terça-feira, agosto 13, 2013

A distopia AstroGnóstica da animação "Planeta Fantástico"


Ao contrário de muitos filmes anti-autoritários da década de 1970 que com o passar do tempo se tornaram datados e ingênuos, a estranheza da animação francesa “Planeta Fantástico” (La Planèt Sauvage, 1973) garantiu a ela um caráter a-temporal. A estranha, e muitas vezes cruel, história da animação sugere uma atmosfera resultante do cruzamento do surrealismo de Salvador Dali com a narrativa de Gulliver de Jonathan Swift. “Planeta Fantástico” se insere em um subgênero que cresceu nessa década desde o sucesso do filme “Planeta dos Macacos” (1968), o filme AstroGnóstico - narrativas onde aliens caem na Terra e se tornam prisioneiros da crueldade humana, ou o inverso: o homem dominado por aliens cujo conhecimento superior tecnológico e espiritual não é garantia de que sejam bondosos e tolerantes .
Um pai e sua filha passeiam pelo campo até se depararem com uma minúscula criatura órfã. A mãe da pequena criatura morreu pelas mãos de um cruel grupo de crianças. Após ouvir uma prelação do pai sobre a importância da responsabilidade, a menina convence-o a deixá-la levar a pequena criatura para casa. Lá brinca com o novo animal de estimação. Ela escolhe roupas para ele, como fosse uma boneca, embora a pequena criatura demonstre não gostar muito disso. Esse parece ser uma narrativa familiar sobre filmes de animais de estimação, mas não se engane. No estranho universo criado pelo francês René Laloux na clássica e cult animação “Planeta Fantástico” (1973), a pequena criatura é um bebê humano (chamados de Oms) e a menina e seus familiares enormes membros de pele azul da espécie Draag em um estranho planeta.
                Essa bizarra e muitas vezes cruel história parece o resultado do cruzamento do surrealismo de Salvador Dali e a história de Gulliver de Jonathan Swift, usando a técnica de animação cutout, comum na atualidade em series como South Park. Mas para a época não era muito habitual, a não ser em vinhetas da série de humor do grupo Monty Python na TV inglesa.

                “Planeta Fantástico” é mais um exemplar de um subgênero de filmes cults que proliferaram na década de 1970, que poderíamos denominar como “AstroGnósticos”: filmes onde aliens caem na Terra e se tornam prisioneiros da crueldade humana, ou o inverso: o homem dominado por aliens demiurgos. Desde “Planeta dos Macacos” (1968), mundos distópicos começam ficar em alta no cinema da década de 1970. Tecnologia, ciência e conhecimento não conduziram o homem à terra prometida, mas a mundos pós-apocalípticos. “Zardoz” (1974), “O Homem Que Caiu na Terra” (1976), “The People” (1972), “A Última Esperança da Terra” (1971), “Soylent Green” (1973) etc. são uma pequena amostra do subgênero AstroGnóstico dessa década.
                É a fase cult dos filmes gnósticos, com narrativas complexas tendendo para o surrealismo e o politicamente incorreto, com trilhas musicais com muito rock progressivo espacial – subgênero do rock que evoluiu do psicodelismo dos anos 1960 como bandas como Tangerine Dream, Eloy, Gong e David Bowie dos tempos de “Space Oddity”.
                Como todo filme AstroGnóstico, “Planeta Fantástico” está repleto de referências gnósticas, místicas e metafísicas. Embora feito em uma época de contestações e tumulto cultural no meio da corrida armamentista da Guerra Fria (o conflitos entre os Draags e os humanos poderia ser o simbolismo desse canário político), o filme encoraja interpretações muito mais internas e esotéricas.

O Filme

               
A animação acompanha a vida do bebê órfão chamado Terr, pego por uma menina Draag para ser domesticado da infância até a rebelião na adolescência. A menina, Tiva, telepaticamente absorve as lições escolares através de um dispositivo aural colocado em sua cabeça e, inocentemente, permite que Terr participe e partilhe dos conhecimentos. Todo o conhecimento absorvido pelo jovem humano só o faz ficar cada vez mais ressentido pelo tratamento que os Draags lhe dispensam, como um animal doméstico preso em uma gaiola dourada.
                O pai de Tiva, um dos líderes Draags, mostra cada vez mais desconfiança com o jovem Om, e se inclina a pensar humanos como verdadeiras pragas que deveriam ser dizimadas. Terr finalmente consegue escapar e fugir para o deserto além dos muros da cidade Draag. Ele vai encontrar uma tribo de Oms livres e selvagens em um mundo repleto de seres fantásticos, bizarros e perigosos. Eles enfrentam a possibilidade de genocídio por meio de pesticidas – o desejo de muitos Draags de livrar o planeta da praga Om. Mas o conhecimento adquirido por Terr trará a salvação para a comunidade.

Fugindo da gaiola dourada

Logo no início percebemos os argumentos místicos da animação: a principal atividade dos Draags é a meditação onde o Eu é projetado para o espaço em espécie de bolhas. Uma viagem metafísica que será a chave do clímax final da narrativa.
                Os estranhos conhecimentos absorvidos pelo protagonista pelo dispositivo telepático de Tiva desempenham o papel principal na trama: um conhecimento não apenas aplicado na fuga dos Oms do genocídio, mas principalmente como meio para o despertar da consciência para uma realidade não imediatamente perceptível para além de uma prisão confortável. É a referência que Laloux faz à gnose, o conhecimento divino que permite não só a salvação, mas também a capacidade de se elevar psiquicamente da condição de prisioneiro em uma cela confortável. Tal como muitas seitas gnósticas interpretam o Gênesis bíblico onde a maçã é o fruto do conhecimento que significaria o fim da inocência e a capacidade de elevação espiritual.
                Na trama os Oms são pouco mais do que formigas: aves, insetos e plantas ameaçam sua existência – são engolidos por inteiro ou esmagados pelos gigantes aliens. Ou seja, com o conhecimento adquirido por Terr, a batalha será travada em outro nível graças à gnose e a descoberta do papel deles dentro de um cosmos arbitrário e cruel.
                O interessante na trama de “Planeta Fantástico” é que os Oms guardam uma reminiscência das suas origens, de um planeta para qual desejam voltar e se livrar daquela existência infeliz. Mais um tema “AstroGnóstico: os Oms são aliens em um mundo governado por aliens/demiurgos. O conhecimento que Terr adquire não é uma novidade que eles desconhecessem: é apenas uma ferramenta para fazê-los relembrar de algo esquecido dentro deles,  para acender o desejo de retornar à terra natal.

A distopia da década de 1970

                Não pretendendo fazer um spoiler, outro ponto comum aos filmes AstroGnósticos dos anos 1970 é a questão da associação entre um certo tipo de conhecimento metafísico e a perda da vitalidade da alma. Assim como em “Zardoz”, no “Planeta Fantástico” os aliens, apesar de serem uma elite
tecnológica e espiritualmente avançada, se ressentem de perda de vitalidade na alma. Todo o conhecimento esotérico e científico não é capaz de trazer felicidade. Pelo contrário, os Draags estão no limite do tédio e da melancolia. A meditação é a principal atividade onde seus Eus são projetados para o espaço em busca de vitalidade e energia em um local que será o clímax final da animação.
                O final mostrará mais um tema gnóstico de “Planeta Fantástico”: o cosmos é imperfeito porque tende à entropia, perda de energia e desordem. Os aliens demiurgos só pode evitar isso roubando energia (a “Luz”) dos humanos, prisioneiros em seus domínios.
                “Planeta Fantástico” é mais um exemplo do refluxo das utopias hippies, psicodélicas e místicas da década de 1960. Se o misticismo que invadiu toda a cultura pop nessa década acabou resultando mais tarde em seitas autoritárias e suicidas, o filme AstroGnóstico refletirá essa distopia ao apresentar elites espiritualmente avançadas que se tornam cruéis, insensíveis e à beira do colapso da alma pelo tédio e melancolia.
                Esse é o ponto forte da animação: muitos filmes anti-autoritários dessa época sofreram com a passagem do tempo, tornando-se datados e ingênuos. Mas a estranheza essencial de “Planeta Fantástico”, repleto de cenas bizarras, o transforma em um filme não fácil de ser esquecido.  Suas mensagens não são alegorias fáceis. Por isso o filme consegue atingir planos a-temporais, seja ele teológico, político, metafísico ou mesmo ecológico. Porém, em uma linguagem estranha, gnóstica, perdida em um mundo estranho.

Ficha Técnica

  • Título: Planeta Fantástico (La Planèt Sauvage)
  • Diretor: René Laloux
  • Roteiro: Roland Topart baseado no livro de Stefan Wil “Oms en Série”
  • Elenco (vozes): Jennifer Drake, Eric Baugin, Jean Valmont, Jean Topart
  • Produção: Argos Films
  • Distribuição: Argos Films, Magnus Opus (Brasil, DVD)
  • Ano: 1973
  • País: França/Checoslováquia

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