Era uma vez uma
época em que os momentos mais íntimos dos filhos eram registrados por meio de
fotografias e vídeos caseiros para serem mostrados aos vizinhos, parentes e
amigos mais próximos. Isso tudo ficou muito chato. Agora no lugar temos uma
autoconsciente e calculada produção de imagens, geralmente de crianças, com alcance
global através redes sociais ou em produtos esteticamente sofisticados e
profissionais como ensaios fotográficos publicados em photobooks, CDs ou em
sites e blogs na Internet. Nesse contexto cresce o subgênero das fotos chamadas “newborn”
(fotografias de recém-nascidos) onde, apesar do discurso da simplicidade e espontaneidade, são produzidas através de complexas estratégias técnicas e estéticas para simular cenas e poses enquanto, alheio a tudo, o bebê dorme. Que história essas fotos contarão para essas crianças no futuro?
As fotografias newborn (fotos de recém-nascidos em suas primeiras semanas de vida)
é o novo baby boom fotográfico. Um mercado tão promissor que acabou sendo
criada a Associação Brasileira de Fotógrafos de Recém-Nascidos (ABFRN) para
zelar a filosofia, ética e segurança dos pequenos modelos. Tudo isso em meio a
uma intensa agenda de Workshops e Conferências sobre o tema.
Se concordarmos com Woody Allen de que os
três principais fatos da nossa existência são nascimento, sexo e morte, as
fotos newborn (ao lado das fotos de
casamento, pornográficas e todos os rituais e estrutura de serviços funerários)
se revestem de grande importância para todos aqueles que estudam a semiótica da
cultura: a forma como a Natureza é incorporada pela Cultura através de uma
complexa rede de simbolismos e significados. E, principalmente, como essa rede
semiótica revela como sintomas as mazelas da sociedade e dos indivíduos.
A preocupação da ABFRN em zelar pela ética é
o reconhecimento de uma questão implícita nessas fotos: é sempre moralmente
complicado quando os membros mais vulneráveis da sociedade são transformados em
imagens sem eles terem possibilidade de consentir ou recusar. Principalmente porque
os bebês, alheios a tudo enquanto dormem, serão suportes vivos de significados
que pais e sociedade atribuem a eles. E levarão isso para o resto das suas
vidas.
Veremos através de uma análise semiótica do
sistema linguístico desse gênero fotográfico (em uma amostragem aleatória de
350 fotografias de ensaios newborn
exibidas pelo Google Imagens) que por trás do encanto dessas imagens esconde-se
uma elaborada produção tecnológica e simbólica: a contradição entre o discurso
da simplicidade e espontaneidade versus a calculada produção simbólica de
significados. Entre as fotos de estúdio e as chamadas “orgânicas” que procuram
minimizar essa contradição, tentando transformar o nascimento em um evento
natural integrado à família.
Os bebês estão entre o Mágico e o Orgânico
Em um primeiro olhar para o conjunto de
fotografias podemos perceber três grandes grupos que a princípio pode parecer
uma distinção logística ou instrumental, mas percebemos que determinam a
própria natureza da significação foto: (a) fotos no estúdio do fotógrafo; (b)
fotos na casa dos pais; (c) fotos metalinguísticas.
No conjunto (a) perceberemos que são
compostas por classes de frequência as mais carregadas retoricamente, pois
procuram atribuir significados mais abstratos como “dádiva”, “presente”, “Natureza”
ou “Futuro” – [Bebê no Saquinho de pano ≡ cegonha]; [Bebê em Posição fetal ≡ Natureza], [Nenê dentro de cesta ≡
dádiva/presente]; [Bebê sobre objeto ≡ [Composição Nenê e cenário ≡ futuro].
No conjunto (b) temos as fotografias que
poderíamos chamar de “orgânicas”, pois produzem significações associadas ao
ambiente doméstico e rotina familiar – [Bebê com o pai ≡ Falo]; [Bebê com a mãe
≡ aconchego]; [Bebê com pai e mãe ≡ proteção]; [Bebê em situações domésticas ≡
rotina].
No conjunto (c), a categoria fotográfica
típica de campos de atividades de produção cultural que de desenvolveram em
prestígio e legitimidade cultural, comercial e simbólica: fotos que apresentam
uma espécie de making of, os
bastidores e pequenos segredos da produção fotográfica newborn – [fotos infográficas ≡ Estratégias]; [fotografia do
fotógrafo ≡ aparatos de produção].
(a) No estúdio
Por serem as fotos mais produzidas pelo
ambiente do estúdio e pelo aparato técnico disponível elas se revestem de maior
significado simbólico: o bebê dentro de sacos de tecido suspensos ou rede como
estivesse sendo conduzido numa referência ao mito da cegonha. A posição fetal e
de bruços, criam a forma compacta em alusão à origem uterina. Os elementos
retóricos como flores de crochês, flores naturais na cabeça ou composições
florais reforçam a origem do bebê: a Natureza.
Em uma referência à construção simbólica
mítica, a Natureza é investida de um significado mágico: os eventos naturais
são representados como fossem dádivas ou presentes. Bebês em caixas (às vezes
retoricamente carregadas como engradados de exportação ou embalagens de
presentes) reforçam essa conotação de um lindo presente entregue aos pais pela
Mãe Natureza ou, num sentido mais “espiritualizado”, pela Providência.
Após essa apropriação mágica da Natureza, vem
a sua transformação: o Futuro do bebê. São as fotos mais elaboradamente posadas
em uma composição com cenários e objetos que retoricamente produzem uma espécie
especial de elipse: a prolépse – avanço no tempo figurando coisas futuras face
às presentes com as quais o bebê convive: bebê com óculos adultos com os braçinhos
apoiados sobre livros de Direito e Física Quântica, bebê com gravata, bebê
apoiado em um console de videogame etc.
(b) Fotos
orgânicas
Enquanto no grupo anterior reina a abstração
ao traduzir o evento natural do nascimento em termos de magia, miticismo e previsão,
no grupo dessas classes de frequência o evento natural é traduzido como evento
orgânico: a proximidade física com os corpos dos pais, carinho, aconchego e
proteção.
É interessante a construção de significados
na relação do bebê com o pai e a mãe. Na relação com o pai, vemos a construção
de um simbolismo que em Psicanálise chama-se “fálico”. Com o pai a relação é de
força e virilidade: bebê repousa sobre o braço do pai estendido (força), por
exemplo; em relação à mãe, os braços não se estendem, mais envolvem o bebê
(aconchego). Quando pai e mãe estão juntos, a composição das fotografias conota
uma ideia de proteção – juntos, os pais olham para o bebê, ao mesmo tempo em que
braços e mão envolvem ou tocam.
Como toda produção cultural, a Natureza deve
ser transformada, re-significada. Se no grupo anterior o evento biológico é
conotado como magia e mito, nas fotografias orgânicas (o Lar, a Casa, a
Família) já estão presentes conotações até políticas (o simbolismo fálico
paterno de Força e Poder) onde a rotina do cotidiano se interpõe como campo da reprodução
social da vida biológica – fotografias em que os pais observam a criança
brincando ou dormindo.
(c)
Metalinguagens
Nesse conjunto de fotografias é onde fica
mais explícita a contradição entre o discurso da “simplicidade” e o aparato de
produção e a astúcia das estratégias em simular a espontaneidade e simplicidade
enquanto o bebê dorme alheio a tudo. Fotografias em que vemos o fotógrafo,
luzes e cenários com o pequeno ser no centro enquanto uma atenta mãe observa
Ou ainda as fotografias com infográficos explicando os truques utilizados para manter a pose do bebê para o clique como esse: “Se
a cabeça ficar caindo para trás, pense em colocar um enchimento de apoio no
cotovelo do bebê”.
As fotografias desse grupo de classes de
frequência é o aspecto mais evidente de uma contradição que parece permear esse
sistema semiológico: o metadiscurso da simplicidade e espontaneidade desse
campo particular da fotografia convivendo com um complexo e autoconsciente
aparato tanto técnico como simbólico.
O Sistema Retórico
Como já abordamos acima, a primeira coisa que
chama a atenção no conjunto de fotografias newborn analisado é o domínio da
figura de retórica chamada prolépse: bebês vestindo tutu como fossem
bailarinas; bebê dormindo sobre um tecido em pele de onça enrolado em uma manta
roxa num décor nitidamente adulto; bebê incorporando o personagem de nerd com óculos adultos com os bracinhos
apoiados em grossos volumes de física quântica ou ainda sobre instrumentos
musicais.
Nitidamente a figura de retórica é uma projeção
da profissão ou estilo de vida dos pais.
Nas fotos orgânicas a retórica tende mais
para o simbolismo, metáforas e alegorias. São figuras de retórica mais
elaboradas exigindo mais sensibilidade do fotógrafo e do próprio consumidor
final dessas imagens.
Nas fotografias orgânicas há uma tendência
mais “documental” em preto e branco e sépia, ou tendendo para paletas de cores
em tons pastéis, compondo um décor de suavidade.
Ao contrário, no grupo de fotos em estúdio há
uma visível tendência estética para o kitsch pela saturação sígnica e pastiche
- fundos em papel de parede vitoriano com flores de crochê na cabeça do bebê
envolvido em mantas da qual sai uma ponta enrolada simulando um cordão
umbilical...
Ou ainda fundo em papel de parede vitoriano
(um clichê insistente) misturado com cesta de vime com tecido de algodão cru
onde o bebê repousa dando um toque de “simplicidade”.
Conclusões: o que história as fotografias querem contar?
O pediatra
Daniel Decker toca em dois pontos que a nossa análise semiótica parece
confirmar: “Acho lindo fazer fotos
espontâneas do recém-nascido no parque, mas essa “arte” parece estar sendo
usada para fazer graça ou divertir os adultos. Caso os pais decidam fazer essa
bobagem, melhor usar só luz natural. Imagino esse bebê como um adolescente
vendo as próprias fotos em poses forçadas ou engraçadas. Será que vai gostar?” (“Ensaios megaproduzidos com recém-nascidos ganham fãs e aquecem o
mercado fotográfico” – O Globo).
Desde 1855, quando na
Exposition Universelle de Paris (a primeira exposição industrial com exposição
de fotos), um fotógrafo alemão espantou a multidão ao apresentar duas versões
de um mesmo retrato (uma retocada e outra não), a fotografia abandonou o campo
do registro objetivo e documental para ser possuído pela autoconsciência da
cultura da pose. Assim como na Moda, o campo da fotografia promove-se a si
mesmo através do discurso do espontâneo através de um olhar cuja tecnologia e
todo o aparato técnico confere a aparência da objetividade e realismo.
O
sistema semiológico e retórico das fotos newborn
revela a contradição entre o discurso e a prática: uma simplicidade e
espontaneidade autoconscientes, como de resto toda a história da fotografia
acabou criando desde 1855 com o desenvolvimento da cultura da pose e fotogenia. Mas há algo mais: o predomínio da prolépse no
sistema retórico confirma essa secreta motivação da fotografia de querer “fazer
graça e divertir adultos” – as fotos como projeções no bebê das profissões e
estilo de vida dos pais.
Ao mesmo tempo suscita uma questão importante:
que histórias essas fotos querem contar? Se elas são duplamente simulações
(pela autoconsciência inerente da pose produzida por pais e fotógrafos e pela
projeção psíquica dos pais nos bebês) como o adolescente vai encarar essas
fotos que mostram o primeiro fato mais importante na biografia de um indivíduo?
É sintomática a origem desse gênero de fotos:
primeiro, a australiana Anne Geddes que no final dos anos 80 se notabilizou por
fotos de bebês em legumes, verduras e flores – um trabalho mais comercial
voltado a confecção de calendários. Segundo, as gêmeas americanas Kelley e
Tracy que, com a consultoria de pediatras e fisioterapeutas, procuraram tipos
de poses com filhos de clientes e criaram os clichês de recém-nascidos em
posição fetal, mãos no queixo e a história do bebê pendurando em um saquinho na
árvore.
O gênero newborn
é mais um exemplo dessa época onde a tecnologia, de tão sofisticada,
inverte sua própria finalidade original: das técnicas de revelação de imagens
por emulsão química à captação e tratamentos digitais atuais as imagens
suplantam o próprio real, ao em invés de reproduzi-lo. Uma segunda natureza
onde os pais veem mais a si próprios do que seus novos filhos. É precisamente
isso que as chamadas “fotos orgânicas” querem reverter.