Mackendrick
  • Elenco: Alec Guiness, Joan Greenwood, Cecil Parker, Harold Goodwin
  • Produção: Michael Balcon, Ealing Studios
  • Distribuição: Anchor Bay Entertainment (EUA, TV e DVD)
  • Indicações e Prêmios: Academia de Artes Cinematográficas de Hollywood, EUA, Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, Academia Britânica de Cinema e Televisão, Inglaterra, Prêmio de Melhor Filme, Prêmio de Melhor Filme Britânico
  • Ano: 1951
  • País: Reino Unido

Trailer "O Homem do Terno Branco" (do "Trailers from Hell")



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