sexta-feira, dezembro 06, 2013

O aplicativo Lulu e a religião da autoabdicação humana


Processos judiciais, febre entre as mulheres e pânico entre os homens. Por trás desse frisson midiático autopromocional do aplicativo Lulu onde mulheres avaliam homens através de um conjunto de quesitos, estão questões que colocam em xeque a própria cultura dos gadgets tecnológicos que está organizando o nosso lazer e trabalho. O Lulu seria o sintoma de uma verdadeira religião cibertotalitária que estaria motivando a maioria de engenheiros, cientistas e designers digitais do Vale do Silício: a autoabdicação humana – o computador estaria evoluindo para se transformar em uma forma de vida capaz de entender melhor as pessoas do que as próprias pessoas. E quem fala isso não é nenhum tecnofóbico, mas um dos principais nomes do Vale do Silício: o designer de software Jaron Lanier.

Duas cenas em duas épocas distantes entre si no tempo. O que veremos a seguir é que essas duas cenas estão interligadas não só em uma análise sobre o fenômeno do aplicativo Lulu, mas de toda a cultura criada em torno do consumo diário de aplicativos.


Primeira cena: Em meio à euforia da revolução sexual dos anos 1960 desencadeada pela pílula anticoncepcional, a descoberta da sexualidade desatrelada da reprodução e dos papéis familiares e a erotização generalizada da mídia, publicidade e sociedade de consumo, o pensador alemão Herbert Marcuse observava a tudo com desconfiança. Um dos principais nomes da chamada Escola de Frankfurt, Marcuse estava naquele momento no olho do furacão dos movimentos de rebeldia estudantil: professor de filosofia no campus San Diego da Universidade da Califórnia. Para ele, o princípio de realidade contra o qual a revolução se dirigia estava se transformando em algo mais insidioso: o princípio do desempenho, princípio que transformaria toda a revolução sexual e dos costumes muito mais em sucesso de vendas do que em real emancipação.


Jaron Lanier: o Vale do Silício estaria
criando uma nova religião
Segunda cena: O ano é 2004. No meio do Vale do Silício, Califórnia, um cientista de computadores e designer de software da Silicon Graphics denuncia: está em gestação uma verdadeira religião cibertotalitária onde “computadores se humanizam e seres humanos tornam-se computadores”. Pode-se criticar Jaron Lanier de qualquer coisa, menos de ser um tecnofóbico: ele criou o conceito de realidade virtual e desenvolve soluções em telepresença e tele-imersão. Para Lanier, cada software ou design de aplicativos é expressão de um destino manifesto que está presente em cada laboratório de inteligência artificial: os computadores ficarão tão grandes e rápidos e a Internet tão rica em informações que será um “nível de descrição” mais elevado do que o cérebro, algo como o ciber-super-humano.

Última novidade nos aplicativos de relacionamentos, o Lulu ocupou o centro das atenções e tensões nas redes sociais. Com o aplicativo, exclusivamente as mulheres podem conferir notas das avaliações e hashtags aos homens com quem elas saíram, sairiam ou planejam sair. Dessa maneira o aplicativo cria um sistema de cadastro de homens onde as mulheres podem avaliar o perfil (Com fotos) dos homens sob critérios como Aparência, Humor, Sexo, Educação, Primeiro Beijo etc. Ao fim é atribuída uma nota de 0 a 10 ao perfil. O Lulu já rendeu polêmica e processos na justiça por supostamente ferir o artigo 43 do Código do Consumidor por não ser comunicado ao usuário a abertura de sua base de dados para outras pessoas.

Mas o Lulu esconde outras questões mais profundas do que as tensas relações entre usuários e a lei do consumidor ou entre homens ameaçados em suas virilidades e mulheres supostamente vingativas. Começando a analisar o fenômeno Lulu a partir das críticas de um designer de aplicativos, Jaron Lanier, o Lulu seria o sintoma de uma filosofia que está por trás da maioria de engenheiros, cientistas e designers digitais do Vale do Silício: a autoabdicação humana – o computador estaria evoluindo para se transformar em uma forma de vida capaz de entender melhor as pessoas do que as próprias pessoas.

Lulu e a religião do Vale do Silício


Em seu livro Gadget: você não é um aplicativo, Lanier parte do prosaico exemplo do recurso do processador de texto do Word que supostamente sabe o que o usuário quer e subitamente decide criar no momento errado um recuo no parágrafo. Para ele, a verdadeira função do recurso não é facilitar a vida das pessoas, mas de disseminar a filosofia de que o computador possui um nível de descrição superior ao próprio usuário.

Reduzimos nossos padrões de inteligência
para que os aplicativos pareçam
ser mais espertos
Para Lanier os aplicativos seriam uma forma de propaganda que nos induz a acreditar que a ferramenta é realmente esperta mediante a uma redução dos nossos padrões humanos sobre a noção de inteligência. O exercício diário de tratar máquinas e aplicativos como formas de inteligência reais torna as pessoas mais flexíveis em relação ao seu senso de realidade.

Para o designer digital, depois que os cientistas entusiastas das pesquisas em Inteligência Artificial viveram prolongados fracassos na busca de uma língua natural, acabaram encontrando a consolação na adoração da chamada “inteligência coletiva” como uma espécie de salto de qualidade supra-humano a partir das inteligências individuais. Lanier dá o exemplo da Wikipedia que acabaria funcionando da mesma forma que os textos sagrados do passado: a autoria humana do texto é suprimida para conceder ao texto uma veracidade supra-humana, como uma ilusão do Oráculo.

Inteligência coletiva, nuvem, algoritmo ou qualquer outro objeto cibernético é aceito como uma super-inteligência por que reduzimos os nossos padrões e expectativas sobre a inteligência. As pessoas se degradariam o tempo todo para fazerem os aplicativos parecerem espertos. Por exemplo, a ideia de amizade em redes de relacionamento é reduzida. Uma pessoa se orgulha em dizer que possui milhares de amigos no Facebook. Essa afirmação só poderia ser verdadeira se a ideia de amizade for reduzida. Ignora-se que a verdadeira amizade deve expor à estranheza inesperada do outro.

Da mesma forma, a composição de um banco de dados do aplicativo Lulu de homens em quesitos como Aparência, Humor, Sexo, Primeiro Beijo etc. significa que uma pessoa que recebe um relatório com esses conceitos descritores de alguém, deve ter uma expectativa reduzida da vida sentimental, amor e amizades.

Aplicativos e bancos de dados os mais diversos seriam produtos dessa verdadeira guinada religiosa do Vale do Silício: algumas pessoas – as mais influentes – acreditam estarem ouvindo algoritmos, multidões e outras entidades não humanas, com apoio da Internet, falarem por si mesmas. Um extremismo religioso que, segundo Lanier, acaba invertendo o processo de engenharia de cabeça para baixo – uma inteligência em nuvem que, para o futurólogo norte-americano Ray Kurzweil, seria o nosso destino final para que possamos viver eternamente na realidade virtual como bites.

Bruna Surfistinha, Marcuse e o Cupido empreendedor


Herbert Marcuse:
o "princípio do desempenho"
por trás da aparente liberação
da sexualidade na mídia
Em meio à polêmica sobre o Lulu, talvez as declarações mais sintomáticas tenham sido da escritora Rachel Pacheco, conhecida como Bruna Surfistinha que alcançou a notoriedade em relatar na Internet detalhes picantes daqueles que procuravam seus serviços como profissional do sexo. “Homem bom não teme”, disparou Bruna em relação ao pânico masculino de ser avaliado publicamente. Noções como “nota” e “desempenho” permearam as declarações da escritora sobre o aplicativo. A frase dita por ela é uma referência ao ditado popular “quem não deve, não teme” (leia no portal G1 – clique aqui).

De imediato lembramos as críticas de Jaron Lanier sobre a autoabdicação humana: traição, sexualidade ou relação familiares são tratados não mais como fenômenos qualitativos diversos, mas agora quantitativamente idênticos, porque reduzidos a notas e desempenhos. Na verdade, um reflexo da linguagem digital do aplicativo que deve reduzir a realidade em códigos binários para serem classificados em um banco de dados, como uma tabula rasa de fenômenos com a mesma natureza estatística.

Mas a atribuição de “notas” e “desempenhos” a eventos com diferenças qualitativas vai de encontro à desconfiança de Herbert Marcuse de que a suposta emancipação da sexualidade, erotismo e sentimentos através da chamada revolução sexual estaria sendo direcionada pelo que ele denominou “princípio do desempenho”.

Marcuse tematizava nos anos 1960 a ideologia do “princípio do desempenho” que estaria por trás da aparente liberação da sexualidade na cultura do capitalismo tardio. A sexualidade não estava sendo liberada a partir de seus próprios termos (fantasia, erotismo, jogo etc.), mas a partir de princípios do mundo do trabalho e da mercadoria: eficácia, eficiência, produtividade, resultado, lógica do mundo racional e da linearidade. O sexo hiperbolizado, maximizado, anabolizado (tamanho do pênis, o número de orgasmos alcançados, e assim por diante). Do campo do lúdico e do erótico o sexo saltaria para o campo do desempenho e da maximização lineares.

Em outras palavras, o chamado tempo livre sofreria uma deterioração ao ser submetido ao mesmo princípio do mundo do trabalho. Para Marcuse, não há a possibilidade de o individuo entregar-se a si próprio ou retirar-se para um mundo diferente. O repertório de escolhas é superficial, assim como os quesitos para se avaliar alguém em um aplicativo.

O problema do aplicativo Lulu não estaria na limitação dos quesitos, mas na própria filosofia que lhe sustenta – a da relação custo/benefício que sustenta a lógica de mercado do mundo do trabalho regido pelo princípio do desempenho. Dessa forma, antes de sairmos à procura de alguém para ser amante ou amigo, deveremos fazer uma cotação no mercado em busca dos melhores “preços”. Ou seja, sem saber o usuário estaria sendo treinado subliminamente em seu momento de lazer a reforçar as disposições exigidas pelas empresas no dia-a-dia de trabalho.

Lulu é a confirmação de que as flechas de Cupido não são mais disparadas pelo amor e paixão, mas agora pela fria lógica custo/benefício onde o maior risco não é mais o de ter o coração partido, mas a vergonha de não ter sido um eficiente empreendedor.

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