“Uma estrela
digitalizada! Sabe o que isso significa? Vamos entrar em uma nova dimensão: nossa capacidade de criar
uma fraude ultrapassou nossa capacidade de detectá-la” Depois de escrever o
roteiro de “Show de Truman” Andrew Niccol escreveu, dirigiu e produziu “S1m0ne”
(2002) para aprofundar ainda mais a questão lançada no filme anterior. Se em “Show
de Truman” tínhamos um mundo falso criado para aprisionar uma pessoa, em
“S1m0ne” Niccol fez o inverso: a criação de uma pessoa falsa para enganar e
seduzir todo o mundo.
Andrew Niccol
demonstra uma afinidade com temáticas relacionadas aos impactos sociais das
mídias e novas tecnologias. Antes, escreveu os roteiros de “Gattaca” (1997) e “Show
de Truman” (1998), filmes que, respectivamente, discutiam a ética e o impacto
humano na manipulação genética e a hipertrofia do gênero televisivo reality
show. Uma olhar para o impacto da tecnologia através de simbolismos
cabalísticos, alquímicos e gnósticos. Dessa forma, Niccol pertence a uma
geração de roteiristas e diretores que, a partir da década de 1990, participam
de uma espécie de guinada metafísica de Hollywood já discutida em postagem
anterior (veja links abaixo): Darren Aronofsky (“Pi” – 1998 e “Fonte da Vida” –
2006), Charlie Kaufman – “Quero Ser John Malkovich” – 1999 e “Brilho Eterno de
Uma Mente Sem Lembranças” – 2003) entre outros.
Em “S1m0ne” Niccol
faz uma irônica projeção do futuro do cinema com as tecnologias digitais onde a
virtualização poderia chegar às raias da fraude e também uma forma mística de
transcendência espiritual para escapar da “irracional fidelidade à carne”, como
declara o protagonista em uma das linhas de diálogo do filme.
Toda a narrativa
passa dentro de um grande estúdio hollywoodiano mostrando as problemáticas
relações que fazem parte do showbizz, principalmente as idiossincrasias e
chiliques de uma impagável estrela interpretada por Winona Ryder e a vítima, um
diretor chamado Victor Taranksy (Al Pacino). Victor é um diretor decadente após
sucessivos fiascos mercadológicos às vésperas de ser demitido pela própria
ex-esposa Elaine (Catherine Keener), executiva do estúdio. Tudo parece perdido
até aparecer um fã lunático que teria a solução: um código de programação capaz
de gerar a protagonista perfeita da sua próxima produção, uma atriz virtual
obediente ao diretor e sem os problemas estrelismos e rebeldia. Vetores no
lugar de seres humanos, pois “a carne é fraca”, como afirma o fã maluco de
Taranksy que está à beira da morte devido a um tumor em um dos olhos desenvolvido
por ficar horas diante do monitor de computador.
O código é o
programa “Simulation One”, de onde Taranksy se inspirará para criar o nome
“Simone”a partir de uma contração do nome do software. Demitido do estúdio, com
a casa hipotecada e perseguido por credores Taranksy termina seu último filme
que resulta num sucesso, graças ao estranho magnetismo de Simone. Ela foi
elaborada digitalmente a partir de um repertório contido no programa das
grandes atrizes e femmes fatales do
cinema: a voz da jovem Jane Fonda, o corpo de Sofia Loren, a graciosidade de
Grace Kelly, o rosto de Audrey Hepburn e o olhar fatal de Lauren Bacall.
O público e o
estúdio querem saber quem é Simone. Taranksy fará o impossível para manter o
segredo sobre a virtualidade da atriz principal – Simone sofreria de agorafobia
que a faria viver reclusa, longe de contatos sociais. Mas aos poucos o feitiço
volta-se contra o feiticeiro: o fascínio do público pelo encanto e sensualidade
de Simone supera os próprios filmes de Taranksy, deixando o diretor em segundo
plano. O diretor literalmente fala através dela por meio de filtros de voz
carregados pelo programa. Simone torna-se estrela mundial, presente em talk
shows e até em turnês internacionais onde se “materializa” por meio de
hologramas para cantar para as multidões hipnotizadas. Tudo controlado a partir
do computador instalado em um enorme estúdio em Hollywood, secretamente
guardado por Taranksy.
Do Golem ao mito de Pigmaleão
Niccol mais uma
vez retoma o tema cabalístico do golem:
o “não formado”, a matéria disforme e imperfeita cujas fórmulas, números ou
códigos binários da computação darão a forma e a perfeição. Uma nova humanidade
longe da carne imperfeita e decaída. Truman era o bebê moldado através dos
códigos televisivos para tornar-se um modelo para inspirar milhões. Simone é a
síntese abstrata de todos os grandes ícones femininos da história do cinema que
se transformará em objeto de adoração quase religiosa por milhões.
Como em todas as
narrativas mitológicas sobe o fascínio por estátuas ou imagens que ganham vida
– desde o mito de Pigmaleão da estátua feminina que ganha vida e se casa com o próprio
escultor – em “S1m0ne” estão presentes os distúrbios resultantes da violação
das fronteiras entre o animado e o inanimado, natural e artificial, humano e
mecanismo.
Se for verdade a
afirmação de Eric Wilson em seu livro “Secret Cinema”, de que por trás de cada
ida ao cinema existe a renovada motivação do fascínio pelas formas perfeitas
dos verdadeiros Adão e Eva antes da Queda que são os astros e estrelas, Simone
é a superação disso. Explicando melhor: se o cinema sempre foi uma simulação no
sentido da interpretação dos atores, criação de realidades com recursos
ficcionais como edição e montagem e do próprio dispositivo que transforma tudo
isso em luz projetada em uma tela, com a digitalização temos o simulacro dentro
da própria simulação. “S1m0ne” é a projeção irônica de um futuro já sinalizado
em filmes como “Final Fantasy” e “Avatar” onde o simulacro substitui a própria referência
ou o real que deveria ser simulado (o ator, a cenografia, o set de filmagem, o
estúdio etc.).
Simone não é mais
uma atriz real transformada em uma simulação sedutora pelos recursos da
linguagem audiovisual. Ela é sintética, o resultado de uma colagem digital de
todas as musas, divas e femmes fatales
da história do cinema, transformadas agora em galeria de ícones em uma pasta
digital. Se desde o início íamos ao cinema por um secreto impulso de vermos
formas que transcendiam a carne decadente e feia do cotidiano, agora podemos
chegar a realização plena. Se no passado as atrizes se imortalizavam por uma
especialidade (o olhar de Bete Davis, as pernas de Marlene Dietrich, a voz de
Lauren Bacall e assim por diante), o simulacro digital junta todos os fragmentos
em uma só personagem criando o hiper-real.
Se antes essa
especialização adquiria um tom dramático-teatral que produzia um distanciamento
onde, de nossas poltronas, admirávamos (ou seja, havia ainda o real como um
horizonte referencial), hoje o look digital
promete a substituição do real pelo simulacro.
Por esse motivo o
diagnóstico sombrio de Andrew Niccol tanto em “Show de Truman” quanto em
“S1m0ne”: diante do hiper-real desaparece a distinção virtual e real, falso e
verdadeiro. Truman consegue finalmente fugir do estúdio no final e os
telespectadores simplesmente abrem o TV
Guide em busca de uma nova atração; em “S1m0ne” mesmo depois de revelada a
fraude digital, o público e os executivos do estúdio não acreditam. Pouco
importa se ela é falsa. Ela é a pura aparência, o golem que transcendeu a oposição entre ilusão e a realidade.
Filme "Tolerãncia": a construção da mulher hiper-real |
“Eu sou a morte
do real!”, grita profeticamente Victor Taranksy diante de Simone na tela do
computador antevendo um tipo de cinema onde não só o referente (atores e cenografia),
mas o próprio suporte (a película) desaparecerá em imagens hiper-reais em streaming. Mas o messianismo de Taranksy
lhe trai: suas pretensões artísticas e suas mensagens críticas são eclipsadas
pelo fetiche de Simone. Para desespero do protagonista seus filmes acabam se
tornando auto-referentes, isto é, não conseguem mais comunicar nada, a não ser
o fascínio fetiche pela protagonista.
A mulher fragmentada
Um exemplo
didático do princípio dessa construção da hiper-realidade podemos encontrar em
uma passagem do filme brasileiro “Tolerância” (2000): desesperado, um fotógrafo
publicitário pede ajuda a um designer gráfico para salvar o trabalho. Após uma
árdua semana, o fotógrafo repara que a modelo engordou e que a bunda está
"caída" nas fotos. Sem tempo e filme para refazer o trabalho, pede
ajuda ao designer. Numa seqüência bem didática, o personagem abre a fotografia
em questão no programa de computação gráfica photoshop e, ao mesmo tempo, no canto da
tela do computador, surge um verdadeiro "clip‑art" de bundas:
uma coleção de bundas em close de modelos que participaram de diversas campanhas
publicitárias.
O designer seleciona a que melhor encaixa no corpo da
modelo e "arrasta" com o mouse até o ponto desejado. A foto
resultante é uma mulher fruto de um verdadeiro trabalho de colagens de
fragmentos modais das fantasias do psiquismo do mercado.
Ficha Técnica
- Título: S1m0ne
- Diretor: Andrew Niccol
- Roteiro: Andrew Niccol
- Elenco: Al Pacino, Catherine Keener, Rachel Roberts, Winona Ryder
- Produção: New Line Cinema
- Distribuição: PlayArte Home Video
- Ano: 2002
- País: EUA
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