Ao contrário de muitos filmes anti-autoritários da década de 1970 que
com o passar do tempo se tornaram datados e ingênuos, a estranheza da animação
francesa “Planeta Fantástico” (La Planèt Sauvage, 1973) garantiu a ela um caráter
a-temporal. A estranha, e muitas vezes cruel, história da animação sugere uma
atmosfera resultante do cruzamento do surrealismo de Salvador Dali com a
narrativa de Gulliver de Jonathan Swift. “Planeta Fantástico” se insere em um
subgênero que cresceu nessa década desde o sucesso do filme “Planeta dos
Macacos” (1968), o filme AstroGnóstico - narrativas onde aliens caem na Terra e
se tornam prisioneiros da crueldade humana, ou o inverso: o homem dominado por
aliens cujo conhecimento superior tecnológico e espiritual não é garantia de
que sejam bondosos e tolerantes .
Um pai e sua filha passeiam pelo
campo até se depararem com uma minúscula criatura órfã. A mãe da pequena
criatura morreu pelas mãos de um cruel grupo de crianças. Após ouvir uma prelação
do pai sobre a importância da responsabilidade, a menina convence-o a deixá-la
levar a pequena criatura para casa. Lá brinca com o novo animal de estimação.
Ela escolhe roupas para ele, como fosse uma boneca, embora a pequena criatura
demonstre não gostar muito disso. Esse parece ser uma narrativa familiar sobre
filmes de animais de estimação, mas não se engane. No estranho universo criado
pelo francês René Laloux na clássica e cult animação “Planeta Fantástico”
(1973), a pequena criatura é um bebê humano (chamados de Oms) e a menina e seus
familiares enormes membros de pele azul da espécie Draag em um estranho
planeta.
Essa
bizarra e muitas vezes cruel história parece o resultado do cruzamento do
surrealismo de Salvador Dali e a história de Gulliver de Jonathan Swift, usando
a técnica de animação cutout, comum na atualidade em series como South Park.
Mas para a época não era muito habitual, a não ser em vinhetas da série de
humor do grupo Monty Python na TV inglesa.
O Filme
A animação acompanha a vida do bebê órfão chamado Terr, pego por uma menina Draag para ser domesticado da infância até a rebelião na adolescência. A menina, Tiva, telepaticamente absorve as lições escolares através de um dispositivo aural colocado em sua cabeça e, inocentemente, permite que Terr participe e partilhe dos conhecimentos. Todo o conhecimento absorvido pelo jovem humano só o faz ficar cada vez mais ressentido pelo tratamento que os Draags lhe dispensam, como um animal doméstico preso em uma gaiola dourada.
Fugindo da gaiola
dourada
A distopia da década
de 1970
“Planeta
Fantástico” é mais um exemplar de um subgênero de filmes cults que proliferaram na década de 1970, que poderíamos denominar
como “AstroGnósticos”: filmes onde aliens caem na Terra e se tornam
prisioneiros da crueldade humana, ou o inverso: o homem dominado por aliens
demiurgos. Desde “Planeta dos Macacos” (1968), mundos distópicos começam ficar
em alta no cinema da década de 1970. Tecnologia, ciência e conhecimento não
conduziram o homem à terra prometida, mas a mundos pós-apocalípticos. “Zardoz”
(1974), “O Homem Que Caiu na Terra” (1976), “The People” (1972), “A Última
Esperança da Terra” (1971), “Soylent Green” (1973) etc. são uma pequena amostra
do subgênero AstroGnóstico dessa década.
É a
fase cult dos filmes gnósticos, com narrativas complexas tendendo para o
surrealismo e o politicamente incorreto, com trilhas musicais com muito rock
progressivo espacial – subgênero do rock que evoluiu do psicodelismo dos anos
1960 como bandas como Tangerine Dream, Eloy, Gong e David Bowie dos tempos de
“Space Oddity”.
Como
todo filme AstroGnóstico, “Planeta Fantástico” está repleto de referências
gnósticas, místicas e metafísicas. Embora feito em uma época de contestações e
tumulto cultural no meio da corrida armamentista da Guerra Fria (o conflitos
entre os Draags e os humanos poderia ser o simbolismo desse canário político),
o filme encoraja interpretações muito mais internas e esotéricas.
O Filme
A animação acompanha a vida do bebê órfão chamado Terr, pego por uma menina Draag para ser domesticado da infância até a rebelião na adolescência. A menina, Tiva, telepaticamente absorve as lições escolares através de um dispositivo aural colocado em sua cabeça e, inocentemente, permite que Terr participe e partilhe dos conhecimentos. Todo o conhecimento absorvido pelo jovem humano só o faz ficar cada vez mais ressentido pelo tratamento que os Draags lhe dispensam, como um animal doméstico preso em uma gaiola dourada.
O pai
de Tiva, um dos líderes Draags, mostra cada vez mais desconfiança com o jovem
Om, e se inclina a pensar humanos como verdadeiras pragas que deveriam ser
dizimadas. Terr finalmente consegue escapar e fugir para o deserto além dos
muros da cidade Draag. Ele vai encontrar uma tribo de Oms livres e selvagens em
um mundo repleto de seres fantásticos, bizarros e perigosos. Eles enfrentam a
possibilidade de genocídio por meio de pesticidas – o desejo de muitos Draags
de livrar o planeta da praga Om. Mas o conhecimento adquirido por Terr trará a
salvação para a comunidade.
Fugindo da gaiola
dourada
Logo no início percebemos os
argumentos místicos da animação: a principal atividade dos Draags é a meditação
onde o Eu é projetado para o espaço em espécie de bolhas. Uma viagem metafísica
que será a chave do clímax final da narrativa.
Os
estranhos conhecimentos absorvidos pelo protagonista pelo dispositivo
telepático de Tiva desempenham o papel principal na trama: um conhecimento não
apenas aplicado na fuga dos Oms do genocídio, mas principalmente como meio para
o despertar da consciência para uma realidade não imediatamente perceptível
para além de uma prisão confortável. É a referência que Laloux faz à gnose, o conhecimento divino que permite
não só a salvação, mas também a capacidade de se elevar psiquicamente da
condição de prisioneiro em uma cela confortável. Tal como muitas seitas
gnósticas interpretam o Gênesis bíblico onde a maçã é o fruto do conhecimento
que significaria o fim da inocência e a capacidade de elevação espiritual.
Na
trama os Oms são pouco mais do que formigas: aves, insetos e plantas ameaçam
sua existência – são engolidos por inteiro ou esmagados pelos gigantes aliens. Ou
seja, com o conhecimento adquirido por Terr, a batalha será travada em outro
nível graças à gnose e a descoberta do papel deles dentro de um cosmos
arbitrário e cruel.
O
interessante na trama de “Planeta Fantástico” é que os Oms guardam uma
reminiscência das suas origens, de um planeta para qual desejam voltar e se
livrar daquela existência infeliz. Mais um tema “AstroGnóstico: os Oms são
aliens em um mundo governado por aliens/demiurgos. O conhecimento que Terr
adquire não é uma novidade que eles desconhecessem: é apenas uma ferramenta para
fazê-los relembrar de algo esquecido dentro deles, para acender o desejo de retornar à terra
natal.
A distopia da década
de 1970
Não
pretendendo fazer um spoiler, outro
ponto comum aos filmes AstroGnósticos dos anos 1970 é a questão da associação
entre um certo tipo de conhecimento metafísico e a perda da vitalidade da alma.
Assim como em “Zardoz”, no “Planeta Fantástico” os aliens, apesar de serem uma
elite
tecnológica e espiritualmente avançada, se ressentem de perda de vitalidade na alma. Todo o conhecimento esotérico e científico não é capaz de trazer felicidade. Pelo contrário, os Draags estão no limite do tédio e da melancolia. A meditação é a principal atividade onde seus Eus são projetados para o espaço em busca de vitalidade e energia em um local que será o clímax final da animação.
tecnológica e espiritualmente avançada, se ressentem de perda de vitalidade na alma. Todo o conhecimento esotérico e científico não é capaz de trazer felicidade. Pelo contrário, os Draags estão no limite do tédio e da melancolia. A meditação é a principal atividade onde seus Eus são projetados para o espaço em busca de vitalidade e energia em um local que será o clímax final da animação.
O final
mostrará mais um tema gnóstico de “Planeta Fantástico”: o cosmos é imperfeito
porque tende à entropia, perda de energia e desordem. Os aliens demiurgos só
pode evitar isso roubando energia (a “Luz”) dos humanos, prisioneiros em seus
domínios.
“Planeta
Fantástico” é mais um exemplo do refluxo das utopias hippies, psicodélicas e
místicas da década de 1960. Se o misticismo que invadiu toda a cultura pop
nessa década acabou resultando mais tarde em seitas autoritárias e suicidas, o
filme AstroGnóstico refletirá essa distopia ao apresentar elites
espiritualmente avançadas que se tornam cruéis, insensíveis e à beira do
colapso da alma pelo tédio e melancolia.
Esse é
o ponto forte da animação: muitos filmes anti-autoritários dessa época sofreram
com a passagem do tempo, tornando-se datados e ingênuos. Mas a estranheza
essencial de “Planeta Fantástico”, repleto de cenas bizarras, o transforma em
um filme não fácil de ser esquecido. Suas mensagens não são alegorias fáceis. Por
isso o filme consegue atingir planos a-temporais, seja ele teológico, político,
metafísico ou mesmo ecológico. Porém, em uma linguagem estranha, gnóstica,
perdida em um mundo estranho.
Ficha Técnica
- Título: Planeta Fantástico (La Planèt Sauvage)
- Diretor: René Laloux
- Roteiro: Roland Topart baseado no livro de Stefan Wil “Oms en Série”
- Elenco (vozes): Jennifer Drake, Eric Baugin, Jean Valmont, Jean Topart
- Produção: Argos Films
- Distribuição: Argos Films, Magnus Opus (Brasil, DVD)
- Ano: 1973
- País: França/Checoslováquia