Processos judiciais, febre entre as mulheres e pânico entre os homens.
Por trás desse frisson midiático autopromocional do aplicativo Lulu onde
mulheres avaliam homens através de um conjunto de quesitos, estão questões que
colocam em xeque a própria cultura dos gadgets tecnológicos que está organizando o nosso lazer e trabalho. O Lulu seria o sintoma de uma verdadeira religião cibertotalitária
que estaria motivando a maioria de engenheiros, cientistas e designers digitais
do Vale do Silício: a autoabdicação humana – o computador estaria evoluindo
para se transformar em uma forma de vida capaz de entender melhor as pessoas do
que as próprias pessoas. E quem fala isso não é nenhum tecnofóbico, mas um dos
principais nomes do Vale do Silício: o designer de software Jaron Lanier.
Duas cenas em duas épocas
distantes entre si no tempo. O que veremos a seguir é que essas duas cenas estão interligadas não só em uma análise sobre o fenômeno do aplicativo Lulu, mas de toda a cultura criada em torno do consumo diário de aplicativos.
Primeira cena: Em meio à euforia
da revolução sexual dos anos 1960 desencadeada pela pílula anticoncepcional, a
descoberta da sexualidade desatrelada da reprodução e dos papéis familiares e a
erotização generalizada da mídia, publicidade e sociedade de consumo, o
pensador alemão Herbert Marcuse observava a tudo com desconfiança. Um dos
principais nomes da chamada Escola de Frankfurt, Marcuse estava naquele momento
no olho do furacão dos movimentos de rebeldia estudantil: professor de
filosofia no campus San Diego da Universidade da Califórnia. Para ele, o princípio de realidade contra o qual a
revolução se dirigia estava se transformando em algo mais insidioso: o princípio do desempenho, princípio que
transformaria toda a revolução sexual e dos costumes muito mais em sucesso de
vendas do que em real emancipação.
Jaron Lanier: o Vale do Silício estaria criando uma nova religião |
Segunda cena: O ano é 2004. No
meio do Vale do Silício, Califórnia, um cientista de computadores e designer de
software da Silicon Graphics denuncia: está em gestação uma verdadeira religião
cibertotalitária onde “computadores se humanizam e seres humanos tornam-se
computadores”. Pode-se criticar Jaron Lanier de qualquer coisa, menos de ser um
tecnofóbico: ele criou o conceito de realidade virtual e desenvolve soluções em
telepresença e tele-imersão. Para Lanier, cada software ou design de
aplicativos é expressão de um destino manifesto que está presente em cada
laboratório de inteligência artificial: os computadores ficarão tão grandes e
rápidos e a Internet tão rica em informações que será um “nível de descrição”
mais elevado do que o cérebro, algo como o ciber-super-humano.
Última novidade nos aplicativos
de relacionamentos, o Lulu ocupou o centro das atenções e tensões nas redes
sociais. Com o aplicativo, exclusivamente as mulheres podem conferir notas das
avaliações e hashtags aos homens com quem elas saíram, sairiam ou planejam
sair. Dessa maneira o aplicativo cria um sistema de cadastro de
homens onde as mulheres podem avaliar o perfil (Com fotos) dos homens sob
critérios como Aparência, Humor, Sexo, Educação, Primeiro Beijo etc. Ao
fim é atribuída uma nota de 0 a 10 ao perfil. O
Lulu já rendeu polêmica e processos na justiça por supostamente ferir o artigo
43 do Código do Consumidor por não ser comunicado ao usuário a abertura de sua
base de dados para outras pessoas.
Mas o Lulu
esconde outras questões mais profundas do que as tensas relações entre usuários
e a lei do consumidor ou entre homens ameaçados em suas virilidades e mulheres
supostamente vingativas. Começando a analisar o fenômeno Lulu a partir das
críticas de um designer de aplicativos, Jaron Lanier, o Lulu seria o sintoma de
uma filosofia que está por trás da maioria de engenheiros, cientistas e
designers digitais do Vale do Silício: a autoabdicação humana – o computador
estaria evoluindo para se transformar em uma forma de vida capaz de entender
melhor as pessoas do que as próprias pessoas.
Lulu e a religião do Vale do Silício
Em seu livro Gadget: você não é um aplicativo, Lanier
parte do prosaico exemplo do recurso do processador de texto do Word que
supostamente sabe o que o usuário quer e subitamente decide criar no momento
errado um recuo no parágrafo. Para ele, a verdadeira função do recurso não é
facilitar a vida das pessoas, mas de disseminar a filosofia de que o computador
possui um nível de descrição superior ao próprio usuário.
Reduzimos nossos padrões de inteligência para que os aplicativos pareçam ser mais espertos |
Para Lanier os
aplicativos seriam uma forma de propaganda que nos induz a acreditar que a
ferramenta é realmente esperta mediante a uma redução dos nossos padrões
humanos sobre a noção de inteligência. O exercício diário de tratar máquinas e
aplicativos como formas de inteligência reais torna as pessoas mais flexíveis
em relação ao seu senso de realidade.
Para o designer digital, depois que os
cientistas entusiastas das pesquisas em Inteligência Artificial viveram
prolongados fracassos na busca de uma língua natural, acabaram encontrando a
consolação na adoração da chamada “inteligência coletiva” como uma espécie de salto
de qualidade supra-humano a partir das inteligências individuais. Lanier dá o
exemplo da Wikipedia que acabaria funcionando da mesma forma que os textos
sagrados do passado: a autoria humana do texto é suprimida para conceder ao
texto uma veracidade supra-humana, como uma ilusão do Oráculo.
Inteligência coletiva, nuvem, algoritmo ou
qualquer outro objeto cibernético é aceito como uma super-inteligência por que
reduzimos os nossos padrões e expectativas sobre a inteligência. As pessoas se
degradariam o tempo todo para fazerem os aplicativos parecerem espertos. Por
exemplo, a ideia de amizade em redes de relacionamento é reduzida. Uma pessoa
se orgulha em dizer que possui milhares de amigos no Facebook. Essa afirmação
só poderia ser verdadeira se a ideia de amizade for reduzida. Ignora-se que a
verdadeira amizade deve expor à estranheza inesperada do outro.
Da mesma forma, a composição de um banco de
dados do aplicativo Lulu de homens em quesitos como Aparência,
Humor, Sexo, Primeiro Beijo etc. significa que uma pessoa que recebe um
relatório com esses conceitos descritores de alguém, deve ter uma expectativa
reduzida da vida sentimental, amor e amizades.
Aplicativos e bancos de dados os mais diversos seriam produtos dessa
verdadeira guinada religiosa do Vale do Silício: algumas pessoas – as mais
influentes – acreditam estarem ouvindo algoritmos, multidões e outras entidades
não humanas, com apoio da Internet, falarem por si mesmas. Um extremismo
religioso que, segundo Lanier, acaba invertendo o processo de engenharia de
cabeça para baixo – uma inteligência em nuvem que, para o futurólogo norte-americano Ray Kurzweil, seria o
nosso destino final para que possamos viver eternamente na realidade virtual
como bites.
Bruna Surfistinha, Marcuse e o Cupido empreendedor
Herbert Marcuse: o "princípio do desempenho" por trás da aparente liberação da sexualidade na mídia |
Em meio à polêmica sobre o Lulu, talvez as
declarações mais sintomáticas tenham sido da escritora Rachel Pacheco,
conhecida como Bruna Surfistinha que alcançou a notoriedade em relatar na
Internet detalhes picantes daqueles que procuravam seus serviços como
profissional do sexo. “Homem bom não teme”, disparou Bruna em relação ao pânico
masculino de ser avaliado publicamente. Noções como “nota” e “desempenho”
permearam as declarações da escritora sobre o aplicativo. A frase dita por ela
é uma referência ao ditado popular “quem não deve, não teme” (leia no portal G1
– clique
aqui).
De imediato lembramos as críticas de Jaron Lanier
sobre a autoabdicação humana: traição, sexualidade ou relação familiares são
tratados não mais como fenômenos qualitativos diversos, mas agora quantitativamente idênticos, porque reduzidos a notas e
desempenhos. Na verdade, um reflexo da linguagem digital do aplicativo que deve
reduzir a realidade em códigos binários para serem classificados em um banco de
dados, como uma tabula rasa de fenômenos com a mesma natureza estatística.
Mas a atribuição de “notas” e “desempenhos” a
eventos com diferenças qualitativas vai de encontro à desconfiança de Herbert
Marcuse de que a suposta emancipação da sexualidade, erotismo e sentimentos
através da chamada revolução sexual estaria sendo direcionada pelo que ele
denominou “princípio do desempenho”.
Marcuse tematizava nos anos 1960 a ideologia
do “princípio do desempenho” que estaria por trás da aparente liberação da
sexualidade na cultura do capitalismo tardio. A sexualidade não estava sendo
liberada a partir de seus próprios termos (fantasia, erotismo, jogo etc.), mas
a partir de princípios do mundo do trabalho e da mercadoria: eficácia,
eficiência, produtividade, resultado, lógica do mundo racional e da
linearidade. O sexo hiperbolizado, maximizado, anabolizado (tamanho do pênis, o
número de orgasmos alcançados, e assim por diante). Do campo do lúdico e do
erótico o sexo saltaria para o campo do desempenho e da maximização lineares.
Em outras palavras, o chamado tempo livre
sofreria uma deterioração ao ser submetido ao mesmo princípio do mundo do
trabalho. Para Marcuse, não
há a possibilidade de o individuo entregar-se a si próprio ou retirar-se para
um mundo diferente. O repertório de escolhas é superficial, assim como os
quesitos para se avaliar alguém em um aplicativo.
O
problema do aplicativo Lulu não estaria na limitação dos quesitos, mas na
própria filosofia que lhe sustenta – a da relação custo/benefício que sustenta
a lógica de mercado do mundo do trabalho regido pelo princípio do desempenho.
Dessa forma, antes de sairmos à procura de alguém para ser amante ou amigo,
deveremos fazer uma cotação no mercado em busca dos melhores “preços”. Ou seja, sem saber o usuário estaria sendo treinado subliminamente em seu momento de lazer a reforçar as disposições exigidas pelas empresas no dia-a-dia de trabalho.
Lulu é a confirmação de que as flechas de
Cupido não são mais disparadas pelo amor e paixão, mas agora pela fria lógica custo/benefício
onde o maior risco não é mais o de ter o coração partido, mas a vergonha de não
ter sido um eficiente empreendedor.