Era o ano de 1984, um ano depois desse humilde blogueiro ter se formado em Jornalismo na Unisantos. O professor Ciro Marcondes Filho (CMF) tinha sido o orientador do meu Trabalho de Conclusão de Curso – um estudo semiológico barthesiano das manchetes do jornalismo político e econômico como ferramenta para evidenciar a existência do “discurso de poder” por trás da aparente neutralidade das primeiras páginas.
Ciro queria apresentar o meu TCC para o sociólogo Maurício Tragtenberg para, quem sabe, ser publicada pela editora Kairós. Tragtenberg fazia parte do conselho editorial e naquele momento a Kairós preparava o livro “Imprensa e Capitalismo” de CMF. O encontro foi marcado na própria editora para que ele desse uma olhada no meu TCC.
E lá fui eu para a rodoviária de Santos com meu TCC debaixo do braço, para descer na Via Anchieta e caminhar até a Faculdade Metodista de São Bernardo. Lá encontrei CMF (ele era professor da pós na instituição) e juntos rumamos para a editora Kairós, que se localizava, se não me falha a memória, na Avenida Paulista.
Ciro e eu saímos da Metodista, pegamos um ônibus e rumamos para o encontro com o sociólogo Tragtenberg. Ônibus cheio, eu e Ciro em pé. De repente, ele me fez uma pergunta: “você tem certeza que quer dar aulas e ser pesquisador?”. Gaguejei um pouco, surpreso pela pergunta. Depois de alguns longos segundos me recuperei: “Claro... mas por que a pergunta?”. “Por que você vai precisar ter estômago...!”, respondeu com um sorriso sarcástico.
Com um inseparável cigarro dependurado no canto da boca, Tragtenberg deu uma olhada no meu TCC. Achou até interessante e pertinente, mas acabou não acontecendo a publicação. Esse episódio mostra a generosidade que marcou CMF em toda a sua carreira: mais do que professor e pesquisador, era um educador que dava espaço e incentivo aos seus orientados para proporcionar condições ao surgimento do novo. Ou o chamado “acontecimento comunicacional”, como Ciro demonstrava através da sua Nova Filosofia da Comunicação – o acontecimento deveria ser a meta a ser seguida tanto pela comunicação social quanto pela comunicação interpessoal.
Mas também, a certeza de que o seu grande projeto que desenvolveria obsessivamente nas décadas seguintes (a crítica ontológica e metodológica do campo da Comunicação) somente produziria resistências no meio acadêmico, para si e para seus orientandos e seguidores.
Perdemos nesse domingo (8), o pensador, pesquisador e educador Ciro Marcondes Filho, um verdadeiro “escavador de silêncios” (como era o título de um dos seus livros – “O Escavador de Silêncios: Formas de Construir e Desconstruir Sentidos na Comunicação”, de 2004): um pesquisador que tinha a comunicação como uma obsessão.
CMF era graduado em Ciências Sociais e em Jornalismo, com mestrado em Ciência Política pela USP e doutorado em Sociologia da Comunicação pela Universidade Goethe de Frankfurt. Foi professor por 31 anos no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP
Fazia um trabalho silencioso e sistemático de escavação que resultou numa profusa produção acadêmica (mais de 300 textos entre livros, produções técnicas e artigos em coletâneas) cujo salto qualitativo ocorreu nesse século, com a sistematização da Nova Filosofia/Teoria da Comunicação.
Um pensamento tão original que naturalmente bateria de frente com um campo de pesquisa comunicacional marcado por teorias elitistas, pesquisadores especializados na vigilância de conceitos e repetidores de autores, teses e dissertações. Cuja principal característica são longas páginas onde as notas de rodapé são maiores do que o próprio corpo do texto. Tamanha a falta de originalidade baseada unicamente em recorrentes citações.
Ciro costumava dizer que a Semiótica, linguística, os funcionalistas norte-americanos ou os cultural studies britânicos (teorias há muito hegemônicas nas pesquisas brasileiras) parecem dar voltas em si mesmas, sem nunca conseguir chegar ao centro do círculo, ao verdadeiro objeto da comunicação: o fenômeno comunicacional do acontecimento – são teorias que sempre se limitaram a estudar comunicação a posteriori: como sociologia da comunicação, psicologia da comunicação, discurso da comunicação etc. Confundem informação ou sinalização com comunicação. Nunca estudaram a comunicação em si: o acontecimento, o momento, o aqui e agora, a comunicação no momento em que ela se realiza.
Isso exigiria a fixação do “ponto zero” da história da comunicação: a descoberta do seu objeto, da ontologia dos fenômenos comunicacionais. Porém, também exigiria uma revolução epistemológica: a construção do “quase-método”, o “metáporos”: um método que abriria o pesquisador à complexidade, ao sensível e aos “incorpóreos” – tal como na complexidade quântica, o pesquisador também está inserido no próprio “acontecimento” (daí a ideia de “poros” da comunicação).
Uma “Razão Durante”, uma intelectualização do fenômeno em seu processo, movimento. Por isso, fazendo o pesquisador abrir-se (intelectual e emocionalmente) ao novo, ao acontecimento.
Por isso, o pensamento de CMF era inclassificável e rótulos nunca eram bem-vindos: sua complexidade transdisciplinar começava na Filosofia antiga, resgatando a velha noção de “logos”, na confluência entre Heráclito e Aristóteles – a compreensão dos fenômenos pela sua dinâmica contínua, passando pelo pensamento complexo e esquizo de Deleuze e Guattari, para chegar ao dilema de Dietmar Kamper: as ciências humanas sempre viveram o dilema de explicar processos que em sua natureza são incontroláveis e autônomos.
Ciro não queria fazer uma “pesquisa administrativa” (Adorno), mas libertária.
Para tanto, ele conduzia seus orientandos e alunos que invariavelmente lotavam as salas de seus cursos, desde o início dos anos 1980 (quando retornou do seu doutorado em Frankfurt), através da sua silenciosa e obsessiva escavação na busca do objeto perdido da comunicação: começou escavando a ciência política e psicanálise, estudando o fenômeno da violência e terrorismo. Tentava procurar a ideologia política não como efeito da propaganda ou massificação midiática, mas como fenômeno cotidiano resultado nas relações interpessoais: Freud, Lacan, Lorenzer e os devires esquizos de Capitalismo e Esquizofrenia de Deleuze e Guattari.
Nos anos 1990, Ciro descobre que essa ideologia se materializou em mediações tecnológicas das relações cotidianas – foram os experimentos do coletivo NTC (Novas Tecnologias de Comunicação), com calorosos debates publicados nos cadernos chamados “Atrator Estranho”). Tempos das discussões em torno das teorias dos sistemas autopoiéticos de Maturana, Varela e Luhumann. Além do “tautismo tecnológico” de Sfez.
Para nesse século a Nova Teoria da Comunicação se concretizar com o Grupo de Pesquisas do FiloCom da ECA/USP – CMF transformou seus livros em obras de construção coletiva: nas aulas da pós sempre lotadas, Ciro projetava em data show os originais de seus textos, para serem discutidos coletivamente dentro do conteúdo das disciplinas dos créditos da pós.
Um longo processo de maturação que começou com os estoicos na Filosofia (Ciro acreditava que a Comunicação em primeiro lugar pertencia ao campo da Filosofia) para chegar à crítica contemporânea da metafísica (Nietzsche e Heidegger) e Fenomenologia de Henri Bergson, Merleau-Ponty, Husserl e Lyotard.
Até construir sua metodologia metapórica, transformando dissertações e teses de orientandos em verdadeiros campos experimentais da Nova Filosofia da Comunicação, nos campos cinematográficos, estéticos, midiáticos, jornalístico, chegando a interfaces com o campo da Educomunicação.
CMF não limitou sua crítica apenas ao campo epistemológico. Como jornalista, voltou sua metodologia ao campo jornalístico. No seu livro “Comunicação e Jornalismo: A Saga dos Cães Perdidos” descrevia como as mediações tecnológicas transformaram jornalistas em cães perdidos que perderam o faro – as tecnologias de informação reduziram jornalistas a profissionais que trabalham sentados em terminais de informação apenas manipulando (ou “cozinhando”) dados; enquanto aqueles que trabalham em pé, os investigativos que vão à campo na busca do acontecimento, estão em extinção.
Ciro não era um escavador de coisas fossilizadas como dinossauros (que, aliás, queria envenená-los, mortos redivivos que ainda andam por aí...). Queria escavar o novo cujas ferramentas de prospecção, ironicamente, se esconderiam nas camadas do passado.
Nada mais gnóstico! CMF em tudo lembrava o aforismo de Theodor Adorno: “O pensamento aguarda que, um dia, a lembrança do que foi perdido venha despertá-lo e o transforme em ensinamento”.