O non sense, surrealismo e o humor muitas vezes sombrio das animações
“Hora de Aventura” e “Apenas um Show” (sugeridas pelo nosso leitor Paulo Massa)
causam estranheza nos adultos, embora as crianças as compreendam muito bem.
Essas animações são produtos culturais criados por representantes de uma
geração que cresceu vendo “Os Simpsons” e jogando "Dungeons and Dragons". Seus
criadores Pedleton Ward e J.G. Quintel são os mais acabados representantes de
uma cultura geek que conseguiu mesclar a tecnociência com o misticismo e magia
– o “tecnognosticismo”. Por isso conseguem dialogar com uma geração de crianças
cuja sensibilidade se altera com o entretenimento em plataformas móveis como
Ipods, tablets e celulares.
Hits do canal Cartoon Network,
as animações “Hora de Aventura” (Adventure Time) e “Apenas um Show” (Regular Show) podem ser considerados
produtos culturais criados por uma geração que cresceu vendo “Os Simpsons”,
jogando o RPG e game de computador Dungeons
and Dragons. E quem afirma isso são os seus próprios idealizadores,
respectivamente Pedleton Ward e J.G. Quintel.
São típicos produtos de uma
cultura geek que cresceu em contato com tecnologias de convergência e
interfaces digitais e muita navegação em ambientes fragmentados por
hipertextos. Acostumados que estamos com narrativas tradicionais em três atos,
com muitas gags visuais, correria e perseguições ao melhor estilo slapstick dos desenhos animados
tradicionais, assistir a esses novos produtos é uma experiência de
estranhamento pelo total surrealismo e non
sense.
Mas parece terem muito mais do
que isso: pela intensa utilização de simbolismos mágicos e fantásticos, há uma
desconstrução da realidade (no sentido do espaço-tempo newtoniano tradicional)
para a narrativa subitamente se expandir para outras dimensões, mundos
paralelos ou delírios onde realidade e fantasia se confundem.
Se para um adulto essa nova
geração de animações causam estranhamento e muitas vezes até paranoia (alguns
vão até tentar procurar mensagens subliminares que estariam destruindo a
infância), ao contrário, as crianças parecem adorar. Sua sensibilidade mudou,
graças ao contato crescente com as novas plataformas móveis de entretenimento –
Ipods, Celulares etc.
Numa visão mais profunda desse
fenômeno (como apontamos em postagem anterior sobre o o programa infantil da
BBC “Mister Maker – veja links abaixo) essas novas tecnologias não são apenas
mídias no sentido tradicional: elas alteram a percepção e a visão de mundo.
Elas são tecnognósticas, como apontado por pesquisadores como o norte-americano
Theodor Roszak.
Mas antes de desenvolvermos esse
tema, vamos ver algumas características dessas novas animações.
Hora de Aventura
Finn é
um menino que parece ser o único humano que restou. Os outros personagens como
seu companheiro Jake (um cão com poderes mágicos) são mutantes ou foram humanos
no passado como Merceline (uma vampira) e o Rei Gelado (ele possui uma coroa
que o deixa imortal, mas apagou sua memória e sanidade – ele tem mais de mil
anos). Além de uma grande galeria de monstros, demônios, gigantes, homens de
neve, fantasmas e até outras dimensões ou reinos, tudo decorrente de mutações
pós-catástrofe nuclear.
Marceline
é a única personagem que lembra de toda a transformação sofrida pela Terra. No
episódio “A Grande Guerra dos Cogumelos” (uma clara alusão aos “cogumelos nucleares”),
o único episódio mais ousado e didático para a compreensão de tudo o que
aconteceu. Vemos Marceline, então com 7 anos,
em uma cidade devastada na qual se esconde mutantes asquerosos que
lembram o clima apocalíptico da série “Walking Dead”
O misticismo
dá o tom da série com muitos reis, rainhas, duques e condes (alguns sem reino
para comandar) e referências a mitologias antigas. O pano de fundo da série é
surpreendentemente sombrio e melancólico para uma série infantil, mas os temas
dominantes das narrativas giram em torno de amores não correspondidos, solidão,
ciúmes e companheirismo.
Apenas um show
Dois jardineiros trabalham na
manutenção de um parque público, Mordecai (um gaio-azul) e Rigby (um guaxinim e
melhor amigo de Mordecai) causam constantes destruições e mal entendidos. Eles
buscam apenas diversão e tentam sempre burlar as responsabilidades do trabalho,
para a fúria de Benson (gerente do parque que é uma máquina de chiclete viva!).
Os amigos e trabalhadores do parque impressionam pela variedade surreal:
Saltitão (um Yeti a quem foi concedido a imortalidade se em todo aniversário
fizer uma danças cerimonial), Musculoso (obeso e anão, com pele verde e se
assemelhando a um pequeno Frankenstein), Fantasmão (um fantasma com uma mão em
sua cabeça – tem um irmão que tem o poder de transformar pessoas em fantasmas)
entre outros personagens dessa inacreditável galeria.
A principal característica é que
os episódios têm humor, sempre iniciando com uma história banal e, lentamente,
as coisas começam a perder o controle, passando para o plano surreal,
delirante, mágico ou fantástico.
A cultura geek e tecnognóstica
A
palavra geek originalmente é usada para designar pessoas estranhas ou que não
pertençam a um mainstream. Mas as diferentes conotações atuais falam de uma
pessoa expert ou entusiasta em um hobby ou área especializada. Seriam pessoas
obcecadas por tecnologia, eletrônica e games de computadores. São técnicos
autodidatas, unindo a paixão com a tecnologia.
Mas o
que tornaria essa cultura geek atual tão específica, diferente de outras épocas
onde a paixão pela tecnologia e ciência produziu animações como “Os Jetsons”,
“Os Herculóides” ou “Space Ghost”, frutos de uma geração envolvida com a
chegada do homem na Lua, o imaginário da NASA e da corrida espacial?
O
pesquisador norte-americano Theodor Roszak nos fornece uma pista no seu artigo From Satori To Silicon Valley: as novas
tecnologias computacionais produziram uma cultura tecnófila que trás em seu
núcleo um desejo místico e gnóstico de imortalidade – transcender a carne que
seria “o emocional subtexto à cada eufórica resposta ao lançamento de um novo
gadget computadorizado ou o lançamento de um novo web site de frivolidades”.
Citando o inventor do conceito de realidade virtual, Jaron Lanier, Roszak diz:
Lanier acredita no surgimento de uma nova categoria psicológica que chamamos de "nerdice". Intelectualmente, o nerd é aquele que procura maneiras de digitalizar todas as distinções entre qualidades, sentidos, e afetos. Emocionalmente, o nerd é entregue a uma sensibilidade alienígena que quer proteção da intimidade humana e contato físico. Por que alguém tem um desejo tão insistente por apagar a barreira entre o humano e o mecânico, mesmo em sua própria personalidade? Porque uma vez que acreditarmos que podemos superar essa barreira, estaremos para além da morte. Máquinas não morrem” (ROSZAK, Theodore. From Satori to Silicon Valley – Nerds, Zombies and the flight from mortality disponível em http://www-sul.stanford.edu/mac/primary/docs/satori/nerds.html.
Essa é a essência do encontro
entre tecnociência e misticismo: o tecnognosticismo. Se as tecnologias
“analógicas” do passado eram voltadas ao espaço exterior (o espaço sideral,
planetas etc), as digitais parecem voltar-se para o espaço interior através da relação lúdica, mística e mágica com a
tecnologia por meio da virtualização do real e, secretamente, do próprio
psiquismo por meio de uma fusão cognitiva (no futuro será neuronal) com as
redes de informações.
Ward e Quintel: geeks tecnognósticos
Ward e
Quintel são típicos representantes de uma geração nerd ou geek e suas animações
expressam isso:
(a) o
espaço-tempo newtoniano das antigas animações desaparecem para dar lugar a uma
pluralidade dimensional. No episódio “Dia de Reconhecimento” (veja vídeo abaixo), Mordecai e Rigby
roubam de Benson o livro de registro do parque para apagar suas más ações e
reescrever com bons registros para poderem ganhar uma placa de honra ao mérito.
As alterações do livro magicamente alteram o presente, criando um universo
alternativo no tempo e criando enormes confusões. Isso é o reflexo da
flexibilização e compressão tempo-espaço que experimentamos com o hipertexto
das interfaces atuais. Se no passado a narrativa das animações sempre era
estruturada em um mesmo continuum tempo-espaço, hoje a tendência é a estrutura
desse continuum se transformar numa analogia ao hipertexto;
(b) A
atmosfera pós-apocalíptica de “Hora da Aventura” com resquícios tecnológicos da
nossa era por todos os lados dos episódios, reflete essa sensibilidade geek de
um “começar do zero” que as novas tecnologias sugerem: a convergência
tecnológica e o desaparecimento das mídias tradicionais como um apocalipse e o
renascimento de um novo mundo. É o imaginário misticamente messiânico
tecnognóstico;
(c)
Principalmente em “Hora da Aventura”, temos uma carência de continuidade, com
subhistórias pobres e incompletas sem um desenvolvimento para a série. O
pós-apocalíptico é mantido como “atmosfera”, sem maior desenvolvimento. Tal
como o usuário diante de um hipertexto, os episódios são para serem “surfados”
ou “navegados”, sem uma narrativa acumulativa;
(d)
Como os próprios criadores Ward e Quintel falam em entrevistas, respondendo a
questões sobre o non sense e
esquisitice dos personagens e situações, ele afirmam que para eles nada é
estranho, já que cresceram vendo personagens míticos e mágicos em RPG e games
de computadores. Talvez, a galeria bizarra dos personagens expresse aquilo que
Roszak se referiu como “sensibilidade alienígena” ou como os próprios nerds ou geeks se sentem em um mundo analógico e físico: como estranhos e
deslocados.
(e) E
por fim, o tema recorrente da imortalidade, presente nas duas animações. O Rei
Gelado e a vampira Marceline em “Hora de Aventura” ou o cerimonial de
imortalidade do Saltitão em “Apenas um Show”: está nesse quesito o centro
místico de todo imaginário geek – o
de se tornar imortal através da fusão cognitiva ou neuronal com as redes de
informação. Se no passado o sonho da imortalidade passava pelas religiões
através do alcance da vida após morte depois de uma existência virtuosa ou na
cultura pop das imagens por meio da idolatria dos ícones das celebridades, nos
geeks o sonho da imortalidade é tecnognóstico: o upload final do Self para o céu dos bancos de dados.
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