A repercussão da participação do humorista Marcelo Adnet no Roda Viva da TV Cultura foi muito reveladora de como a esquerda ainda continua prisioneira da cilada semiótica armada pela guerra híbrida brasileira desde 2013. Como sempre de forma reativa, resolveu “lacrar” contra Marcelo Tas e sua pergunta sobre a posição de Adnet como humorista “de esquerda”. “Se serviu para alguma coisa, o Roda Viva confirmou que Marcelo Tas é idiota”, foi o tom reativo. Mas serviu sim! Só que a esquerda não percebeu. A oportuna pergunta do humorista Hélio de la Peña e a resposta de Adnet revelaram o segredo do ardil semiótico das estratégias da extrema-direita que a esquerda simplesmente ignora: a canastrice na política, desafiadora até para humoristas: quando os próprios políticos antecipam e emulam a charge política, neutralizando a crítica do humor.
Em postagem bem anterior, lá pelo final de 2014 em plena intensidade das bombas semióticas na guerra híbrida brasileira, este Cinegnose observava como os governos petistas não conseguiam criar uma agenda própria e estavam presos em um infernal efeito pinball – sobre isso, leia o livro deste humilde blogueiro “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira” – clique aqui.
Assim como numa máquina pinball, bolinhas eram seguidamente disparadas: a agenda do mensalão; depois o caos aéreo; a descontrolada inflação do tomate; as manifestações de rua do “gigante que acordou”; o chamado “terceiro turno” etc. Numa estratégia reativa, o Governo apenas tentava fazer um controle de danos criando para si mesmo um ciclo vicioso infernal que... deu no que deu.
Seis anos depois, mesmo sofrendo o impeachment de 2016 e vendo impotente a conquista do Estado pela extrema-direita, a esquerda permanece refém desse ciclo vicioso, como se fosse prisioneira numa cena traumática (o pico da guerra híbrida entre 2013 e 2016 que desfechou o golpe), repetindo eternamente a cena para ver se termina de uma forma diferente. Algo assim como Bill Murray no filme O Feitiço do Tempo.
Refém desse efeito pinball, a esquerda adota duas formas recorrentes de ação:
(a) sempre de forma reativa, dá legitimidade às buchas de canhão enlouquecidas da extrema-direita como a tal da Sara Winter e o episódio dos atos em frente ao hospital contra o aborto da menina de 10 anos vítima de estupro do próprio tio. Um simples fato policial se judicializa, enquanto a esquerda ocupa as redes denunciando o ato “terrorista” e atos em defesa da menina se dirigem também ao hospital;
(b) Assim como a extrema-direita, também quer “lacrar” nas redes sociais, querendo “expor” e “cancelar” seus inimigos midiáticos. Enquanto a direita “mita”, a esquerda tenta “lacrar”.
É o que torna emblemática a reação da esquerda à participação do humorista Marcelo Adnet no programa Roda Viva da TV Cultura. Das 1h36 minutos da entrevista, as críticas progressistas ficaram em loop, fascinadas, repercutindo apenas um trecho do programa: a “lacração” de Adnet sobre Marcelo Tas, notório “novo tradicionalista” – sob a fachada pós-modernista tenta esconder o conservadorismo.
“Vai pra Libéria”
Marcelo Tas foi “detonado” nas mídias sociais quando os internautas progressistas “subiram o tom” ao critica-lo por propaganda anti-comunista e anti-politicamente correto e repercutiram a resposta “lacradora” do humorista – “Vai pra Libéria”... “pergunta idiota”... “se serviu para alguma coisa, o Roda Viva confirmou que Marcelo Tas é um idiota”, reagiu com o fígado o blog DCM...
Essa foi a única coisa que ficou na memória seletiva de uma esquerda que parece não ter superado a “cena primitiva” (Freud) e revive ad infinitum o trauma, tentado se vingar de seus algozes.
Contaminados pelos eflúvios hepáticos, simplesmente deixaram passar o trecho mais importante da entrevista. Importante, porque reveladora de uma das mais eficientes estratégias semióticas da atual direita alternativa (alt-right): a canastrice como ferramenta política – recurso de saturação retórica no qual personagens reais emulam personagens e narrativas ficcionais midiáticas, criando um efeito paradoxal de legitimar personagens políticos “canastrões” ou “overact” ao imitar clichês ou estereótipos da ficção.
Vamos transcrever a resposta de Adnet à oportuna pergunta do humorista Hélio de la Peña:
Hélio de la Peña: O Brasil foi sempre muito generoso com os humoristas, mas de uns tempos pra cá eles, ao invés de fornecer assunto, eles fornecem já a piada pronta. Como lidar com essa concorrência desleal?
Adnet: Muito bem-dito, temos que reagir a essa concorrência desleal que está acontecendo... e é um desafio mesmo porque a piada já vem pronta, como aquele episódio do Ave Maria, por exemplo. Não precisava de muito mais coisa... A cloroquina com a ema... O jet ski ... é tudo muito surreal... e vem pronto, realmente.
Existem momentos que eu me limito a reproduzir o que aconteceu e coloco ali só um molhozinho, uma piada a mais para amarrar só para dizer: olha, isso aqui é um quadro de ficção, porque ele é quase real.
Está acontecendo de a ficção e a realidade se encontrarem (...) como o que estou fazendo é uma crônica, estou fazendo uma comédia que muitas vezes reproduz o que aconteceu. A Internet está trazendo essa dificuldade para o ator: como é que o ator vai criar um personagem mais fascinante do que o personagem que já existe? Então, muitas vezes quando acontece um absurdo, eu me limito a reproduzi-lo.
A canastrice é ainda um fenômeno ignorado tanto pela ciência da Política como na da Comunicação, como este humilde blogueiro já vem discutindo há algum tempo – clique aqui.
A força da charge política sempre foi a de exagerar características que políticos tentavam esconder sob a aparência de discursos sejam tecnocráticos (do economês, da gestão administrativa etc.), sejam do populismo tradicional (o do “pai dos pobres”, o do “rouba mas faz” etc.). Com o exagero, denunciar como os signos gestuais, fisionômicos ou corporais ocultam as verdadeiras intenções políticas.
A charge política clássica: denunciava a dissimulação com o exagero |
Por isso Hélio de la Peña observou que o Brasil sempre foi generoso com os humoristas.
O problema é quando a direita alternativa propõe o complexo jogo semiótico de misturar a ficção e realidade, o mapa com o território, a simulação com a dissimulação.
Charges políticas vivas
Hélio de la Peña e Adnet intuitivamente estão percebendo a dificuldade de os humoristas furarem esse jogo: e se os políticos se apresentarem já como piadas prontas? E se diante das câmeras e jornalistas atuarem como memes ou charges políticas vivas.
Bolsonaro é um cosplay de um meme “Thug Life”. A live de Bolsonaro da “Ave Maria” citada por Adnet é simplesmente um esquete de humor da trupe britânica de humor dos anos 1970 Monty Python em seu show de TV da BBC “Flying Circus”. Bolsonaro seguindo a ema com uma caixa de cloroquina na mão é outro esquete non sense.
Paulo Guedes aparentemente só de meia e o único vestindo uma máscara ao participar de um pronunciamento do presidente no meio dos ministros é outro exemplo: parece emular a polêmica criada pela capa do álbum Abbey Road dos Beatles: por que só Paul McCartney está descaço naquela faixa de segurança?
O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, querendo lotear a praia com cercadinhos com reserva por aplicativo é outro caso de surrealismo... Adnet apenas teve que introduzir um drone no seu esquete do “Sinta-se em Casa” do Globoplay para que o quadro se parecesse com ficção.
A charge política clássica procurava revelar através do exagero aquilo que estava oculto, dissimulado. O problema é que a estratégia semiótica alt-right é invertida: está na simulação, na hiper-realidade – é a realidade imitando a ficção.
A live da Ave Maria ou Bolsonaro atrás da ema são canastrices, simulações que nada ocultam, apenas desviam a atenção. Tudo está explícito: diante das milhares de mortes da COVID-19 Bolsonaro apenas retruca: “eu não sou coveiro!” emulando a máxima politicamente incorreta do personagem Alfred Newman na revista MAD nos anos 1970: “Quem? Eu me preocupar?”.
Os personagens da alt-right são tão truculentos, mal-educados, grosseiros, ignorantes que, nas suas supostas espontaneidades, emulam todos os exageros de todas as charges e personagens ficcionais do cinema e da TV.
Com isso conquistam corações, mentes e atenções. E também a agenda política: enquanto eles “mitam” a esquerda reativamente “lacra”.
A esquerda desdenha e apenas vê a direita como tosca e ridícula. Atuando como charges políticas vivas, resta aos humoristas progressistas arrumar algum signo que marque seu trabalho como “ficcional” – como o drone do esquete de Adnet.
O ato falho na Globo News |
O ato falho da Globo News
Outro flagrante sintoma dessa estratégia semiótica alt-right foi o ato falho do comentarista do programa “Em Pauta” da Globo News, o sociólogo Demétrio Magnolli. No meio do debate sobre Flávio Bolsonaro, rachadinhas e os supostos vazamentos da Polícia Federal na Operação Furna da Onça. Demétrio observou: “hoje discute-se sobre rachadinhas... no passado a corrupção pelo menos era mais glamourosa, hollywoodiana com grandes empreiteiras e contas no exterior...”.
Na mosca! O escândalo das rachadinhas não tem glamour ficcional: o mundo do baixo clero é tacanha demais. Enquanto “mensalão”, “petrolão” e os vazamentos mirabolantes das delações da Lava Jato emulavam um thriller ficcional da melhor verve de um roteiro hollywoodiano. Moro com sua fala de “marreco de Maringá”, procuradores em atuações overact nas coletivas com a imprensa, policiais federais armados até os dentes com toucas ninjas como rambos heróicos.
Por isso, nada contamina a imagem de Bolsonaro. Quem sabe: no dia que as denúncias das rachadinhas o transformarem em um personagem como Pablo Escobar com suas milícias de tráfico de armas e drogas, talvez o caso entre no campo da ficção, como um thriller de alguma série do Netflix. Então, terá a credibilidade e repercussão necessárias em uma opinião pública que somente consegue compreender a realidade a partir do viés da ficção.
Enquanto a esquerda não entender isso e tentar ficar apenas “lacrando” em cima de uma suposta tosquice da extrema-direita, continuará cada vez mais parecida com aquela situação do penetra animado que fica do lado de fora da festa tentando entrar de qualquer jeito.