O homem está colocado em uma espécie de fogo cruzado entre deuses
e reis, demiurgos vingativos e ciumentos perante os quais somos apenas aquilo
que representa a mosca para uma criança. Ao homem nada mais resta do que
desafiá-los para, no final, resgatar dentro de si o bem mais precioso –
aqueles a quem ama. Esse é o tema que perpassa a obra do diretor Ridley Scott e
que, mais uma vez, está presente na versão do Êxodo bíblico feita por um
cineasta assumidamente ateu. “Êxodo: Deuses e Reis” (2014) retrata um Moisés
convertido em anti-herói amargurado: “É tudo vingança!”, critica em um dos
ríspidos diálogos com Deus. Scott repete a mesma desesperança dos tripulantes
da nave Prometheus que, ao descobrirem a raça dos criadores do homem em um planeta distante, na verdade
encontraram “Engenheiros” enlouquecidos.
O diretor Ridley Scott tem um inegável talento
para lidar com narrativas em diferentes épocas históricas: da Roma antiga (Gladiador, 2000) para a época das
Cruzadas ( Cruzada, 2005; Robin Hood, 2010); da era do
Renascimento (1492 – A conquista do
paraíso, 1992) para o século XIX (Os Duelistas, 1977); e no futuro com Alien (1979), Blade Runner (1982) e Prometheus
(2012).
Confirmando uma velha crença de que um artista
conta uma única história em toda a sua vida, em Scott percebe-se que ele volta
sempre ao tema do estranho que desafia a tudo e a todos ao seu redor para, no
final, resgatar algo que é exclusivamente precioso para si mesmo.
Foi assim com Deckard em Blade Runner (o simbolismo do unicórnio que o protagonista resgata
para saber se ele é humano ou mais um replicante) e também com a Dra. Elizabeth
Shaw em Prometheus (desafiando a tudo
para manter a fé em um sentido para a criação humana perpetrada pelos “Engenheiros”).
E não é diferente com o Moisés interpretado por Christian Bale no
filme Êxodo - Deuses e Reis. E quando
se fala que os protagonistas de Scott desafiam a tudo e a todos isso significa
desafiar a própria figura de Deus.
Assistimos em Êxodo o
protagonista Moisés colocado em uma linha de fogo entre Deus e o Faraó Ramsés.
A certa altura, antes das pragas caírem sob o Egito e impaciente com as táticas
de guerrilha utilizadas por Moisés para libertar o povo hebreu, Deus (que se
expressa sempre através de uma criança mensageira, Malak) se enfurece: “Ramsés
se diz um deus vivo e escraviza o meu povo. Eu quero que ele fique de joelhos”.
A partir desse ponto, Deus perde a paciência com Moisés que, a contragosto, é
colocado no meio de uma luta entre deuses: de um lado as pragas e as mortes, e
do outro Ramsés vingando-se nos escravos hebreus com enforcamentos públicos.
Moisés desabafa em um dos “diálogos” com Deus: “é só vingança,
vingança!”. E mais à frente no filme, Ramsés desafia: “Vamos ver quem mais
eficiente para matar. Esse Deus, você [Moisés] ou eu!”.
Ao contrário do clássico Os
Dez Mandamentos com Charlton Heston onde Deus se manifesta como uma voz
grandiosa em ambientes mais calmos como jardins e montanhas mais fotogênicas,
em Êxodo Deus é impaciente, vingativo,
representado por uma criança sempre abanando a cabeça negativamente e com um
olhar que não inspira a menor compaixão ou amor – bem, afinal estamos em uma
história do Velho Testamento bíblico.
O Filme
Por isso, a versão de Ridley Scott para a história bíblica de
Moisés está menos para a Bíblia e mais para a narrativa da Odisseia de Homero: o filme descreve a longa trajetória de Moisés
que abandona sua família para libertar o povo hebreu escravizado no Egito,
enfrentando as consequências da ira e vingança do confronto entre Deus e
Ramsés, atravessar o Mar Vermelho com o seu povo liberto e reencontrar sua
amada esposa e filhos. Não há como não lembrar da Odisseia de Ulisses
enfrentando conspirações dos deuses e do destino para que, depois de anos de
provações, conseguisse retornar para os braços de Penélope em Ítaca.
Na sua essência, Êxodo é
a história sobre dois irmãos: o filho adotivo do Faraó chamado Moisés e Ramsés,
seu filho verdadeiro. Ambos são líderes naturais dos exércitos, sendo depois
Ramsés escolhido pelo pai debilitado a ser o governante do Egito.
Ramsés acaba descobrindo que Moisés é na verdade judeu. Embora na
primeira meia hora do filme vejamos um Moisés administrador das obras
construídas pelos escravos judeus e seja profundamente crítico à fé ao deus do
povo hebreu, ele sente-se um estrangeiro dentro do Egito. A revelação de que,
na verdade, era um filho sobrevivente de uma ordem do Faraó de matar todos os
bebês judeus e adotado inadvertidamente pela corte, faz Moisés partir do Egito
em busca da sua própria identidade.
Fora do Egito, Moisés cria sua raízes com esposa e filho,
prometendo jamais abandoná-los. A partir desse ponto, observamos uma guinada na
narrativa com a multiplicação de conflitos: Scott coloca irmão contra irmão,
raça contra raça e, o que é mais importante, o próprio homem contra Deus.
Deus é real ou fruto de uma alucinação?
Ridley Scott é assumidamente ateu, ou “funcionalmente
não-religioso”, como costuma dizer. Sabemos que os melhores filmes religiosos
foram feitos por cineastas ateus como, por exemplo, Robert Bresson com o filme
Diário de um Padre (1951), talvez o filme que conseguiu melhor expressar
cinematicamente a persistência da fé diante de uma realidade de dor e rejeição.
Scott projeta o seu “ateísmo funcional” e criticismo em relação a
fé no primeiro momento em que Deus aparece para Moisés: depois de uma queda
numa montanha, onde bate a cabeça e perde os sentidos. Após acordar tem o
primeiro contato ao ver a sarça queimando e o mensageiro Malak, com o seu olhar
intimidador. Será que a missão de retirar o povo Hebreu do Egito, destinada por
Deus, é real ou fruto de uma alucinação?
Nas entrevistas, Ridley Scott afirma que quis fazer um filme
“realista”. Não há halos, aparições mágicas ou desaparecimentos. Por exemplo, quando
Joshua tenta observar à distância as conversas de Moisés com Deus, ele nada vê.
Acha que seu líder perdeu a cabeça...
Até mesmo as pragas do Egito, enviadas por Deus depois de perder a
paciência com as demoradas táticas de guerrilha de Moisés, são mostradas como
eventos lógicos, com causa e efeito: crocodilos atacam pescadores, o que faz o
Nilo ficar banhado de sangue, fazendo sapos e rãs migrarem em massa para a
terra, o que causa um desequilíbrio ecossistêmico que produzirá as demais
pragas em sucessões de causa-efeito.
Vemos até esse momento Moisés transformado em um anti-herói
amargurado: abandonou a família por Deus para libertar o Seu povo para ser
deixado de lado por uma divindade vingativa que espalha doenças e envenena as
águas. “Como podem adorar um Deus que mata crianças!”, desespera-se Ramsés com
o seu filho morto nos braços.
Como moscas para um menino
Moisés discute e revolta-se contra os métodos de Deus, ao ponto de
confessar ao seu inimigo, Ramsés, a impotência para reverter os terríveis
eventos que se precipitarão sobre o Egito.
Se Ridley Scott transformou uma história bíblica em uma odisseia
trágica de um anti-herói que se apega mais à família do que ao próprio Deus,
seu ceticismo e ateísmo o faz se aproximar da frase de Shakespeare em Rei Lear:
“Como moscas para um menino, somos nós para os deuses. Eles nos matam por
esporte”.
O subtítulo do filme Êxodo
(“Deuses e Reis”), reflete essa visão de um niilismo gnóstico que permeia a
obra de Ridley Scott: tanto deuses como reis não passam de demiurgos -
decepcionamo-nos com eles, desafiamos, lutamos para buscarmos dentro de nós o
bem mais precioso como uma boia de salvação em um cosmos sem sentido.
Se em Blade Runner os
replicantes descobrem que seu criador não passava de um ser arbitrário e
destituído de compaixão; se em Cruzada
o protagonista declara no final para o bispo corrupto: “você me ensinou muito
sobre a religião”; e se em Prometheus
os tripulantes de uma nave descobrem da pior maneira possível a loucura dos
demiurgos criadores da humanidade em um planeta distante, em Êxodo, da mesma forma, Moisés se confronta
com o Deus do Velho Testamento: vingativo, ciumento, impaciente que reduz a sua
criação a peças de um jogo cósmico.
“Deuses e Reis” é o título
perfeito para essa intepretação da lenda bíblica de Moisés: assim como ele,
todos nós estamos na linha de fogo de uma guerra entre demiurgos – Estados
contra deuses, religiões contra religiões, governos contra governos. Para no
final, resgatarmos aquilo que para nós seja o bem mais precioso. Para Moisés, o
reencontro com a família após uma longa odisseia acompanhado por um Deus
vingativo.
Ficha Técnica |
Título: Êxodo
– Deuses e Reis
|
Diretor:
Ridley Scott
|
Roteiro:
Adam Cooper, Bill Collage
|
Elenco: Christian Bale, Joel Edgerton, Ben Kingsley, John Turturro, María
Valverde
|
Produção:
Chernin Entertainment, Scott Free Productions
|
Distribuição:
20th Century Fox
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Ano: 2014
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País: EUA, Reino Unido
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