Enquanto a TV Globo tenta resgatar a bolsonarista atriz Regina Duarte, o Jornal Nacional despacha a apresentadora Renata Vasconcellos para a casa de telespectadores do telejornal. O que há em comum entre esses dois episódios? Além da comemoração dos 60 anos da TV Globo, como o projeto militar de monopólio da criação da primeira network brasileira beneficiou a Globo, permitindo-a controlar não só a pauta noticiosa, mas, principalmente, ter a hegemonia construção da memória afetiva do imaginário coletivo nacional. Se a Globo não mostrou, logo não aconteceu! Do arco da reapresentação de matérias jornalísticas antigas à reunião das vilãs mais icônicas da teledramaturgia na “Festa da Firma”, a Globo quer comemorar uma suposta fusão entre a biografia dos espectadores com a pauta do noticiário e entretenimento da emissora. O que explica o porquê da Globo, de repente, ficar tão interessada na crítica à comunicação do Governo Lula: quer mantê-lo na estratégia ineficaz de comunicação centrada na propaganda e marketing.
A TV Globo comemora seus 60 anos.
Este humilde blogueiro não vai perder tempo e espaço para relembrar suas
origens com o acordo ilegal com o Grupo Time-Life, de 1962 a 1967. Também é desnecessário
dizer que Roberto Marinho foi “revolucionário de primeira hora” e sua emissora
deu apoio ao Golpe Militar de 1964, ou silenciando sobre a repressão militar,
os desaparecidos e a tortura ou apoiando ostensivamente o Milagre Econômico dos
anos 1970 que criou as bases de um sistema econômico perverso no qual progresso
promove desigualdade em larga escala até hoje.
Nem que sob o apoio da ditadura
militar, consolidou o monopólio e o controle do mercado de TV. E também que tentou
esconder a longa agonia da ditadura militar ocultando o movimento Diretas Já e
promover Collor de Mello em 1989 (que hoje joga ao mar para tentar ressuscitar
a Lava Jato) e a sua trilha musical: a música neo sertaneja, com efeitos
deletérios até hoje – virou gospel sertanejo, a trilha musical de um país que
virou um imenso fazendão com cassino.
Não. Vamos falar do presente. Das
comemorações dos 60 anos que se revelam bastante sintomáticas. Principalmente
porque a Globo, quando da comemoração dos 50 anos em 2015, tentou exorcizar os
fantasmas (e outros) citados acima.
Exorcizar através de um constrangedor
projeto, na época, de William Bonner de mostrar a “emoção” e o “lado humano”
dos profissionais que trazem as notícias para os telespectadores todas as
noites - expos brilhantes jornalistas como Caco Barcelos, Ernesto Paglia e
Sandra Passarinho a um programa com o mesmo espírito do quadro “Galeria dos
Famosos” do Domingão do Faustão: víamos na A retrospectiva Jornal Nacional –
50 Anos de Jornalismo, a insistente confrontação das imagens de época dos
jornalistas (mais jovens, mais magros e com mais cabelos), para depois cortar e
enquadrar em close o jornalista na atualidade, como que tentando arrancar algum
olhar marejado de lágrimas ou uma expressão qualquer de emoção – sobre isso, clique aqui.
A maior colaboração da Globo à
história do Jornalismo: o tique melodramático dos repórteres que buscavam muito
mais os sentimentos do entrevistado do que depoimentos objetivos da realidade
social e política lá fora. “O que você está sentindo?...”, era a pergunta
clichê feita para a vítima de uma enchente no Sul do País naquele momento, com
água até a cintura, dirigida por um repórter da Globo em uma canoa, protegido
por uma capa de chuva e o rosto consternado.
Para comemorar seus 60 anos a
Globo resolveu fugir do jornalismo para ficar no entretenimento, esporte e
telenovelas – mas como o telejornalismo é o grande produto da casa, resolveu promovê-lo
como Infotenimento.
A memória afetiva da sala de visita
Para tanto, despachou a
apresentadora do JN, Renata Vasconcellos, para diversos lares espalhadas pelo
País. Para ela parar diretamente na sala de visita, apresentando dali o
noticiário. Entre risos e muxoxos, ela fazia questão de frisar que estava sendo
bem recebida pelas famílias. Explorando uma característica marcante da cultura
popular, por mais simples que seja a casa: se desdobrar para receber a visita
da melhor maneira possível – principalmente quando é a celebridade que
supostamente a família assiste todas as noites.
Supostamente... não sabemos o quão
pode ter sido combinada anteriormente a “visita”. Tão encenada quanto a UTI de
Bolsonaro (com Lives e sanfoneiros) no hospital DF Star.
A ideia era mostrar a sintonia
entre a Globo e o efetivo interesse de seu público, a “sintonia de décadas com
os brasileiros”. Entrevistar a própria família, com o indefectível clichê de
telenovelas: a mesa pronta, comida na mesa, mas ninguém come. Ou em termos
cognitivos, mostrar como, ao invés de informar, o telejornalismo global cria memórias
afetivas.
Uma família chega a dizer que tem “uma
TV em cada cômodo”. “E quem decide o canal?”, pergunta a jornalista. “Eu! Sou
aposentado, então tenho que estar sempre bem-informado”, diz o patriarca,
orgulhoso de assistir ao jornalismo global.
Também o telejornal local segue
essa pauta. No Bom Dia SP, também a apresentadora Sabina Simonato foi
deslocada do estúdio. Mas não para alguma residência. Em cada edição visita a
verdadeira instituição paulistana: a padaria, para a cada cinco minutos soltar
um “ai, que delícia!” ao ver o café da manhã do balcão ou exortar qualquer
situação divertida com alguém.
O mote é o mesmo: prospectar a
memória afetiva dos espectadores – reportagens icônicas que marcaram a memória
afetiva do entrevistado.
Nas últimas edições, o Bom Dia
SP faz uma retrospectiva do telejornal, fazendo entender que a história do
programa noticioso coincide com a história da própria cidade – reapresentando matérias
antigas sobre bairros de São Paulo que seriam mais do que jornalismo. Alcançariam
o status de documentos primários para futuros historiadores. Criando um curioso
efeito tautológico: A História cria notícias para a Globo transmiti-las com
exclusividade. Praticamente, o Muro de Berlin só caiu para que o
correspondente Pedro Bial estivesse lá, ao vivo.
Curioso é que enquanto o jornalismo
ia atrás dos espectadores em casas e padarias, o Entretenimento da emissora fez
o contrário. Na festa nesta segunda-feira, 28, na Farmasi Arena, zona oeste do
Rio, decidiu contar a história dos 60 anos da teledramaturgia, entretenimento e
esporte em duas horas.
Porém, não para os espectadores. Esses ficaram em casa para ver na tela uma autêntica “Festa da Firma”: na plateia, o cast de jornalistas, atores e atrizes, apresentadores do passado e presente e celebridades da casa. Para construir a impressão de que todos passaram os 60 anos se divertindo e fazendo novos amigos. Típica festa corporativa de fim de ano em que a empresa se confraterniza a portas fechadas.
Mas não na Globo. Ela deve, mais
uma vez, reforçar o mote da memória afetiva. Como, por exemplo, colocar as
vilãs mais icônicas das telenovelas como Nazaré Tedesco (Renata Sorrah), Raquel
(Glória Pires), Branca (Susana Vieira) e Carminha (Adriana Esteves), entre
outras, numa mini trama. Como quisessem sabotar a festa.
Muito nomes foram esquecidos na “Festa
da Firma”, como históricos diretores que ajudaram a criar o padrão Globo de
teledramaturgia como Daniel Filho e Dennis Carvalho. Certamente porque o estilo naturalista de
representação (que diferenciou a emissora do resto do continente até os anos
1990) desapareceu para retroceder ao melodrama histriônico de plataforma de streaming.
Para quê resgatar Regina Duarte?
Mas o grande mistério mesmo é a gradual
resgate de Regina Duarte. Ela estava afastada da emissora desde que se envolveu
com a política bolsonarista de 2018, com um cargo de Secretária de Cultura.
Tudo tão constrangedor quanto foi a entrevista com Pedro Bial, o primeiro passo
para o resgate.
Participou da Festa da Firma
através de uma coreografia gravada em clipe exibido por longos minutos no
telão, resgatando a novela Véu de Noiva, de 1969 escrita por Janete Clair. Poucos,
aplausos, tímidos e constrangidos na plateia.
Suspeito que faz parte de uma
estratégica mais ampla, que está dirigindo essas comemorações dos 60 anos: o
resgate da memória afetiva coletiva da Nação.
O monopólio televisivo da Rede
Globo foi implementado pelo projeto político do regime militar com o projeto da
primeira network brasileira para criar uma grade nacional de programação da
Globo que se enraizou no dia a dia do brasileiro. Criando a fidelização pela
inércia.
Por exemplo, a entrada tardia do
controle remoto no mercado nacional (com potencial para ameaçar o monopólio da
audiência), encarecia o custo dos televisores. Além de, propositalmente, a TV
Globo não veiculava anúncios de TVs com controle remoto ou, pelo menos, omitia
a presença desses dispositivos nos novos aparelhos.
Além disso quando a TV por
assinatura entrou no País (que poderia incentivar o efeito zapping com a
multiplicação do número de canais disponíveis), a Rede Globo praticamente
“sentou” no mercado para evitar sua expansão. Era necessário garantir a
concentração das verbas publicitárias na TV aberta, que ainda podia contar com
fidelidade psíquica do espectador à grade tradicional de programação.
Nas comemorações dos 60 anos, a
Globo enalteceu o efeito cognitivo desse projeto militar monopolista da
ditadura militar: a formação de uma memória afetiva no imaginário coletivo.
Tanto o telejornalismo (a
aproximação das notícias icônicas com a biografia de telespectadores) quanto o
entretenimento (a lembrança dos momentos afetivos dos telespectadores com
personagens do Xou da Xuxa às vilãs mais famosas das telenovelas).
E a bolsonarista Regina Duarte
conta com um grande ativo nesse imaginário, desde os tempos em que era a “namoradinha
do Brasil” nos anos 60-70 ao emblemático personagem da vilã engraçada Viúva
Porcina nos anos 80. Terminando com a suavidade das “Helenas” das novelas de
Manoel Carlos como História de Amor (1995), Por Amor (1997) e Páginas
da Vida (2006).
Por isso, para colocar em ação
esse projeto para reativar esse imaginário coletivo, era necessário resgatar a
atriz.
Na verdade, o que a Globo quer
comemorar é o controle da pauta noticiosa: como ela agendou em todos esses anos
não só os afetos, mas principalmente a agenda política com a pauta de
ocultamentos, cortinas de fumaça, denúncias, escândalos seletivos etc.
Isso, na verdade, é o que a Globo
arrogantemente quer comemorar: como o projeto militar de monopólio da criação da
primeira network brasileira beneficiou a Globo, criando em consequência o
controle político da pauta noticiosa: se a Globo não mostrou, logo não aconteceu!
O que explica o porquê de os “colonistas”
do grupo Globo estarem tão interessados na crítica à comunicação do Governo
Lula. Para ela, interessa que o Governo continue dando murro em ponta de faca:
investindo no marketing e propaganda, estratégia ineficaz se a grande mídia, em
particular a Globo, detém o controle monopolista da pauta e da agenda
informativa e política.
Ao invés de confrontar esse controle dentro de uma estratégia de comunicação não apenas de propaganda de acontecimentos, mas de criação de acontecimentos, ao contrário, os marqueteiros cultivam o autoengano de acreditar que, se fizerem uma propaganda profissional, tecnicamente perfeita, a grande mídia vai mostrar...