Morto aos 30 anos na Guerra Civil Espanhola em 1937, o pensador e poeta
marxista Christopher Caudwell produziu uma instigante análise sobre a crise na
física na década de 1930 (a rejeição de Einstein e de outros físicos ao
Princípio da Incerteza de Heisenberg) sob o ponto de vista do materialismo
dialético. Caudwell em sua obra “A Crise na Física” anteviu o que denominou
como “tela de fenômenos” criada pela “metafísica da física”, uma filosofia
inconsciente que aprisionaria a Física em uma verdadeira “Matrix” de categorias
mentais que aprisionariam a realidade dentro do restrito modelo do determinismo
e do mecanicismo cujas origens estão nos fundamentos do modo de produção
capitalista.
A
carreira de teórico da cultura do marxista inglês Christopher Caudwell foi
realmente muito breve. Dois anos depois de iniciar uma série sistemática de
análises marxistas sobre diversas áreas morreu lutando na Guerra Civil
Espanhola no primeiro dia da batalha de Jarama em 1937 quando tinha tão somente
30 anos. Mas foi o suficiente para produzir um respeitável livro sobre física
do ponto de vista do materialismo dialético marxista chamado “A Crise na
Física” e quatro outros trabalhos sobre crítica cultural – “Ilusion and
Reality”, “Romance and Realism” e ensaios no campo na História, Psicologia e
Religião agrupados em um único livro intitulado “Estudos Sobre Uma Cultura
Agonizante”. No Brasil esses trabalhos foram reunidos em uma coletânea em 1968
sob o título “O Conceito de Liberdade” publicada pela editora Zahar.
Certamente
o trabalho mais instigante foi “A Crise na Física” pelo seu poder de síntese e
uma ousada aplicação do método dialético marxista em um campo aparentemente
distante da economia política: a Física. Caudwell de dispôs a analisar os
fundamentos de uma crise que saia do campo restrito dos físicos e chegava à
opinião pública – as descobertas dos jovens físicos como Heisenberg,
Schrödinger e Eddington combatidas por Einstein e Planck, isto é, a descoberta
de que os princípios de determinismo e a causalidade estavam sendo expulsos da
física e que a “velha guarda” ainda procuravam manter a “metafísica da física”
representada pelos princípios newtonianos.
Para
Caudwell essa “metafísica” no interior da Física criaria uma tensão dialética
cuja resolução só poderia acontecer com a ruptura da base absoluta que é
constituída pela filosofia burguesa.
Einstein incorpora a física newtoniana para alcançar uma fundação firme e absoluta em meio à crise da relatividade |
Embora
Einstein mostrasse que as dimensões que Newton supôs serem absolutas eram
relativas (massa, atomismo, tempo, espaço, gravidade), isso não significava que
Einstein acreditasse que todas as dimensões do Universo fossem relativas: “todo
o trabalho da sua existência tem sido dedicado à eliminação das qualidades
relativas da Física de modo a alcançar finalmente uma fundação firme e
absoluta”.
A
cada revelação da relatividade em determinada dimensão, era considerado uma
crise que só poderia ser solucionada restaurando-se a normalidade em um outro
plano. O tênue equilíbrio entre o atomismo das partículas que possuem
trajetórias independentes (inércia) e o monismo da onipresente força da
gravidade foi quebrado pela teoria especial da relatividade para depois o
monismo ser restabelecido por uma nova geometria do continuum tempo-espaço da
teoria geral da relatividade.
Caudwell
argumenta que essa “metafísica da física” (categorias sociais que estruturam a
ideologia geral que correspondem à ideia do Universo como uma gigantesca
máquina cósmica regida pelos princípios do mecanismo – atomismo, causalidade
“escrita” e tempo e espaço absolutos) vai não só impedir o “salto qualitativo”
trazido pela perspectiva quântica e pelo indeterminismo de Heisenberg como
criará uma visão da realidade como uma “tela de fenômenos”, isto é, criará uma
consciência tão presa por essa metafísica que se transformará numa “consciência
divina separada da realidade material” que apenas consegue uma mera cópia da
realidade existente.
O
jovem Caudwell mostra uma surpreendente lucidez para a época (década de 1930)
em pleno debate entre Einstein e a vanguarda da física quântica não só por
perceber que a suposta revolução da relatividade foi uma tentativa de resolver
uma contradição em um “nível superior” da física tradicional como também
percebeu a “tela de fenômenos” resultante da “metafísica da física”. Algo que
na chamada discussão pós-moderna seria chamado de neo-platonismo, a precessão
dos simulacros (a hiper-realidade) ou simplesmente a realidade filtrada por uma
“matrix”.
A metafísica da Física
Para Caudwell a metafísica da ciência tem origem nas categorias da economia de mercado |
Para
Caudwell a metafísica da ciência tem uma relação orgânica com a matriz de uma
visão burguesa de mundo formada por categorias de pensamento que não são como
as kantianas, como um a priori ahistórico, mas por categorias que tem uma
relação ativa com a base econômica: a propriedade privada, a economia de mercado
e o individualismo burguês. Essas categorias criam uma visão de mundo, uma
“filosofia inconsciente” dentro do qual a física irá ter um conhecimento geral
e abstrato da realidade.
Primeiro,
a propriedade privada e a economia de mercado criarão uma cisão entre sujeito e
objeto (na física entre observador e observado): os agentes econômicos seriam
pensados como produtores independentes livres, espontâneos e racionais que agem
sobre uma realidade organizada como um mecanismo. A máquina (“porção humanizada
da realidade”) é a propriedade e escravo do burguês que a desenha para o
domínio a partir do funcionamento racional do mecanismo. De um lado, o sujeito
livre e racional. Do outro o objeto, a máquina, a realidade, o mercado e o
proletário, entidades que deverão ser apropriados e dominados.
Temos,
portanto, as ideias de causalidade, determinismo e mecanismo como decorrentes
das relações econômicas de dominação e propriedade. Por outro lado, as ações
racionais dos produtores individuais levam tendencialmente à irracionalidade do
todo (a “anarquia da produção”), assim como na física newtoniana a ação
inercial das partículas exige uma intervenção monista como a lei da gravidade que
unificaria o Universo ou a “mão invisível” que organizaria magicamente o
mercado. Crises como o crash de Nova York de 1929 demonstraram a
irracionalidade dessa “metafísica”.
Segundo
Caudwell, o que os cientistas não compreendem é que a Física é constituída por
categorias econômicas e a Natureza é um tipo bem diferente de máquina. Da mesma forma que as contradições da
economia de mercado empurram o capitalismo para crises cíclicas e tentativas de
resolução em novas “geometrias” (a financeirização, por exemplo), da mesma
forma as contradições na Física (atomismo versus monismo) seriam resolvidas em
níveis superiores como na teoria geral da relatividade.
Tentando solucionar uma crise
Bohr e Einstein: o Princípio da Correspondência para fazer frente ao Universo descontínuo da física quântica |
Inúmeras
descobertas físicas intervieram para demonstrar as contradições do sistema
newtoniano: se a força da gravidade é o produto de distância e massa e a distância
é relativa ao observador, a massa também deveria ser relativa ao observador. Se
a força da gravidade aparece como aceleração, como pode a mudança de movimento
ser absoluta se todo movimento uniforme é relativo? Essas contradições
formuladas por Einstein na Relatividade Especial exigiam um Princípio Geral.
Caudwell
descreve a seguinte solução de Einstein: massa, impulso, energia cinética e
potencial e inércia são colocados em uma geometria comum, não euclidiana. Essa
geometria “real” sintetiza a lei newtoniana da gravidade e do movimento numa
única lei básica: “o raio direto é constante no espaço vazio”. O que se conclui
que o comportamento da partícula é determinado pela geometria do resto do
Universo. Em outras palavras, o mundo de Einstein é monista e elimina o
problemático pluralismo newtoniano. A geometria deste Universo é um contínuo,
sem tempo ou espaço absolutos, mas unidos geometricamente num bloco e cada
observador o divide de maneira diferente em espaço e tempo.
Mas
essa visão contínua do Universo foi solapada pela física experimental quântica
e pelo Princípio da Incerteza de Heisenberg: a posição e a velocidade de um
elétron ou partícula elementar nunca podem ser exatamente conhecidas, pois a
conexão entre elas é o quantum extremamente pequeno de ação. Há uma
descontinuidade fundamental na Natureza que sempre se supôs contínua.
Mas
de que modo a física explica o êxito das teorias de Newton e Einstein que
supõem uma continuidade básica nos fenômenos? Através do Princípio da
Correspondência de Neils Bohr onde inumeráveis descontinuidades sobrepõem-se,
por assim dizer, e se tornam contínuas. As descontinuidades podem coincidir e
ser perceptíveis. Mas as probabilidades contra isto são tão imensas que a
possibilidade pode ser ignorada. Dessa maneira, o problema das imutáveis leis
da física (determinismo, causalidade etc.) agora passa a ser considerado sob as
leis estatísticas ou de “probabilidade”.
As
leis clássicas do movimento passam a se aproximar da termodinâmica com suas
leis sobre o movimento molecular sob calor e pressão.
Stock Market Cycles: termodinâmica e Teoria do Caos para manter o "caos determinístico" sob a égide do determinismo e mecanicismo |
Aqui
Caudwell encerra seu raciocínio ao demonstrar como as contradições criadas pela
nova geração de físicos no interior da metafísica do modelo maquínico de
Universo foi conciliada em outro nível: a sanção do determinismo sob a roupagem
da estatística e cálculos de probabilidade.
Se
Caudwell vivesse mais ainda teria tempo de ver o desdobramento das leis da
termodinâmica na Teoria do Caos com seus conceitos como “atratores estranhos” e
“fractais” que tentam dar conta do funcionamento de sistemas dinâmicos e
complexos. Veria a tentativa de manter esses sistemas ainda confinados nas
categorias do determinismo e mecanismo sob a égide do “caos determinístico”,
fenômenos aleatórios que ainda poderiam ser representados por equações.
Certamente
Caudwell relacionaria essa tentativa da Física em resolver as contradições em
“nível superior” com a estratégia do capitalismo em superar a irracionalidade
da produção buscando formas de realização de lucro através da financeirização. E
novamente aqui vemos as conexões entre a Física e a infraestrutura econômica: a
irracionalidade do mercado financeiro é racionalizada pelos cálculos
probabilísticos de risco dos investimentos. É a própria ideologia da metafísica
burguesa em ação ao naturalizar os fenômenos econômico-financeiros ao
encará-los como movimentos semelhantes às placas tectônicas, fenômenos
meteorológicos entre outros eventos imprevisíveis da Natureza.
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