quinta-feira, novembro 04, 2021

Em 'Lamb' a natureza é o nosso espelho irracional



Esse é para todos aqueles amantes de filmes estranhos. "Lamb" (2021), estreia do diretor islandês Valdimar Jóhannsson, é um imediato candidato a filme cult. Numa estranha atmosfera de fábula fantástica, "Lamb" faz uma espécie de terror folk ao mostrar um casal de fazendeiros, isolados na Islândia rural, vivendo sob o silencioso peso de alguma perda não revelada. Até que uma ovelha do rebanho tem um filhote que é imediatamente adotado pelo casal como fosse uma filha. Por que estão o tratando como um bebê?  Eles aprenderão da pior maneira possível o preço de projetarmos psiquicamente nossa irracionalidade na natureza: ela é apenas o espelho das nossas ansiedades, medos e desejos. Mas tudo o que temos de volta é a hostilidade e indiferença.

O leitor deve lembrar do filme As Aventuras de Pi (Life of Pi, 2012) onde o protagonista se salva de um naufrágio em um bote na companhia de um tigre-de-bengala, uma hiena, um orogotango e uma zebra. Depois do naufrágio, ele luta para sobreviver naquela pequena amostra da cadeia alimentar terrestre.

Antes desses incidentes, acompanhamos nas sequências iniciais o protagonista levar um pedaço de carne para o tigre-de-bengala chamado Richard Parker, preso em uma jaula no zoo da família. Ele acredita que o tigre possui uma alma e que virá docilmente comer a carne em suas mãos. Quando o tigre já está ameaçadoramente próximo, seu pai o arranca de frente de jaula e diz enfurecido: “Acha que esse tigre é um amigo? Ele é um animal, não um boneco!”. “Animais têm alma, eu vi nos olhos dele”, responde Pi chorando. “Animais não pensam como nós... Quando olha nos olhos dele você vê suas emoções refletindo de volta, nada mais!”, dispara o pai.

A Natureza é hostil e violenta. Por isso, desde tempos imemoriais, a Natureza impingiu no espírito humano o terror, mas ao mesmo tempo o impulso de dominá-la, desde o mito, passando pela religião até chegar à tecnociência: explicar, relatar, classificar e, por fim, dominá-la. 



Mas toda essa jornada da “dialética do esclarecimento” (Adorno, Horkheimer) cobra um preço: renúncia e recalque do prazer, por meio da auto-dominação. Nessa guerra travada contra a Natureza, condena o homem ao mal-estar, sofrimento e ódio contra a própria civilização. Por isso, o homem projeta irracionalmente as suas próprias dificuldades psíquicas no mundo: assim como Pi, projeta sua própria ideia de alma em um tigre-de-bengala que apenas quer se vingar da dominação. Cego por essa idealização da Natureza, não percebe que tudo o que ela pretende é se “vingar” – isto é, ser apenas aquilo que ela sempre foi: hostil e violenta.

O inquietante e estranho filme Lamb (2021), primeiro longa do diretor islandês Valdimar Jóhannsson, nos coloca diretamente dentro dessa questão ao nos contar uma espécie de horror folk – uma fábula em que coloca os protagonistas em um tabuleiro de jogo no qual a Natureza é o principal protagonista: a beleza selvagem de uma fazenda na Islândia rural, cercada de montanhas nevadas, rebanhos de carneiros, cavalos selvagens e cabras montanheses com suas grossas pelagens. 

Tudo começa lento e silencioso quando acompanhamos um casal de fazendeiros em sua melancólica rotina na fazenda. Mas há uma melancolia tensa e misteriosa. Paira no ar alguma perda recente da qual o casal ainda não superou.

São quase vinte minutos iniciais de silêncio, nos quais a natureza com seus animais e paisagens glaciais são os grandes protagonistas. Que parecem apenas observar a melancolia humana tensa e que, apesar de tudo, tenta manter a hierarquia da superioridade do homem sobre a natureza: manter os carneiros em seus estábulos, o trator diariamente arando a terra, alimentar os animais e... parir os filhotes do rebanho de carneiro. É final do ano, portanto, a época de chagada dos novos filhotes ovinos.

Em estilo narrativo slow-burn e entre o terror e o fantástico, Lamb desenrola o mesmo drama da “dialética do esclarecimento” de Adorno e Horkheimer: irracionalmente projetamos na natureza, e no próprio cosmos, nossas ansiedades, medos, desejos e esperanças. É como se ela se submetesse a nós e, magicamente, passasse a ter algum propósito ou sentido humano. Porém, está além de qualquer sentido: revela-se um cosmos sem propósito e hostil à nossa presença.




O Filme

Noite de Natal. Lá fora uma forte borrasca de neve enquanto no estábulo as ovelhas estão estranhamente agitadas. O marido Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) e a esposa Maria (Noomi Rapace – Prometheus) trocam olhares silenciosos, sugerindo que há algo mais: ocorreu alguma insuperável perda naquela casa.

Um peso paira sobre o casal; o quarto de uma criança vazio aponta para algo trágico demais para ser dito. 

No dia seguinte, sua rotina regular é perturbada pelo latido de seu cachorro perto do celeiro; o casal entra para ver o que está acontecendo com as ovelhas e, parecendo surpreso, percebe que uma das ovelhas deu à luz sem ajuda. Ambos parecem confusos, preocupados, mas de alguma forma parecem ter despertado. Aquele nascimento de alguma maneira fez seus olhos brilharem. Embrulham a pequena criatura em um cobertor, levam para dentro de casa e a esposa passa a alimentá-la com uma mamadeira. 

Pegando o recém-nascido nos braços, Maria o enrola em um cobertor. Eles o alimentam com leite com mamadeira e o criam em casa, arrastando um berço de uma área de armazenamento para um espaço ao lado de sua própria cama, onde viverá o cordeiro. 

Ocasionalmente, Maria embala-o nos braços enquanto caminha em círculos, sussurrando uma canção de ninar em seu ouvido e embalando-o para dormir. Neste ponto, o espectador provavelmente se perguntará o que exatamente está acontecendo. Por que eles estão tão apegados a este cordeiro? Por que eles estão o tratando como um bebê? O que há com as ovelhas paradas do lado de fora de sua porta, balindo aparentemente com raiva deles?




As duas vinganças da natureza – alerta de spoilers à frente

Mas Lamb constrói seus personagens dentro de uma lacuna entre o que os personagens sabem (ou, nesse caso, quem eles são) e o que é mostrado, fazendo o espectador ter que procurar pistas para saber o quê está acontecendo.

O cordeiro em questão se revela ser realmente um híbrido de cordeiro e humano - sua cabeça é a de um cordeiro, e seu braço direito é uma pata dianteira peluda de cordeiro, mas o resto de seu corpo é humanoide. 

Maria e Ingvar chamam a menina ovina de Ada, vestem-na com camisolas e calças e criam-na como filha. Alguns anos se passam. Ada agora é uma criança tranquila, que anda ereta; ela não fala, mas entende o que Maria e Ingvar dizem. 

Em seguida, a família recebe um visitante – Pétur (Björn Hlynur Haraldsson), irmão rebelde de Ingvar, um ex-músico de rock, que aparece repentinamente fugindo de problemas com credores. Maria e Ingvar ficam surpresos com a volta de Pétur. É a primeira vez em anos que ele está lá e, portanto, é a primeira vez que encontra Ada. 

Seu ceticismo sobre a decisão do casal de criá-la assume um caráter especialmente amargo e ameaçador, por razões que são apenas tardiamente e muito vagamente sugeridas ao espectador. Maria e Ingvar temem que Pétur faça algo para prejudicar Ada ou se livrar dela, e esse ar de medo e ameaça - combinado com os esforços de Pétur para iniciar um caso com Maria - impulsiona o drama.




Pétur representa o mal-estar da civilização. “Vão brincar de casinha agora?”, recrimina. Apesar de tudo vago, há sugestões de que Pétur e Maria tiveram um caso, o que formaria um clássico triângulo amoro entre os irmãos. Pétur é avesso à vida familiar que o casal tenta recomeçar de forma farsesca com a nova filha híbrida.

Essa é a primeira vingança da natureza: o retorno do recalcado, das pulsões proibidas pela civilização.

A segunda vingança, o casal conhecerá da pior maneira possível ao final do filme. 

Certamente, Adorno e Horkheimer concebiam a vingança da natureza através da primeira forma de vingança apresentada pelo filme: a vingança pulsional que ameaça os pilares da sociedade através da rebelião, mal-estar, ansiedades, medo etc.

Mas Lamb vai além: projetamos na realidade exterior (em nossos pets domésticos, nos animais do zoológico ou nas paisagens catões-postal que promovem a indústria do turismo) uma natureza dócil, fetiche, atropomorfizada, pronta para ser manipulada ou mesmo mercantilizada. 

Mas ela pode se vingar revelando a natural hostilidade e indiferença, nos certificando que não temos lugar nesse mundo.


 

Ficha Técnica 

Título: Lamb

Diretor: Valdimar Jóhannsson

Roteiro: Sjón, Vadimar Jóhannsson

Elenco: Noomi Rapace, Hilmir Snær Guðnason, Björn Hlynur Haraldsson

Produção: Black Spark Film & TV, Chimmey Poland, Chimmey Sweden

Distribuição:  A24, Mubi

Ano: 2021

País: Islândia, Suécia, Polônia

 

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