Em uma nova produção do cineasta dinamarquês Joachim Trier (de filmes
cult como “Oslo” e “Mais Forte Que Bombas”), dessa vez o diretor cria sua própria versão de “Carrie – A
Estranha” (1976) do mestre Brian De Palma. Em “Thelma” (2017) vemos o despertar
da sexualidade e do desejo de uma jovem educada por toda vida para ser uma
cristã devota. Longe de casa, estudando em uma universidade Thelma vê crescer
uma atração homoafetiva por uma colega, ao mesmo tempo que crises epiléticas
prenunciam poderes paranormais que eventualmente descobrirá. Mas ao contrário
do clássico de Brian De Palma, marcado pelo terror, “Thelma” se desloca para o
gênero fantástico: o despertar emocional de uma jovem extremamente reprimida cuja luta
interior criará emoções tão estressantes que romperão o próprio tecido da
realidade. Filme sugerido pelo nosso incansável leitor Felipe Resende.
A
experiência da chegada na adolescência, os primeiros relacionamentos afetivos
na high school; o momento da saída da casa dos pais ao entrar numa faculdade
longe de casa; as descobertas em um novo, e às vezes hostil, círculo social; as
novas e confusas experiências sexuais. São momentos marcantes numa determinada
fase da vida.
Tão
marcantes que o cinema, principalmente nos gênero thriller e terror, exploraram
esse mix de sexo, culpa e desejo no qual serial killers, monstros e espíritos
surgem como espécies de palmatórias punitivistas para colocar os jovens na
linha. Como fosse algum tipo de cruel ritual de passagem para o mundo adulto
que os espera.
É
impossível assistir ao filme norueguês Thelma (2017) sem pensar que o diretor
dinamarquês Joachim Trier está criando a sua própria versão do clássico Carrie – A Estranha (1976) do mestre
Brian de Palma. Em Carrie estão em germe todos os arquétipos que seriam
hiper-realizados na chamada “espantomania” – filmes de terror adolescente nos
anos 80 e 90 como muito sexo, culpa e punição.
A
diferença é que no clássico de Brian de Palma a descoberta do corpo, da
sexualidade e do desejo na adolescência entra em choque com a ordem religiosa e
moral do mundo adulto, transformando esse drama em uma narrativa de terror.
Enquanto na “espantomania”, a ordem repressiva adulta é ao mesmo tempo
simbolizada e encoberta nas figuras aterrorizantes de Jason, Fred Krueger etc.
Pura ideologia dos tempos da Era Reagan – o retorno dos valores conservadores
dos “tempos dourados” da América, emulado em filmes de terror como Sexta Feira 13 ou Pesadelo em Elm Street.
Joachim
Trier retoma a essência do seminal filme de De Palma: todos os instintos e
desejos adolescentes reprimidos pela moralidade adulta transfigurados em
poderes parapsíquicos numa jovem. E que poderão se voltar contra os próprios
pais.
Mas
Thelma renova esse tema ao transpor esse ritual de passagem da adolescência do
gênero terror para o fantástico – elementos sobrenaturais,
lúdicos e oníricos se misturam no dia-a-dia da protagonista, de uma forma
naturalista. Tudo é tão fluido e orgânico no filme que as duas dimensões (o
natural e o sobrenatural) se integram de tal maneira que o espectador termina
por não sentir essa dimensão fantástica como invasora de um mundo realista.
Pelo
contrário, parece que o estranho e o fantástico estão aí, subjacentes ao mundo.
Assim como as forças que emergem do corpo da jovem protagonista: o desejo, o
erótico e a paranormalidade.
O Filme
O
filme abre com uma cena impactante que vai ecoar por toda a narrativa. Um pai e
sua pequena filha atravessam um lago congelado para depois entrarem em um
bosque coberto por neve. O pai carrega um rifle com balas, quando de repente vê
um cervo parado entre duas árvores. Ele aponta para o animal, enquanto sua
filha, de costas para o pai, olha fascinada para o cervo esperando o tiro
fatal. Sem saber que seu pai desvia a mira do rifle para a cabeça da própria filha.
Num momento tenso no qual o pai não consegue encontrar coragem para puxar o
gatilho do tiro mortal.
A
narrativa salta alguns anos no futuro. Vemos Thelma (Eili Harboe), agora uma
caloura na faculdade de biologia, começando uma vida longe de casa. Apesar da
distância, Thelma ainda tem fortes vínculos com seus pais – fazem seguidas
chamadas para filha no celular, memorizam a rotina dos seus horários de aula,
ligam para saber o que Thelma está cozinhando para o jantar, ficam preocupados
quando a filha não consegue atender o telefone.
Seus pais são Trond (Henrik Rafaelsen), um médico clínico geral, e a mãe
cadeirante Unni (Ellen Petersen). São fundamentalistas cristãos que exigem que
Thelma não beba álcool e que mantenha a “sua essência” longe de casa, afastando-se
das tentações. Para tanto, transformam as seguidas conversas pelo celular em
uma espécie de confessionário – através da voz calma e pousada, doutrinam
Thelma.
Mas a impactante cena de abertura continua ecoando: há algo de errado,
algum segredo por trás daqueles pais tão compreensivos e que cercam de cuidados
e atenção, criando sua filha como uma
cristã devota.
Por exemplo, quando vemos Thelma confiando no pai e apoiando sua cabeça
no seu ombro, as imagens desencadeadas no prólogo reverberam. Há uma sensação
de ameaça palpável.
Quando Thelma, criada em isolamento, começa a vaguear pela atmosfera
social de festas no campus da universidade, ela é acometida pelas primeiras
crises de algum tipo de crise epiléptica – cai no chão se contorcendo. Até conhecer
Anja (Kaya Wilkins) que lhe oferece ajuda.
Anja é bela e confiante, ao contrário de Thelma: tímida, reclusa e
reprimida. O que resulta num tipo de atração que, aos poucos vai se transformando
numa atração homoafetiva. O violento conflito interior entre a personalidade
submissa, as ligações constantes dos pais e a repentina atração sexual é
inevitável. Thelma tenta lutar contra essa atração sexual. Mas parece ser tão
incontrolável quanto as crises convulsivas.
O centro da narrativa é o despertar emocional de uma jovem extremamente
reprimida cuja luta interior criará emoções tão estressantes que romperá o
próprio tecido da realidade. Joachim Trier segura a narrativa pelo ponto de
vista de Thelma: o que ela sabe é o que nós sabemos. Por isso, nunca é claro o
que é real ou não. Ela tem pesadelos que, às vezes, parecem flashbacks da sua
misteriosa infância.
Tudo é apenas paranoia religiosa ou de fato os pais, por alguma razão,
têm medo do que Thelma poderá fazer no mundo lá fora?
Do terror ao fantástico
O mais intrigante e inventivo no filme é essa passagem do drama de
Carrie/Thelma do terror para o gênero fantástico – uma narrativa elaborada
muito mais pelo imaginário do que por entidades sobrenaturais ameaçadoras. Uma
dimensão supostamente inexistente para governar dade convencional.
Mas a principal característica desse gênero é que a narrativa mantém
sempre uma atitude de dúvida diante das manifestações sobrenaturais, evitando
ou deixando em suspenso uma explicação para os eventos insólitos.
Em todo filme a protagonista se vê em situações claustrofóbicas e de
sufocamento: a biblioteca com pássaros se chocando violentamente no lado de
fora da vidraça, a crise convulsiva no fundo da piscina, a pequena casa dos
pais com cômodos pequenos, o mergulho onírico na profundidade do lago que se
conecta com a piscina da Universidade etc.
É claro que Joachim Trier explora as metáforas do enclausuramento,
solidão não apenas repressão da sexualidade – mas, principalmente, de atração
homoafetiva de Thelma.
Mas até mesmo no desfecho a ambiguidade própria do gênero fantástico
permanece: se o filme Carrie é mais
assertivo (afinal, os poderes paranormais da jovem vingam-se dos valentões da
escola e da mãe enlouquecida pela religião), em Thelma as coisas não ficam assim tão claras: estamos diante de uma
clássica estória de redenção de uma jovem reprimida pelo fundamentalismo
religioso? Ou os pais sabem de algo muito mais sombrio sobre a filha que a
própria Thelma não desconfia?
Certamente a comparação Carrie – A
Estranha com Thelma reflete não
só uma diferença de épocas (um mundo dos anos 1970 mais “preto e branco” com
claras divisões maniqueístas, muito diferente do atual mundo multipolar). Mas
também do appeal gnóstico que ronda os filmes da atualidade: os poderes
paranormais de Thelma não representam apenas a explosão dos instintos, desejos
e revolta adolescente – mas a ruptura do próprio tecido da realidade.
Ficha
Técnica
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Título: Thelma
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Diretor: Joachim Trier
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Roteiro: Eskil
Vogt, Joachim Trier
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Elenco: Eili Harboe,
Kaya Wilkins, Henrik Rafaelsen, Ellen Petersen
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Produção: Motlys,
Euroimages
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Distribuição: Mares Filmes
(Brasil)
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Ano: 2017
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País: Noruega, Dinamarca
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