quinta-feira, fevereiro 04, 2021

Drogas sintéticas análogas e a persistente ilusão do tempo no filme 'Synchronic'


Drogas sintéticas análogas são uma febre no EUA nesse momento de isolamento social, com números recordes de overdose – são análogas às drogas ilegais, mas com uma ligeira modificação molecular que permite a “legalidade”, podendo causar efeitos imprevisíveis. E se um desses efeitos for um estado alterado de consciência que permita ao usuário viajar brevemente no tempo? Junte essa experiência com a teoria do “Bloco Universal” de Bradford Skow, professor do MIT (a coabitação do passado, presente e futuro no mesmo contínuo tempo-espaço), e teremos o filme “Synchronic” (2019): dois paramédicos encontram estranhas mortes no turno da noite, todas envolvendo uma nova droga chamada “Synchronic”. Seus efeitos trarão efeitos devastadores em suas vidas: a ruptura da ilusão do tempo.

Em uma carta de condolências enviada por Einstein à família de seu amigo Michele Besso, morto em 1955, estava escrito: “Ele partiu desse mundo um pouco antes de mim. Isso não significa nada. Para aqueles como nós que acreditam na física, a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma persistente ilusão”. 

Essa famosa citação, que é a epígrafe que abre a série alemã Dark (já analisada pelo Cinegnose, clique aqui), também foi a inspiração para os cineastas Justin Benson e Aaron Moorhead escreverem e dirigirem Synchronic (2019), filme que é um verdadeiro conto sobre relatividade, tempo, sorte e destino.

Mas também foi inspirado na proposta pelo professor do MIT (Massachussetts Institute of Technology), Bradford Skow, de que passado, presente e futuro coabitam, mas em dimensões diferentes. É o conceito de “Bloco Universal” defendida no seu livro “Objective Becoming” que, segundo a dupla Benson e Moorhead, é uma ideia presente em trabalhos do escritor Alan Moore como “Watchmen” e “Jerusalém”.

Em “Objective Becoming”, Skow argumenta que tempo deve ser considerado como uma dimensão do espaço-tempo, como sustenta a teoria da relatividade. Dessa maneira, ele não “passa” por nós, mas faz parte do tecido maior do universo – ao invés de ser algo que se move dentro dele. A teoria do universo em bloco diz enquanto nós nos espalhamos pelo tempo, os eventos do passado, presente e futuro se distribuem pelo espaço.

Essa teoria possui uma base na teoria do espaço e do tempo unificados, proposta por Albert Einstein em 1915. Em sua teoria geral da relatividade, o físico alemão propunha que o espaço-tempo toma forma de maneira múltipla ou contínua, que podem ser visualizados como um espaço vetorial quadridimensional. 

Em seu livro, Skow considera a teoria dos “holofotes em movimento”, que coloca passado e o futuro em pé de igualdade com o presente. No entanto, a teoria sustenta que apenas um momento de cada vez está absolutamente presente, e esse momento continua mudando, como se um holofote estivesse se movendo sobre ela.



Mas, e se esse holofote fosse uma droga sintética análoga, chamada “Synchronic”? Essa foi outra descoberta feita pela dupla de cineastas que acrescentou o principal elemento da narrativa:  são drogas sem prescrição. Você pode comprá-los em uma drogaria qualquer nos EUA. Esse é o ponto principal do filme Synchronic. Essas drogas são análogos químicos das drogas. Mas eles são legais porque os químicos modificaram ligeiramente a molécula para que aquela molécula específica não seja ilegal. 

Portanto, têm efeitos semelhantes a essas drogas, mas também têm efeitos colaterais potencialmente perigosos e selvagens. No caso do filme, transforma-se num “holofote” capaz de criar uma viagem aleatória pelo passado ou futuro através do espaço físico – uma diferença de deslocamento em centímetros numa sala, pode ser a diferença entre ir a algum ponto do passado ou futuro no contínuo tempo-espaço.

Mas apesar de Synchronic discutir todos esses temas abstratos em torno de passado e futuro ou como a vida vai se desenrolar de um segundo para o outro, o filme nos deixa uma lição moral: a única coisa real é o presente e é para aí que deve ser direcionada toda a nossa atenção, porque é muito mais emocionante e surpreendente do que tentar imaginar, por exemplo, para onde tudo termina no futuro.




O Filme

Os paramédicos Steve Denube (Anthony Mackie) e Dennis Dannelly (Jamie Dornan) encontram uma série de estranhas mortes e ferimentos no turno da noite. Em todos os lugares onde encontram mortos em estados bizarros, encontram uma pequena embalagem vazia de uma droga sintética chamada “Synchronic” – um novo narcótico mortal que chega ao mercado de Louisiana e rapidamente faz vítimas, sintetizada a partir de uma flor rara encontrada na Califórnia.

O filme começa com um casal tomando a pílula sintética em um quatro de hotel para em seguida ficarem alucinados com visões inexplicáveis – ela, por exemplo, é atacada por uma cobra no quatro que se tornou numa selva. Mais tarde a dupla de paramédicos encontrará inexplicavelmente veneno no sangue da vítima.

Em outro chamado, encontram um suposto esfaqueamento, porém a arma do crime é uma espada antiga fortemente corroída, espetada na parede. Além de encontrarem em outra cena objetos antigos, como uma moeda de séculos atrás.

Nesse meio tempo, a filha de Dennis, Brianna (Ally Ioannides), consome a droga em uma festa para depois desaparecer sem deixar qualquer vestígio.

A partir desse ponto, o personagem Steve assume a narrativa: ele descobre que possui um tumor cerebral terminal. Sem nada a perder, começa a experimentar pílulas da Synchronic, explorando seus efeitos surpreendentes e altamente perigosos por meio de um diário em vídeo. 

É a partir desse momento que o filme realmente decola: Steve foi um estudante de Física que abandonou a universidade para seguir a carreira de paramédico. Diante de uma câmera de vídeo, Steve vai fazendo testes e criando hipóteses que escreve em um quadro branco – a cada ingestão da pílula, ele é deslocado para algum ponto do passado, dependendo da localização na sala: sentado no sofá ou em pé alguns metros à frente. 




Por sete minutos volta ao passado (em geral, na América colonial e escravagista) numa jornada perigosa: se ao final do tempo não retornar exatamente ao ponto em que estava, ficará retido naquela época para sempre – talvez Brianna teve esse mesmo destino. O que fará Steve retornar ao local da festa para procurar o ponto exato onde ele estava quando desapareceu, e tentar resgatá-la.  

Mas para Steve essas jornadas fantásticas através do tempo são uma exasperada provação: ele é negro, e suas breves viagens ao passado encontrará a América racista e escravagista – encontrará a velha Louisiana com supremacistas brancos, guerra civil, confederados e homens armados o confundindo com um escravo.

O presente como “instante oportuno”

O passado que pesa como um pesadelo sobre os vivos está presente por todos os lados: a lembrança do racismo persistente na América em Steve, o passado trágico ligado ao furacão Katrina que transformou Dennis em um homem emocionalmente fechado, misógeno e alcoólatra. E o desaparecimento da filha Brianna está fazendo a sua vida conjugal ser reduzida a pedaços. A dupla de paramédicos lembra todos aqueles veteranos de guerra que se tornaram detetives ou gangsters dos filmes policiais noir do pós-guerra.

A viagem no tempo como efeito colateral da droga sintética traz o elemento do lirismo e do mistério: lindas tomadas de céus noturnos estrelados com panoramas galácticos, cortes de câmera inexplicáveis que sinalizam estados alterados de consciência de Steve (câmera lenta, paisagens urbanas de cabeça para baixo e um toque do filme Tenet, de Christopher Nolan, com uma ambulância se movimentando de marcha à ré. 



Porém, depois de toda a abstrata reflexão sobre a permanência do passado e futuro em um único bloco do tempo-espaço, resta aos protagonistas uma única certeza: a única coisa real é o presente – aquilo que os gregos antigos (principalmente os estóicos) chamavam de “instante oportuno”, o instante de plenitude e perfeição retirado do tempo, a breve duração que foge do tempo ilusório, dos acontecimentos que não dependem de nós.

O instante oportuno pelo encontro acidental de todas as causas favoráveis – o presente, a única coisa de real ou concreta que nos resta para retirar o peso do passado de nossos ombros.


 

 

Ficha Técnica 

Título: Synchronic

Diretor: Justin Benson, Aaron Moorhead

Roteiro: Justin Benson 

Elenco: Anthony Mackie, Jamie Dornan, Katie Aselton, Ally Ioannides

Produção: Patriot Pictures

Distribuição:  VVS Films

Ano: 2019

País: EUA

 

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