No filme “2001” de Kubrick o computador HAL 9000 queria matar toda a
tripulação da nave Discovery a caminho de Júpiter. Já no filme de estreia do
diretor Duncan Jones, “Lunar” (“Moon”, 2009), o computador Gerty de uma estação
lunar automatizada é mais amigável, sempre com um “smile” no monitor. Mas não
menos perigoso: ele representa o atual estágio algorítmico da inteligência
artificial – sempre com uma voz amigável, é como se jogasse migalhas de pão em
um labirinto para que o sigamos. Até nos perder de nós mesmos e esquecermos do
que foi um dia a noção de “inteligência humana”, envolvidos que somos em bolhas virtuais
que acreditamos ser a realidade. É o que acontece com Sam Bell em “Lunar” - um
solitário astronauta em uma estação lunar de mineração que, após três anos na
Lua, espera o final do contrato de trabalho com uma empresa, para retornar à
Terra. Mas seu único companheiro, o computador Gerty, criou o seu próprio
labirinto para Sam se perder.
O
espaço é indiferente, frio, solitário e impiedoso com ser humano. A partir
dessa ideia, o filme 2001 de Kubrick
em 1968 mostrou a possibilidade da exploração de psicodramas no gênero ficção
científica. E a fórmula floresceu nos anos 1970 em filmes como Silent Running (1972 – com Bruce Dern e
seus pequenos autômatos solitário e perdido muito além dos anéis de Saturno) ou
Solaris (1072) do mestre Tarkovsky
com uma tripulação que lentamente se deteriora psiquicamente experimentando
alucinações provocadas pelo oceano de um planeta.
Até
alguns anos mais tarde surgir Star Wars,
eclipsando o tema, marcando o início da era das space operas e cowboys no espaço. Ducan Jones (Contra o Tempo, Mudo), na sua estreia em longas com o filme Lunar (Moon, 2009) retoma o tema do psicodrama espacial. Certamente pela
influência do seu pai, o gnóstico pop David Bowie. Um fã de Kubrick e da
atmosfera de 2001, expressa na sua música
“Space Oddity”.
A
solidão de um astronauta em uma base lunar de mineração e sua lenta
deterioração psíquica que conduz à descoberta de uma impactante verdade.
Todo o
design da base lunar é francamente inspirado em 2001, aplicando a mesma fórmula
do tema: solitário em uma estação totalmente automatizada, sua única relação é
com a voz de um computador. Lá em 2001 é HAL 9000. Aqui em Lunar, Gerty (Kevin
Spacey) cuja voz sugere que foi programada pelos mesmos sintetizadores de HAL
9000.
Mas há uma grande e decisiva diferença, que
inscreve o filme de Duncan Jones no simbolismo gnóstico e na própria fase atual
da Inteligência Artificial. HAL 9000 representava todos os medos e ansiedades
humanas de que um dia os computadores substituiriam a inteligência humana,
tornando a humanidade descartável.
Em Lunar, Gerty é uma inteligência
algorítmica que aprende nas conversas com o protagonista San Bell, adaptando-se
às expectativas do usuário. Assim como um Alexia ou Siri nos computadores
atuais. Mas Gerty, representando os interesses corporativos de uma gigantesca
empresa de mineração lunar, não quer matar Sam. Ele existe e foi programado
para criar uma ilusão, uma realidade virtual na qual o protagonista viva e
trabalhe. E acredite que ao final do
contrato com a empresa retornará para a Terra e voltará para sua esposa.
A
comparação que Lunar suscita (entre
HAL 9000 e Gerty) revela o estágio atual da Inteligência Artificial: se no
passado, as máquinas e seus engenheiros de esforçavam em emular o raciocínio
humano (e um dia, virtualmente, substituí-lo), hoje os algoritmos das grandes
empresas do Vale do Silício simulam diálogo e inteligência para extrair de nós
informações (nossos hábitos, corportamentos e escolhas) para criar bolhas
virtuais, mundos em que supostamente vivemos e controlamos. Mas será mesmo que
estamos no comando?
O Filme
Sam Bell (Sam Rockwell) tem um contrato de três anos de trabalhos para a
Lunar Industries Ltd. Por toda a duração do contrato, ele é o único empregado
na estação lunar. Sua responsabilidade principal é a colheita e,
periodicamente,o envio para a Terra de foguetes com remessas de hélio-3, o
combustível limpo e abundante usado na Terra.
Sam não faz nenhum trabalho de mineração real, já que a estação é
totalmente automatizada. Mas são necessárias as mãos e o cérebro humano para
reparos, manutenção e inspeção.
Por não haver mais comunicação direta com a Terra por problemas técnicos
com um satélite, a única interação em tempo real passa a ser com Gerty, o
computador inteligente, cuja função é atender às suas necessidades do dia a
dia.
Tudo o que ele quer é retornar à Terra e à sua esposa Tess e sua jovem
filha Eva, que nasceu pouco antes de sua partida para este trabalho. Faltando
duas semanas para retornar, envolve-se em um acidente com uma das
colheitadeiras mecânicas e fica inconsciente. Acorda na enfermaria sem saber
como chegou lá.
Após sua recuperação, contraria as ordens de Gerty e sai da nave para
consertar a colheitadeira danificada onde faz uma descoberta inesperada:
encontra no veículo acidentado uma pessoa idêntica a ele. Um clone?
A partir desse ponto Sam começa a duvidar de sua sanidade mental e da
sua verdadeira identidade. Qual é o verdadeiro Sam Bell? E se ambos forem
clones, onde está o Sam original. Qual o envolvimento dos interesses
corporativos da Lunar Industries LTD nisso tudo?
A atmosfera de um filme gnóstico está presente em Lunar: a solidez a da
realidade e das memórias aos poucas vai se diluindo ao ponto do protagonista
não conseguir mais distinguir o real das projeções psíquicas.
O gnosticismo do Lunar
Sam Bell é o clássico protagonista que encarna o personagem gnóstico do
“detetive” - a solução do enigma que se
impõe a ele conduz ao questionamento radical de si mesmo e da própria
identidade.
Além do tema da perda da memória e, simultaneamente, o roubo das
memórias por um Demiurgo (a Lunar Industries Ltd) para a manipulação ao seu bel
prazer e a paranoia crescente do protagonista como um estado alterado de consciência
que rompe com a regularidade e constância que o computador Gerty (sempre com a
carinha do Smile no seu monitor) tenta manter na base lunar – sempre quando as
coisas começam a ficar tensas, Gerty pergunta com a voz sempre amigavelmente
inalterada: “alguém está com fome?”.
Esse é um ponto também interessante em Lunar: enquanto em
2001 HAL 9000 era perturbador, frio,
com aquela lente vermelha como o olho do computador, ao contrário, Gerty é
amigável, solícito e até com um senso de humor involuntário.
O imaginário da IA atual
Gerty representa o imaginário da atual premissa da
Inteligência Artificial: a algoritimica. Engenheiros computacionais do próprio
Vale do Silício como Jaron Lanier acusam essa etapa atual como uma “cultura da
autoabdicação” – enquanto os computadores se humanizam, os homens se tornam “processadores
de informação” rebaixando os padrões do que entendemos por “inteligência”.
Acreditamos atualmente que algoritmos e aplicativos
compreendem melhor nossos desejos e emoções. Mas é exatamente o inverso: por
rebaixarmos o conhecimento de nós mesmos, humanizamos (antropomorfizamos) os
aplicativos a ponto de acreditarmos que eles “nos conhecem”.
A máquina não é inteligente: o homem é que rebaixou a si
próprio. Por isso, mais facilmente é envolvido em bolhas virtuais criadas pelos
atuais gadgets: aplicativos, redes sociais etc.
Depois de décadas em que programadores e engenheiros
tentaram compreender o mecanismo da inteligência humaniza para imitá-la
ciberneticamente nas placas de silício, sem sucesso, agora a IA cria a
simulação de inteligência: vozes amigáveis simulam manter diálogos conosco – e
algumas máquinas até fazem consultas médicas, psicoterapias, nos orientam no
trânsito...
Mas, assim como Gerty em Lunar, na verdade estão criando mundos simulados a partir de
interesse de gigantes corporativas, como se jogassem migalhas de pães para que
nós os acompanhemos através de um labirinto até nos perdermos e esquecermos
quem nós fomos. Ou da própria noção de inteligência.
Assim
como no drama vivido pelo astronauta Sam Bell. Se na música “Space Oddity”, do
pai do diretor Duncan Jones, o astronauta “Major Tom” perde-se na solidão do
espaço cósmico, em Lunar o drama de
Sam será muito mais gnóstico: perder-se de si mesmo.
Ficha Técnica
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Título: Lunar
(Moon)
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Diretor: Duncan Jones
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Roteiro: Duncan
Jones, Nathan Parker
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Elenco: Sam Rockwell,
Kevin Spacey, Dominique McElligott, Rosie Shaw
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Produção: Liberty
Films UK
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Distribuição: Sony Pictures
Entertainment
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Ano: 2009
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País: Reino Unido
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