Uma
doutora e professora da Pós-graduação em Ciência Política da UFMG no BBB 2018.
Enquanto isso, pacientemente repórteres da Globo ensinam telespectadores a
gravarem vídeos com celulares para enviar depoimentos que respondam a pergunta:
“Que Brasil você quer para o futuro?” em exíguos 15 segundos. São dois lados de
um mesmo processo brasileiro detectado nos anos 1980, quando um jovem engraxate
da favela da Rocinha respondeu à pergunta “O que você quer ver na TV?”. “EU!”,
respondeu o jovem diante de um pesquisador perplexo. Nesse momento, a Globo
coloca em funcionamento a chamada “máquina de Narciso”: no momento em que o ano
eleitoral aponta para o acirramento da crise social e econômica, anomia e caos,
a mínima forma de uma coesão social é através das imagens. O final
do projeto midiático de substituir todas as formas políticas de mediação (a
representação, o voto, o partido, o sindicato etc.) pelos próprios meios de
comunicação – Berlusconi, Trump, Doria Jr. e o aspirante Luciano Huck seriam o
aspecto mais visível disso. Sem esperanças na Política e na Economia, restaria
a última boia salva-vidas oferecida pela mídia no mar da crise: a do ego mínimo
promovido a Narciso.
No livro
A Máquina de Narciso, o professor
Muniz Sodré da Escola de Comunicação da UFRJ relata a surpresa de uma
pesquisadora sobre o que moradores da Favela da Rocinha gostariam de ver na TV,
partindo da premissa de que as respostas girariam em torno da preferência ou do
conteúdo de programação estrangeira, ou de assuntos da comunidade, seus
problemas etc.
Qual não
foi a surpresa quando um jovem engraxate respondeu: “Quero ver EU!”. Sodré
argumentava que a TV era muito menos um
veículo de comunicação ou alguma janela
aberta para o mundo e muito mais uma máquina desejante, um agenciador do imaginário
– enquanto o jornal e o rádio se dirigem à mente, a TV cria uma outra
realidade, fecha-se nela mesma onde o indivíduo imerge.
Imerge
numa máquina que estrutura de forma ilusória a subjetividade do espectador.
Agora narcísica. A TV não se abre de dentro para fora, mas se fecha de fora
para dentro. Tal como uma estrela esmagada pela própria gravidade, até virar um
buraco negro.
Essa
reposta do jovem engraxate foi nos anos 1980, década que terminaria imersa na
hiperinflação, crise social e os primeiros arrastões registrados nas praias da
Zona Sul do Rio de Janeiro.
“... um ano muito especial!”
A Globo
entra em 2018 sabendo que é um ano decisivo para o seu futuro. Um ano eleitoral
(e se tiver eleição!.. esse humilde blogueiro acha inacreditável que um golpe
político tão milimetricamente planejado – que mobilizou Soft Power, Guerra
Híbrida, Bombas Semióticas, Lawfare etc. – permita que eleições democráticas
decidam seu futuro...) cujos resultados moldarão os destinos políticos e
corporativos da rede de comunicações.
Não é
por menos que a emissora exibe na sua programação uma vinheta que revela, como
num ato falho: “Vem aí um ano muito especial”.
Depois
de, por uma década, detonar bombas semióticas, utilizando-se de recursos
linguísticos, retóricos e semiológicos para construir crises políticos e uma
pesada atmosfera psíquica nacional (ódio e intolerância das quais a Globo nesse
momento tenta se eximir), agora a emissora começa a colocar em funcionamento
aquilo que Muniz Sodré chamou na época de “máquina de Narciso”.
Caso
hajam eleições, será a pièce de résistance,
na qual a Globo oferece-se a si própria como significante (ou “suporte”) do
imaginário de uma população em pânico diante da construção midiática do caos:
violência, epidemias (febre amarela, zika vírus ou a epidemia da vez),
desemprego etc.
Como é
recorrente nesses tempos, mais um caso de retrocesso: assim como no episódio do
engraxate que desejava se ver na TV num cenário de ausência de saída num
horizonte hiperinflacionário, de uma ditadura militar recalcitrante e dos
primeiros fenômenos de violência urbana dos arrastões, hoje também
experimentamos um crescente estado de anomia social.
E, mais
uma vez, num contexto de crise e ausência de perspectivas no plano individual,
eis que a TV volta a explicitar a sua natureza de “máquina de Narciso”.
Intelectuais no BBB
O caso
da pós-doutora pela Universidad Complutense de Madrid e professora do
departamento de pós-graduação em ciência política da UFMG Mara Teles, que
comemora nas redes sociais a participação no reality show Big Brother da Globo;
e a convocação dos telespectadores para enviar vídeos de celulares respondendo
a pergunta “Que Brasil você quer do futuro?” para serem exibidos em telejornais
da emissora, são dois flagrantes do início do funcionamento desse maquinário
psíquico à serviço da continuação da Guerra Híbrida.
Orgulhosa,
a TV Globo ostenta mais uma acadêmica no meio da fauna humana da franquia
holandesa do reality show. Sabendo-se que a Globo conta com uma divisão chamada
Globo Universidades (área de relacionamento com o meio acadêmico e público
jovem, certamente para dirimir a imagem negativa da emissora junto a esse
público) é de se imaginar que desde Jean Wyllys (na época, professor
universitário), a participação de acadêmicos como personagens no script do Big
Brother tenha dois significados:
(a) Como
a carreira e as titulações acadêmicas há muito deixaram de ser uma opção
filosófica, política ou existencial, para se transformar em mais uma marca de
grife, um “capital cultural” para ostentar no mercado de relacionamentos
pessoais e profissionais;
(b) E
como esse “capital social” ganha a máxima eficiência quando ganha visibilidade
midiática. No caso, sob o patrocínio da Globo.
Ainda
mais quando sabemos que a professora Mara Teles possui, digamos, o physic du role para desempenhar o papel:
diz-se “louca por signos” (por “ser de áries” é uma “cientista capaz de se
divertir”, confessa), já foi modelo e estudante de teatro na adolescência e, orgulhosa, colocou a seguinte informação no site oficial do programa: “o marido da tia de Mara é primo de
segundo grau de Bruna Marquezine”...
O
curioso é que alguns sites de esquerda comemoram a presença de uma
“esquerdista” no BBB, uma participante cuja time
line do Facebook apresenta postagens anti-Temer, contra o golpe político que
derrubou Dilma Rousseff e libelos feministas.
Talvez
sejam sinais dos tempos: se nos anos 1970 o emérito escritor comunista Dias
Gomes via no fato de escrever telenovelas (O Bem Amado, Roque Santeiro, Sinal de Alerta etc.) na Globo uma oportunidade única de levar mensagens sociais e políticas para as massas, ou
Jean Wyllys que entrou no BBB, segundo ele, para “estudar o programa por dentro”, agora
com Mara Teles tudo é uma questão de fatalidade da conjunção astrológica.
O Brasil do futuro está na “máquina de Narciso”
Enquanto
isso, de forma pacientemente didática, repórteres de emissoras afiliadas da
Rede Globo ensinam para o público como posicionar o celular para as gravações e
dicas de enquadramento e localização das gravações – recomendam aos telespectadores
se posicionarem diante de um marco que identifique o município onde foi feita a
gravação: uma ponte, estátua, edifício, ponto turístico etc.
Em
exíguos 15 segundos, a pessoa terá expressar “o quer do Brasil para o futuro”,
e sua “reivindicação” aparecerá em um
telejornal em rede nacional.
“Este ano de 2018 tem eleição presidencial e você tem a
chance de usar o seu voto para defender o que acha melhor para o país. Mas,
antes disso, aqui na tela da Globo, você vai ter a oportunidade de dizer o que
espera para o futuro e como representante da sua cidade”, anuncia a introdução
da iniciativa “comunitária” da emissora.
É
claro que a iniciativa conta com o analfabetismo visual dos telespectadores,
alheios à natureza de edição, seleção e montagem na linguagem audiovisual –
obviamente, os vídeos serão selecionados e, como todo e qualquer material
jornalístico, somente serão aceitas as falas que confirmem a pauta
pré-estabelecida pelo “aquário” das chefias de redação. Assim como as famosas
enquetes feitas por repórteres feitas com incautos transeuntes pelas ruas.
O
plano do conteúdo apresenta a mais absoluta inutilidade dos depoimentos: 15 segundos, tempo suficiente apenas para replicar os próprios bordões das
escaladas dos telejornais que apresentarão os vídeos.
Mas, como
sempre, a verdade está em outra cena: naquela do jovem engraxate que
reivindicou ver a si mesmo na tela da TV nos distantes anos 1980. O whishifull thinking “O Brasil Que Você
Quer para o Futuro” nada mais é do que a “máquina de Narciso” colocada em ação
em momentos de crise e desesperança coletiva.
Já naqueles tempos o historiador
norte-americano Christopher Lasch, nos livros clássicos A Cultura do Narcisismo e O
Mínimo Eu, já alertava de que o narcisismo (também em sua faceta midiática)
nada tem a ver com uma inflação do ego. Pelo contrário, é um mecanismo de
defesa em tempos de sobrevivência psíquica difícil. Uma reação contra a
deflação do ego diante do pânico de uma realidade insegura e incerta.
Se a sociabilidade não pode mais ser
garantida pelas ações de um ego saudável (a carreira, o trabalho, garantias
sociais, sonhos, projetos pessoais futuros etc.), agora tenta-se combater a
anomia de um País em cacos através da midiatização de um ego sitiado – o
narcisista.
“Sou imagem, logo existo”, é a mensagem
subliminar, muito além dos 15 segundos, do “cívico” projeto da Globo.
Talvez esse seja o desenlace final do
projeto midiático de substituir todas as formas políticas de mediação (a
representação, o voto, o partido, o sindicato etc.) pelos próprios meios de
comunicação – Berlusconi, Trump, Doria Jr. e o aspirante Luciano Huck são o aspecto
mais visível disso.
Sem esperanças na Política e na Economia,
restaria a última boia salva-vidas oferecida pela mídia no mar da crise: a do
ego mínimo promovido a Narciso.
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