sexta-feira, setembro 23, 2016

Quando a morte é o único sentido para a vida em "Bridgend"


A cidade de Bridgend (no fundo de vales no sul do País de Gales) no passado sustentou o império britânico com o seu carvão, para depois ser esquecida pela História e pelo mundo. Até que, desde 2007, uma inexplicável onda de suicídios de jovens por enforcamento (79 mortes até hoje) tomou conta da região. Para a mídia, tornou-se a “cidade da morte” e seus jovens estigmatizados. O filme Bridgend (2015) do dinamarquês Jeppe RØnde baseia-se nesse caso misterioso: uma adolescente retorna para Bridgend junto com seu pai, um policial que investiga a causa da onda de suicídios. Um culto suicida na Internet? Efeito copycat motivado pelo sensacionalismo como a mídia trata o assunto? Efeito no sistema nervoso central das ondas UHF do sistema de rádio de emergência da polícia do Reino Unido? Ou um acerto de contas dos jovens contra a civilização? - quando a existência fica vazia, a morte pode se tornar o único sentido para a vida. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

“Suicídios estão se espelhando como um contagio”, disse Darren Matthews diretor da Fundação Samaritanos de uma cidadezinha ignorada pelo resto do mundo, até que uma série de suicídios em série começou a atingir jovens de 15 a 27 anos a partir de 2007. Bridgend situa-se no fundo de três vales, localizado ao sul do País de Gales, no Reino Unido.

Em Bridgend ocorreram até agora 25 suicídios. Somados com as outras cidades pertencentes ao mesmo condado, chega-se ao número de 79 jovens. Com exceção de apenas uma morte, todas foram por enforcamento. E inclusive mulheres, o que segundo especialistas é um elemento estranho: dificilmente mulheres escolhem o enforcamento como método de suicídio. Em geral preferem cortar os pulsos ou a morte por overdose por drogas ou medicamentos. O enforcamento é uma morte tipicamente masculina.

Em 2013 John Williams dirigiu o documentário Bridgend tentando expor as possíveis causas desse aparente contagio de suicídios: um culto suicida através da Internet – as mortes sugerem uma decisão coletiva; Efeito Copycat ou Síndrome Werther – efeitos de imitação motivado pelo sensacionalismo midiático; crise econômica e desemprego em uma região outrora rica devido à mineração do carvão;  influência de ondas UHF no cérebro e sistema nervoso central, principalmente através do sistema Tetra usado pelo sistema de rádio de emergência da polícia do Reino Unido.

Ou ainda a mais conspiratória das teorias: o sistema Tetra seria um subproduto do Projeto Pandora, conjunto de pesquisas sobre controle do comportamento humano à distância feitos pela CIA nos anos 1960-70 sobre isso clique aqui.


O documentarista dinamarquês Jeppe RØnde também se interessou pelos bizarros acontecimentos de Bridgend. Porém, fazer mais um documentário estava fora de cogitação: já havia todo um sensacionalismo dos tabloides em torno da cidade – já rotulada no Reino Unido como “cidade da morte”. Para RØnde isso é perigoso por criar um efeito de imitação ao criar uma aura romântica em torno dos enforcamentos. Adolescentes são mais propensos a ser influenciados por memoriais na Internet e as coberturas de notícias da TV.

Por isso RØnde optou em fazer um filme de ficção entre o drama e o terror. E mais: juntos com atores, RØnde juntou ao elenco jovens moradores não-atores de Bridgend, tornando a narrativa minimalista e realista.

Parece contraditório: uma obra de ficção que fugiu do documentário, mas que busca o realismo dentro da ficção. Mas o diretor buscou no drama local de Bridgend um tema mais universal – a civilização que foi ultrapassada pela Natureza. Um lado sombrio da psiquismo humano no qual a morte seria a única forma de dar sentido a uma vida sem sentido. Renunciar a civilização e tentar retornar à Natureza como último refúgio de uma existência sem propósito.

O Filme


Uma adolescente chamada Sara (Hannah Murray) volta para Bridgend com o seu pai Dave (Steven Waddington), um policial viúvo, depois de passar anos em Bristol. Dave quer resolver o mistério dos suicídios em série, enquanto Sara vai aos poucos sendo absorvida pelo grupo local de adolescentes agressivos e transgressores – consumo excessivo de álcool em uma vida desocupada dividido entre mergulhos em um lago gelado no meio da floresta e noitadas em um clube de rugbi.

A posição de Sara (filha de um policial) a mantém ainda distante e apenas observadora de tudo. Ninguém no grupo fala sobre os motivos dos suicídios. Os mortos são apenas celebrados pelos jovens em estranhos rituais como gritar os seus nomes para a Lua, visitar os lugares onde foram encontrados enforcados e arriscar a vida se pendurando em cordas na saída de um túnel em uma linha de trem no momento em que a locomotiva passa em alta velocidade.


Aos poucos Sara se envolve com um jovem chamado Jamie (Josh O’Connor), coroinha e filho de um sacerdote anglicano que, sem qualquer efeito, tenta de alguma forma incutir ensinamentos religiosos ao grupo de jovens agressivamente niilistas.

O envolvimento amoroso faz Sara definitivamente entrar naquele grupo de jovens, intensificando os conflitos com seu pai que tenta a todo custo tirá-la da cidade e matricula-la em um colégio interno fora do condado.

Sara aos poucos adquire o mesmo traço comum existente nos outros adolescentes: a relação de estranhamento e conflito com os adultos – os professores, a polícia, a comunidade e, talvez, com a própria civilização.

A certa altura Dave arrasta Jamie para dentro do seu carro para intimá-lo a se afastar da sua filha. A pergunta de Jamie é emblemática e, talvez, sintetize a tensão que está por trás das tragédias em série em Bridgend: “Você está falando comigo como pai ou como policial?”.

Celebração da morte e torres de celulares


O leitor perceberá ao longo do filme que Jeppe RØnde, como um bom documentarista, vai transitando pelas várias teorias que tentam explicar o estranho fenômeno.

De início, percebemos que há um bizarro ritual de celebração dos suicídios entre os jovens. Há um memorial em um site na Internet onde os iniciados recebem um senha para depositar suas homenagens a cada suicídio – graficamente no site, cada morte é como fosse um tijolo com o nome do suicida colocado em um muro em construção. Há um juramento de que ninguém poderá deixar a cidade.

Em uma linha de diálogo, os policiais falam na teoria das “torres de celulares” – referencia às teorias das ondas UHF interferirem no comportamento humano. Pelas teorias conspiratórias sobre o Projeto Pandora, as ondas usadas pelas transmissões de rádio da policia “zumbificaria” os próprios policiais, tornando-os autômatos e obedientes.


No filme, é também mostrada a animosidade dos moradores contra fotógrafos e jornalistas – a certa altura, um jovem arranca uma máquina fotográfica de um repórter que cobria o velório de mais um suicida, para despedaçá-la no asfalto.

Para os moradores de Bridgend, a mídia é uma parte importante do problema. É o que os estudiosos chamam de Efeito Copycat ou Síndrome de Wether – “Wether” é um jovem protagonista do romance de Goethe Os Sofrimentos do Jovem Wether de 1774. Há mais de 200 anos, esse livro foi proibido em alguns países europeus por supostamente ter causado uma onda de suicídios entre jovens leitores. Muitos foram encontrados mortos vestindo a mesma roupa do personagem e ao lado do corpo com a página do livro que descreve o suicídio aberta.

Para Lauren Coleman, autor do conceito “Efeito Copycat”, já está documentado estatisticamente que coberturas midiáticas sensacionalistas e extensas sobre atentados ou suicídios, estimulam novos eventos trágicos. São mortes imitativas por contagio midiático – principalmente entre adolescentes que naturalmente passam por oscilações rápidas de humor. Podem impulsivamente se matar nesse breve período – sobre isso clique aqui.

Acerto de contas com a civilização


 É recorrente em Bridgend o simbolismo do cachorro que vaga pela floresta e trilhos de ferrovias que não dão a lugar algum, abandonadas e tomadas pela vegetação. Esse simbolismo explorado por RØnde tem como pano de fundo a história de decadência sócio-econômica do condado de Bridgend.


A região foi mais uma vítima das medidas do neo-liberalismo econômico de Margareth Thatcher nos anos 1980 que trouxe a recessão econômica para a região com o fechamento das minas de carvão. Muitos trabalhadores morriam de câncer nas minas, mas pelo menos tinham um trabalho o algo do qual fazer parte. Além de manter a alta renda da região e um futuro profissional para os mais jovens.

Hoje, o que domina os vales do condado é o desemprego, subempregos nos setor de serviços e jovens vivendo de biscates.

Quando a civilização falha, a natureza começa a tomar conta. É o que parece dizer a todo momento Jeppe RØnde: a imagem recorrente de um cão que vaga pelos lugares onde jovens se mataram enforcados em árvores; os jovens que vagam sem destino por linhas de trens abandonadas tomadas pelo matagal. Linhas de trens de épocas com trabalho e perspectivas.

O pensador da chamada Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, acreditava que a história da civilização transcorria em movimento pendular entre Eros e Thanatos, vida e morte, prazer e dor.  Marcuse sustentava que o sistema econômico atual fundamentado no consumismo e na precarização do trabalho (mascarando a exploração) era thanático: estimulava o niilismo e o hedonismo sob a aparência publicitária das imagens de sucesso de celebridades e a aparência de liberdade de escolha e consumo – leia MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização, LTC, 1999.

Em uma vida sem sentido e existencialmente vazia, o lado mais sombrio do nosso psiquismo ganha força: o acerto de contas final com a civilização, retornando à Natureza por meio da morte.

Paradoxalmente, quando a existência se esvazia, a morte torna-se o único sentido para a vida. Essa é o diagnóstico de Jeppe RØnde para o mistério do condado de Bridgend.


Ficha Técnica


Título: Bridgend
Diretor: Jeppe RØnde
Roteiro:  Jeppe RØnde, Torben Bech
Elenco:  Hannah Murray, Josh O’Connor, Adrian Rawlins, Steven Waddington
Produção: Blenkov SchØnnemann Pictures
Distribuição: Kimstim Films
Ano: 2015
País: Dinamarca

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