segunda-feira, janeiro 08, 2018

"Paul Virilio - Pensar a Velocidade": o Acidente Integral é o nosso futuro?


Por décadas o urbanista e pensador francês Paul Virilio, através de inúmeros ensaios sobre estratégia, tecnologia e estética, nos alerta para o risco do “Acidente Integral”: o momento em que a velocidade dos sistemas computacionais automáticos, cujas decisões estão à cargo dos algoritmos, se precipitará catastroficamente sobre o Tempo, a Sociedade e a História. A ameaça do Bug de 2000 foi o preâmbulo; e o risco probabilístico de que o acelerador de partículas do CERN produza um buraco negro que trague todo o planeta o seu principal simbolismo. O documentário “Paul Virilio: Pensar a Velocidade” (2009), no momento exibido no Brasil pelo canal fechado “Curta!”, narra o pensamento original do pesquisador francês cuja especialização que criou (a “Dromologia”) parte de dois pressupostos: primeiro, toda tecnologia surgiu da guerra e, por isso, irradia o princípio da velocidade como modo de vida. E segundo, toda tecnologia produz o seu acidente: o trem, o descarrilamento; o avião, o acidente aéreo; o navio, o naufrágio. Paul Virilio questiona: portanto, qual será o acidente produzido pela “bomba informática”?

“O tempo é demoníaco, a velocidade é divina”. Esta frase está estampada nas paredes de muitas empresas do Vale do Silício. Celebra muito mais do que o sucesso comercial dos seus negócios, mas principalmente um imperativo moral que foi irradiado para todo o planeta: ser veloz é moralmente bom – é o significante da eficiência, superioridade e inteligência. Ao contrário, a lentidão é sinônimo de frustração, inferioridade, fraqueza: ser escravo do tempo.

Mas nesse momento, chegamos ao limite do nosso poder: pela primeira vez na história o tempo humano e o tempo tecnológico foram sincronizados através do tempo real. Chegamos à instantaneidade, ubiquidade e imediaticidade. Podemos estar aqui e lá ao mesmo tempo. Mas tamanha aceleração paradoxalmente nos levou a um estado de inércia, no qual poderemos delegar todo esse poder às máquinas.

Nesse momento estaremos no ápice da aceleração e, por isso, sujeitos ao Acidente Integral – o momento em que delegaremos todo o poder às máquinas, quando o tempo tecnológico ultrapassará o humano e estaremos sujeito ao Acidente de todos os Acidentes. E a ameaça do “Bug do Milênio” (a paralização planetária de todos os sistemas) foi apenas o prólogo do que está por vir.

Tecnologia e Acidente


Esse é o tema central do documentário Paul Virilio: Pensar a Velocidade (Paul Virilio: Pensé La Vitesse, 2009 - assista abaixo com legendas em espanhol no YouTube). 

Nascido em 1932 em Paris, urbanista e filósofo, pensador que foi contemporâneo e amigo de Derrida, Baudrillard e Deleuze (numa cena denominada como “Pós-Moderna”), autor de numerosos ensaios sobre estratégia, logística, estética e tecnologia, tem colocado como centro do seu pensamento a ameaça do “Acidente Integral” – a hipótese apocalíptica dos tempos modernos no qual a velocidade, mais do que em qualquer outra época, expõe a sociedade ao acidente. Levado pelo sonho de ubiquidade e eficiência que, partindo do motor a vapor até chegar à rede global, deixaria menos espaço e tempo para a reflexão.


“O progresso e a catástrofe são anverso e reverso da mesma moeda (...) o trem inventou o descarrilamento, o avião inventou o acidente aéreo (...) não há nisso pessimismo ou desespero, é um fenômeno racional, mascarado pela propaganda do progresso”, diz Virilio na abertura do documentário.

Paul Virilio é um pensador único. Talvez o único teórico que levou ao extremo os estudos dos impactos da velocidade e da aceleração na cultura e percepção humana. A originalidade de Virilio é o de evitar cair em dois pressupostos comuns em relação à tecnologia: primeiro a visão antropomórfica das ferramentas e dispositivos como extensões ou próteses que ampliam os sentidos humanos (o telescópio para os olhos, e assim por diante) ou a tecnologia como uma ferramenta neutra, nem boa e nem má – depende da finalidade dada pelo homem: a energia nuclear pode tanto salvar vidas na Medicina como exterminar milhões na guerra.

A terceira via da “Dromologia”


Virilio abriu uma, por assim dizer, terceira via: há um paradigma, uma metafísica, uma visão de mundo intrínseca na tecnologia: o princípio da Guerra - a velocidade. Todos os avanços tecnológicos em primeiro lugar foram pensados para a logística militar – aceleração e velocidade são imperativos da logística dos campos de batalha. Para mais tarde seus subprodutos serem comercializados para o restante da sociedade.


Vídeo games (originalmente desenvolvidos para a simulação de estratégia militar) e a Internet que surgiu a partir de pesquisas militares no auge da Guerra Fria com a rede ARPANET nos anos 1960 seriam alguns exemplos. Exporiam a percepção humana à mesma experiência dos cenários de conflagração bélica, com consequências cognitivas como a “picnolepsia” – estados de afasia temporais e espaciais. E a “propaganda do progresso” esconde essas origens da evolução tecnológica, colocando tudo como se fosse o progresso das necessidades humanas.

Virilio criou uma especialização para analisar esses fenômenos: a “Dromologia” – de “dromo”, “corrida”, ciência ou estudo da lógica da velocidade. área de estudos interdisciplinares procura entender como a velocidade empreendida pela novas tecnologias (velocidade e aceleração de deslocamento e percepção do tempo e espaço) muda essencialmente a natureza dos fenômenos políticos, sociais e culturais.

O bunker e a sociedade da informação


No documentário acompanhamos como surgiu esse insight que Virilio levou por toda vida: na adolescência visitou os bunkers de observação nazistas nas praias do norte da França: a imobilidade dos bunkers se conecta com a função de vigiar todos os planos do horizonte marítimo. Lá compreendeu que a vigilância não é nada sem o controle da transmissão. O prenúncio da sociedade da informação: nos mantemos estáticos, inertes num espaço não mais sentido, para a mente se manter vigilante por todos os planos do horizonte do ciberespaço – ubíqua e instantânea.


Para Virilio, as origens do futuro Acidente Integral estaria nessa desconexão fundamental entre tempo e espaço, geografia e ciberespaço, sociedade e tempo real. Assim como o bug de 2000 foi o prólogo desse Acidente, outros atritos entre essas duas dimensões estariam atualmente corroendo a Democracia (a velocidade das transações globais excede o tempo da política, tornando o Estado uma figura decorativa), a Economia (as transações financeiras automáticas governadas por algoritmos garante a hegemonia da especulação, muito mais velozes do que o tempo lento da agricultura, comércio e indústria) e a Mídia - o tempo de uma CNN é muito mais veloz do que a capacidade do mundo produzir notícias ou acontecimentos.

CERN e o buraco negro


Por exemplo, Paul Virilio vê no acelerador de partículas do CERN (Centro Europeu de Investigação Nuclear, a 100 metros abaixo da terra entre França e Suíça, no qual quase se alcança a velocidade da luz para provocar o choque entre partículas, uma metáfora dessa catástrofe futura: a possibilidade probabilística de que a aceleração da desintegração das partículas provoque buracos negros que no final acabem por devorar toda a matéria terrestre, fazendo desaparecer todo o planeta.

Nesse ponto do documentário, Paul Virilio introduz mais um conceito: “Acidente do Conhecimento” - através da racionalidade o conhecimento alcança seu ponto de viragem no qual torna-se irracional. Se no século XX o poder absoluto estava nos totalitarismos de Hitler, Stalin ou Mao, agora nesse século o homem chega ao poder absoluto de Deus – destruir a matéria e colonizar o tempo.

Para Virilio, a crise atual nada tem a ver com a fé, teísmo, ateísmo, mas a perda da crença na própria Razão e na “ratio” pela qual foi erguido o edifício do cartesianismo, da ciência e da tecnologia por séculos.


Um pensamento escatológico


Com essa tese, Virilio se insere num seleto grupo de pensadores e escritores sombrios que pressentiram que por trás da harmonia da racionalidade que o Iluminismo pretendia trazer para a História, estava presente um movimento subterrâneo inverso: a violência, frieza e indiferença do sistema conceitual da Razão – se Razão foi erigida na História para debelar a violência, ignorância e irracionalidade, ironicamente ela se converte naquilo que pretendia debelar.

O “Acidente do Conhecimento” seria a preparação de um acidente mais amplo. Mas com o quê se pareceria esse Acidente Integral? Para Virilio, a ameaça do bug de 2000 teria sido apenas o preâmbulo – sistemas tão velozes que superam a capacidade humana de assimilação, de reflexão ou de discernir o verdadeiro do falso. Entregamos as decisões aos sistemas automáticos, como os algoritmos do sistema financeiro. Assim como os algoritmos do Google ou do Facebook já estão determinando, de forma autônoma, qual informação deve ou não ser compartilhada pelo planeta.

O pensamento de Virilio lembra a Escatologia, parte da Teologia e da Filosofia que estuda o fim – procura tratar sobre os últimos eventos da história do mundo ou do destino final do gênero humano. Para o pensador francês, a Escatologia seria a teoria do Acidente Integral, o momento em que a velocidade e a aceleração se precipitarão sobre o tempo, a sociedade e a própria História.

Mas, como vimos em postagem anterior sobre o curta 5 Films About Technology (clique aqui), pequenos acidentes já estão acontecendo no dia-a-dia de forma banal e silenciosa: fechados em nossas bolhas virtuais nas redes sociais e Internet (algoritmicamente criados pelas empresas gigantes do setor), tornamo-nos incomunicáveis e a realidade apenas um conjunto de impressões sem existência própria. Mas, como o curta narra de forma cômica, essas bolhas virtuais muitas vezes estouram quando se chocam acidentalmente com aquilo que queremos não enxergar.

E Paul Virilio é um desses pensadores que teimosamente ainda tenta nos alertar para o que ele vê do lado de fora das bolhas digitais.


Ficha Técnica 

Título: Paul Virilio: Pensar a Velocidade
Diretor: Stéphane Paoli
Roteiro: Stéphane Paoli
Elenco:  Paul Virilio, Muhammad Yunus, Joel de Rosnay, Jean Nouvel, Jacques Attali
Produção: Arte France, La Génerale de Production
Distribuição: Arte, Canal Curta!
Ano: 2009
País: Japão

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