As primeiras décadas desse século tem demonstrado um interesse das séries de televisão por seriais killers, contadas a partir do ponto de vista do investigador ou do assassino: Dexter, Mindhunter, Bates Motel, Hannibal, Ted Bundy etc. Sejam casos ficcionais ou baseados em fatos reais. Mais do que os detalhes sangrentos, o público parece estar interessado na ciência por trás da compreensão dos assassinatos em série: por que o serial killer mata?
O termo “serial killer” foi cunhado Robert Ressler em 1985 para um tipo de crime até então denominado como “assassinato em massa”, o que não refletia o aspecto repetitivo de tais assassinatos.
Por que esse criminoso mata dessa maneira? Ressler, o criador de perfis mais famoso dos EUA, falava em histórico familiar como mãe solteira, pai ausente, abuso sexual, baixa educação etc. Porém, há um forte componente midiático, como aponta o pesquisador William Cash: “os crimes [dos assassinos em série] são geralmente uma busca macabra por reconhecimento, com o interesse da mídia em cada assassinato reforçando sua autoestima”.
Assassinos em série usam a mídia para obter a atenção que desejam, seja comunicando-se com jornais ou observando atentamente qualquer notícia relacionada a seus assassinatos. Isso tem sido um problema em inúmeras investigações, pois a mídia acaba dando informações ao público e ao assassino que deveriam ter sido mantidas em segredo. Criando o estranho fenômeno de retroalimentação entre o assassino serial e meios de comunicação.
Como veremos à frente, um fenômeno que o crítico social Neal Gabler chama de “efeito Heisenberg”:
“as mídias não estavam de fato relatando o que as pessoas faziam; estavam relatando o que as pessoas faziam para obter a atenção da mídia. Em outras palavras, à medida que a vida estava sendo vivida cada vez mais para a mídia, esta estava cada vez mais cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida” (GABLER, Neal. Vida, O Filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 97).
Um filme como Assassinos por Natureza (1994), de Oliver Stone, mostrou essa dinâmica entre o sensacionalismo midiático e a logística dos crimes. Mas, principalmente, como o serial killer acaba entrando no hall dos ícones da cultura pop.
O que é ainda mais preocupante é que os seriais killers agora podem usar a experiência compartilhada em documentários e programas de TV para aumentar suas chances de literalmente se safarem de um assassinato. Um exemplo é o do “assassino do Craigslist” que foi inicialmente suspeito de ser um policial por causa de seu aparente conhecimento das técnicas de investigação da cena do crime. Mas a polícia logo percebeu que qualquer pessoa que assistisse a programas criminais como CSI poderia ter aprendido essas técnicas – leia PÁVIA, Will, “Craig list serial killer destroy evidences with tricks learnt from TV crimes show”, clique aqui.
Nossa obsessão mórbida por seriais killers cria uma demanda por programas sobre esses crimes que os canais de TV e plataformas de streaming estão dispostos a atender.
Pois a comédia de horror Círculo Vicioso (Vicious Fun, 2020), de Cody Calahan (Let Her Out, Oak Room) é um mergulho nesse verdadeiro subgênero da cultura pop envolvendo o fascínio popular sobre assassinos seriais. Um escritor de uma revista chamada “Vicious Fanatics”, e aspirante a roteirista de filmes de terror, conhece da pior maneira possível a realidade muito além dos clichês daqueles filmes clássicos de terror dos anos 1980: ele acaba caindo numa espécie de grupo de autoajuda de assassinos. Para descobrir que toda sua cinefilia não ajuda em nada.
Tudo se passa numa única noite alucinante, lembrando o roteiro do filme de Martin Scorsese After Hours (1985) que ajudou a criar o subgênero “desconstruindo o yuppie” naquela década: como um protagonista certinho e bem-sucedido é vítima de uma sequência de eventos em cadeia exponencialmente perigosos que o ajudam a “cair na real”.
Como Círculo Vicioso é, inicialmente, uma homenagem àquela década, o filme emula esse subgênero. Apenas trocando o protagonista: sai o yuppie e entra no lugar um nerd cinéfilo.
O Filme
As texturas são em neon brilhante anos 80 em cada cena do filme, O cenário e o design dos personagens demonstram uma palpável veneração do diretor pela década de jeans de lavagem ácida, revistas underground com capas brilhantes e fitas VHS, transmitindo uma genuína apreciação pelos clássicos cults produzidos durante os anos 80.
Na América de 1983, Joel (Evan Marsh) é o “subeditor assistente” e crítico de cinema da revista de terror “Vicious Fanatics”, que percebe que sua paixão platônica e colega de quarto Sarah (Alexa Rose Steele) está namorando um aparente jovem e valentão babaca. Joel segue o pretendente de Sarah até um restaurante chinês na periferia da cidade, com a intenção de gravar seus comentários inevitavelmente idiotas e apresentá-los a Sarah como motivo para ela evitá-lo.
Ele inicia uma conversa aleatória com aquele rapaz em rodadas de coquetéis fortes, que eventualmente se apresenta como Bob (Ari Millen), um suposto corretor de imóveis local.
Joel tropeça bêbado em um depósito no fundo do restaurante e desmaia até o local fechar. Ao acordar, as únicas pessoas que restaram no local estão fazendo parte uma reunião fechada de autoproclamados assassinos em série. Todos começam a achar que o pobre Joel é “Phillip”, o último dos participantes assassinos que está sendo esperado. O círculo de sociopatas consiste no assassino palhaço sem emoção chamado Fritz (Julian Richings), o chef de cozinha canibal Hideo (Sean Baek), o assassino em massa da CIA, Zachary (David Koechner), e um slasher especializado em matar adolescentes no meio do ato sexual, apropriadamente chamado Michael (Robert Maillet). E uma garota durona, imprevisível e com um olhar ameaçador chamada Carrie (Amber Goldfarb).
Bob, que anteriormente disse ser um corretor de imóveis, também se junta ao grupo, revelando-se um verdadeiro “psicopata americano” (uma alusão ao personagem de Christian Bale no filme homônimo de 2000), com uma obsessão por cartões de visita e capas de chuva de vinil.
Joel descobre que todos os seus vastos conhecimentos sobre os clichês de assassinos seriais em filmes de terror não serão páreo para essa confraria de seriais killers reais, passando o restante da madrugada lutando para sobreviver ao lado de Carrie – que se revela uma assassina profissional de seriais killers.
Serial killer: o asceta mundano
O ritmo sólido do roteiro lembra de imediato After Hours de Scorsese – um jovem lutando para sobreviver num bairro chinês proibido: outra alusão aos anos 80, o filme Os Aventureiros do Bairro Proibido (1986). O toque final é a trilha musical em synthpop.
De toda essa nostalgia da cultura dos anos 1980, salta à frente o tema bem década de 1990, iniciado com Assassinos por Natureza de Oliver Stone: o entrelaçamento do sensacionalismo midiático com a violência real da sociedade – de atiradores em massa a seriais killers.
Não é por menos que o jornalista e crítico social norte-americano Neal Gabler cunhou o conceito de “efeito Heisenberg” no final da década no seu livro “Vida O Filme: Como o entretenimento conquistou a realidade” – a transformação da realidade numa forma de espetáculo e entretenimento através da influência da cultura das celebridades, do cinema e dos meios de comunicação.
Fazendo uma alusão ao célebre “Princípio da Incerteza” do físico Werner Heinsenberg, a realidade tornou-se tão mediatizada que o que assistimos, ouvimos e lemos nas mídias é nada mais do que o efeito social dos meios de comunicação ao cobrir a realidade. Mas principalmente, os esforços das pessoas em chamar a atenção das mídias para alcançar algum quinhão de visibilidade ou celebridade instantânea.
Jack O Estripador, o avô de todos os seriais killers, não viveu ao ponto de testemunhar a era da sociedade do espetáculo. Seus assassinatos seriais tinham a marca da punição religiosa (matava prostitutas) e seu “labor” se assemelhava ao do monge nos claustros medievais, autoflagelando-se na privacidade da sua cela tendo unicamente Deus como testemunha.
Hoje o serial killer é um asceta mundano: o fascínio popular e midiático por esses assassinos retroalimenta a violência ritual. O serial killer não mata mais para Deus em sua psicose punitiva e religiosa, mas agora para a comunidade abstrata da audiência das mídias. Embora apague seus rastros e dissolva os corpos das suas vítimas em ácido, paradoxalmente busca a celebridade para se redimir dos abusos que sofreu e a resultante baixa autoestima. Como detalhou o pesquisador Robert Ressler, autor do conceito “serial killer”.
Círculo Vicioso faz uma espécie de metalinguagem desse efeito Heisenberg que envolve violência e sociedade: um crítico de filmes de terror especialista em clichês do gênero e os assassinos reais, tão autoabsorvidos em seus personagens, que esquecem que são clichês vivos que matam.
Ficha Técnica |
Título: Círculo Vicioso |
Diretor: Cody Calahan |
Roteiro: Cody Calahan, Christopher Warre Smets, James Villeneuve |
Elenco: Evan Marsh, Amber Goldfarb, Ari Millen, Julian Richings, Robert Maillet, Sean Baek |
Produção: Particular Crowd, Black Fawn Films |
Distribuição: Drop-Out Cinema |
Ano: 2020 |
País: Canadá |