quarta-feira, outubro 10, 2018

Bolsonaro é um avatar. Como enfrentá-lo?


Estamos à beira do desfecho de uma guerra híbrida iniciada em 2013 com as chamadas “Jornadas de Junho”. Num mecanismo tão exato quanto um “tic-tac”, passo a passo, um depois do outro, irresistível, sistemático: a Política foi demonizada, um governo foi derrubado, o psiquismo nacional envenenado e a polarização despolitizou e travou qualquer debate racional. Tudo iniciado pelas bombas semióticas detonadas diariamente pelas mídias de massas. E nesse momento o desfecho ocorre na velocidade viral das redes sociais. Por isso, Bolsonaro converte-se em um “candidato-avatar”: a Nova Direita descobriu a tática do “Firehose” – a espiral de boatos e desmentidos pelos “fact-checking” cria paradoxalmente o subjetivismo e relativismo que blinda o próprio candidato-avatar. Apesar de toda essa pós-modernidade, a Nova Direita tem o mesmo elemento de estetização da política criada pelo fascismo histórico: a narrativa ficcional cômica – de programas de humor da TV, Bolsonaro despontou como um “mito” de quem ria-se e não se levava a sério. Por isso, circulou livremente. Hoje, é o protagonista do “gran finale” da guerra híbrida. Como enfrentar um avatar?

Caro leitor, observe a foto abaixo. No futuro, quando pesquisadores procurarem entender como o Brasil foi capaz de destruir a Nova República e a redemocratização que levou à Constituição de 1988 (jogando o País numa distopia muito próxima à série brasileira Netflix 3%), certamente escolherão essa foto como símbolo desse movimento irracional de autodestruição.


Nesse flagrante postado pela repórter Bárbara Baião, da CBN, vemos uma funcionária de uma barraca se escondendo assustada com a invasão de cabos eleitorais numa visita do candidato à presidência Geraldo Alckmin na Baixada Fluminense em agosto desse ano. Como não conseguiu ser atendido, Alckmin se dirigiu a uma padaria mais próxima para tomar um cafezinho na tradicional foto de corpo-a-corpo numa campanha política.

É uma foto com raro poder de síntese (o fotógrafo Cartier-Bresson chamava de “momento decisivo”): se no passado a política de corpo-a-corpo era um evento até de festa com palanques e muitos momentos folclóricos (como Jânio Quadros, na campanha de 1960, com caspa nos ombros, sentado no meio fio tirando do bolso do paletó um sanduba de mortadela), hoje é um mix de incômodo e pânico.

Depois de anos de um trabalho diário do complexo jurídiciário-midiático em criar o ódio anti-PT e destruir a própria Política e a figura dos políticos, para as pessoas comuns imersas nos problemas do dia-a-dia, eleições e debates tornaram-se um estorvo.

Sintoma de uma espécie de “refeudalização da esfera pública”, muito próximo daquilo que Habermas (“Mudança Estrutural da Esfera Pública”) e Umberto Eco (“A Nova Idade Média”) antecipavam como movimento histórico regressivo: absorvidas pelos seus problemas cotidianos e amedrontadas, as pessoas escondem-se nas suas vidas privadas, alheios ao que se passa lá fora – na Idade Média, o poder político da Igreja e as Cruzadas. Hoje, escondem-se alheios e bestificados às ameaças aos direitos e a vida cada vez mais difícil.

Ainda mais quando a própria Justiça Eleitoral, seguindo esse movimento de esvaziamento da Política, praticamente engessou o formato das eleições: menos tempo de campanha (principalmente entre os turnos), a liberdade para o “autofinanciamento”, restrição de diversas formas tradicionais de propaganda em ambientes públicos. Chegando ao ponto de no dia das eleições somente serem permitidas manifestações políticas individuais e silenciosas (adesivos, broches etc.). Qualquer manifestação coletiva se tornaria “crime eleitoral”. O que claramente prejudicou centro-esquerda e esquerda, cuja militância tradicional sempre foi mais aguerrida e numerosa.

Sem falar nos modelos igualmente engessados dos debates entre candidatos na TV com poucos segundos para se fazer perguntas, réplicas e tréplicas.

Sem o debate, o contraditório ou eventos políticos que ocupem os espaços públicos, tudo conduziu para a atual despolitização e o surgimento do suposto “novo”, identificado com aqueles candidatos “anti-política” e “antissistema”. Resultando nessas eleições na chamada “renovação” das Assembleias, Câmara e Senado: uma profusão de pastores evangélicos, policiais, capitães, sargentos, juízes, ex-ator pornô, empresários – como ironiza o humorista Marcelo Adnet, candidatos a CEOs do Brasil. 

Eduardo Bolsonaro com Steve Bannon, estrategista-chefe da campanha de Donald Trump

O nascimento de um avatar


Sincronicamente, tudo isso favoreceu a estratégia de campanha do candidato Jair Bolsonaro concentrada em redes sociais – afinal, contou com a expertise do homem-chave da campanha de Trump, Steve Bannon. Aquele que contratou a Cambridge Analytics para roubar dados acumulados dos perfis do Facebook para descobrir pessoas suscetíveis a receber teorias conspiratórias, sentimentos difusos de contrariedade, perfis paranoicos e assim por diante – clique aqui.  
              
Desconstruída a Política e despolitizado o debate (centrado nos conflitos culturais, morais e de costumes, deixando de lado a economia política), ficou evidente a eficiência da estratégia de pitacos em tweets ou vídeos postados no Whatsapp por Bolsonaro. A partir do atentado que sofreu, praticamente se converteu em um avatar – um tipo de comunicação auto-evidente, fechada em si mesma, construída sobre uma colcha de retalhos de mantras, slogans e frases feitas, que logo depois se desdobram em memes para viralizar nas redes sociais.

E até mesmo virou um avatar em um game on Line na qual a versão virtual do candidato do PSL ganha pontos ao bater e matar personagens mulheres, LGBTs e políticos de esquerda. É o game "Bolsomito 2k18" - clique aqui.

O que imediatamente nos faz lembrar do episódio da série britânica Black Mirror, “The Waldo Moment” – um mascote virtual com linguagem chula que “diz umas verdades sobre políticos” vira um candidato “antissistema” boçal e que se torna a esperança da nação. Não importa o que diga, está blindado pela opinião pública. Waldo torna-se um ídolo, porque da Política ninguém espera mais nada.

Essa natureza “avatar” de Bolsonaro não só revela o esvaziamento de tudo aquilo que chamamos de Política ou esfera pública (o espaço das ofertas de valores pelos meios retóricos, seja pela tentação ou sedução, agora substituídas pela intimidação e provocação) como também da propaganda através das mídias de massificação – rádio e TV.

O fascismo é cômico


O “novo” na política (a nova direita) descobriu a cultura viral: apela não mais para as massas em uma esfera pública, mas agora para indivíduos isolados em seus dispositivos móveis, numa esfera pública refeudalizada. Para pessoas cuja percepção da Política e dos políticos é análoga a da assustada funcionária da barraca da foto acima.

"Mitadas do Bolsonabo" no Pânico na Band: sempre o fascismo começa cômico

Porém, o curioso é que no seu início Bolsonaro não era uma avatar. Paradoxalmente, começou a ser conhecido através das mídias de massas, como um personagem cômico, non sense, folclórico, em programas televisivos de humor como Pânico na Band ou nas matérias híbridas de telejornalismo e humor do CQC.

Os quadros das “mitadas do Bolsonabo” no Pânico da Band ou os arroubos “folclóricos” de Bolsonaro no quadro “O Povo Quer Saber” no CQC em 2011, criando polêmicas bizarras com Preta Gil, foram alguns exemplos. Dessa maneira começou a construção do “mito” em tipos de programas televisivos que procuravam uma linguagem transmídia entre TV e convergência tecnológica.

Historicamente todo fascismo começa com personagens “cômicos”: histriônicos, canastrões, overacting. Por exemplo, Theodor Adorno (expoente da chamada Escola de Frankfurt) achava que o nazi-fascismo era cômico, principalmente porque ninguém levava a sério seus líderes no início, por emularem o histrionismo do cinema mudo. O que a princípio permitiu circular livremente esses discursos – Hitler e Mussolini eram amantes do cinema.

Por isso o fascismo (cuja principal estratégia foi a esteticização da política) é a canastrice cinematográfica como elemento que confere verossimilhança a discursos vazios e clichês – verossímil porque repete de forma hiper-real na política aquilo que as pessoas se acostumaram a ver na narrativa ficcional.

O que dizer então da jurista Janaína Paschoal, deputada mais votada por São Paulo pelo PSL (partido de Bolsonaro e autora do pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff), girando a bandeira nacional, descabelada, dando socos no ar em plena Faculdade de Direito da USP em 2016, como se estivesse possuída. Memes e piadas nas redes sociais, misto de vergonha alheia e gozação, a comparavam com a protagonista do filme O Exorcista.

"Waldo" na série "Black Mirror": a ficção antecipa a presença de avatares na Política
Hoje, participa da “renovação” da política, junto com um ex-ator pornô e de telenovelas Alexandre Frota, do mesmo partido. Não é por outra razão que todas figuras autoritárias surgidas nos últimos anos são igualmente cômicas: Berlusconi na Itália, Trump nos EUA, Sarkozy na França.

Na verdade esse traço cômico do fascismo foi a ante-sala das atuais estratégias híbridas nas redes sociais por meio de memes e teoria conspiratórias alucinadas e metonímicas – onde o candidato Cabo Daciolo é o paroxismo, a caricatura da caricatura do cômico no fascismo, capaz de ver ligações conspiratórias dos EUA com a Rússia e a China, todos eles supostamente numa conspiração internacional iluminati contra o Brasil. E de certa forma, o hiper-histrionismo do Cabo Daciolo acaba conferindo uma inesperada “verossimilhança” à canastrice de Bolsonaro – afinal, temos o prazer em descobrir alguém ainda muito mais caricato do que o “coiso”.

A blindagem do “Firehose”


Desde o discurso de um propagandista nazista em 1933 no Palácio dos Esportes em Berlim, quando calou um propagandista comunista ao comprovar que comunismo e capitalismo eram duas faces de uma mesma moeda, com retórica fulminante inspirada em modelos de narrativas ficcionais do cinema, a esquerda jamais se recuperou. E até aqui, em pleno século XXI, ainda não foi capaz de entender como os nazifascistas conseguiram manipular diferentes meios de comunicação de massas para estetizar a política – clique aqui.

Imagine então nesse momento em que a cultura da massificação está sendo superada pela cultura viral das mídias de convergência? Enquanto a direita consegue dar um segundo salto para a política algorítmica das redes sociais, a esquerda ainda mal conseguiu digerir o que foi a conquista de corações e mente através das velhas mídias de massas no século XX.

A Nova Direita conseguiu entender rapidamente como as novas tecnologias de convergência dão eficácia a velhos conteúdos como o ódio, polarização, medo, racismo etc. Mas principalmente compreendeu, ao lado das táticas atuais da Guerra híbrida que no Brasil chega ao seu estágio derradeiro (o entronamento do “novo” no poder), que até mesmo o suposto combate às fake News com as agências e “plataformas” de checagem de notícias, acabam por reforçar o próprio sofismo dos fake News.

O nome desse efeito chama-se “Firehose” – a estratégia de fabricar diariamente boatos, para depois serem negados pela checagem, fazendo com que a realidade se torne subjetiva. A ideia é justamente criar uma espiral incontrolável de interpretações de tal forma que faça a opinião pública não acreditar em fato algum.  Confirmando o ideal dos sofistas que tanta dor de cabeça deram a Aristóteles na Antiguidade: se todo mundo mente, resta escolher a narrativa que mais agrade – a mais retórica, engraçada, inteligente, bizarra. Assim como os inumeráveis vídeos dos youtubers. Ou assim como o personagem Waldo do episódio de Black Mirror.

Com a tática de Firehoose, quebra-se o consenso sobre a realidade (uma das bases do contrato político e da esfera pública). Nessa situação absurda, não adianta mais a checagem dos fatos acusar um boato de mentiroso – o público já comprou a narrativa na qual se agarraram.

Então, como enfrentar um candidato “Avatar”? A estratégia de comunicação de um avatar não é discutir com seu interlocutor (o outro candidato) com proposições ou argumentos. É gritar para a maioria silenciosa (para aquela pobre funcionária da barraca da foto acima) através das correntes das redes sociais – mídia ideal porque liquefaz todas as narrativas no relativismo.


Como enfrentar um avatar?


O mal já foi feito: estamos vivendo o desfecho da guerra híbrida iniciada em 2013 com as bombas semióticas diárias através das mídias de massas, tão analisadas por esse Cinegnose (clique aqui) e que a esquerda pouco se deu conta do propósito que estava por trás – apenas jogava na conta do “conservadorismo da grande mídia”.

Demonizada a Política e os políticos, criada a irresistível polarização política e envenenado o psiquismo nacional, web bots da direita agora surfam velozmente nas redes sociais com o poder catártico das “mitadas” de um avatar.

No pouco tempo que falta antes do fim, resta a Haddad, se não lutar no mesmo campo simbólico da direita (sair da bolha dos convertidos e também “gritar” para a maioria silenciosa), pelo menos deve tentar se descolar de todos os mitos criados pela tática híbrida de Bolsonaro:

(a) Descolar-se de Lula – Haddad começou mal o segundo turno, com uma visita aos cárceres de Curitiba imediatamente após os resultados eleitorais do primeiro turno;

(b) Descolar-se do PT – mais do que o necessário discurso propositivo para se diferenciar do discurso vago e genérico de Bolsonaro, Haddad também deve “mitar”: no pouco tempo que resta construir uma imagem, personalismo. Muito mais do que “Haddad ser Haddad”, deve ser personalista, descolando da imagem de “poste” ou mais um membro do quadro partidário;

(c) Fugir dessa verdadeira armadilha criada pela Guerra Híbrida e pela direita que são as discussões identitárias, de costumes, culturais etc. Nisso a direita nada de braçadas através da negatividade. O discurso deve partir para a economia política, política econômica, políticas educacionais, culturais etc. – pontos nulos no discurso vago de Bolsonaro, que sempre pede socorro ao seu “posto Ipiranga” Paulo Guedes;

(d) E, sim! Pedir desculpas à Nação. Mas não pela formação da “maior organização criminosa do mundo”. Mas por não ter compreendido o que realmente estava por trás daquelas “Jornadas de Junho” de 2013. Tanto no seu aspecto de verdade (a insatisfação de uma geração com a democracia representativa)  quanto no de mentira e manipulação – a Guerra Híbrida do Departamento de Estado dos EUA, que semeou diversas “primaveras” (Revoluções Populares Híbridas) explorando mazelas e pontos fracos de cada país. 

Isso sim, deve ser colado na imagem de Bolsonaro.

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