Na manhã do sábado, dia 21, um jovem se jogou nu na jaula dos leões em um zoológico no Chile falando frases desconexas de cunho religioso sobre ser filho de Jesus e a chegada do Apocalipse. No mesmo dia, à noite, a apresentadora Ana Hickman sofre atentado de um fã armado com um revólver em um hotel de luxo em Belo Horizonte. Entre frases também desconexas, o fã agradecia a Deus por ter ajudado a encontrá-la naquele hotel, até ser morto por um dos assessores. Quais as coincidências e sincronismos entre esses dois eventos em países diferentes? São apenas fatos isolados protagonizados por “lobos solitários”? Cada sociedade em sua época cria sua própria patologia. O sincronismo desses dois episódios apontam para a patologia da nossa época da sociedade das imagens e do espetáculo: relações fetichistas com pessoas, objetos e símbolos.
Como os leitores mais assíduos devem ter percebido,
o Cinegnose se interessa bastante por recorrências, padrões e coincidências que
possivelmente possam ocultar sincronismos.
Por isso, no sábado, dia 21 de maio, dois eventos
simultâneos em países diferentes chamaram a atenção deste blog. Sendo que o
segundo, chegou a disputar espaço na grande mídia com a divulgação do escândalo
da gravação de conversas telefônicas do senador Romero Jucá.
No Chile, um jovem chamado Franco Ferrada,
supostamente com intenções suicidas, tirou suas roupas e pulou para dentro da
jaula dos leões no Zoológico Metropolitano da cidade de Santiago. Falando
frases desconexas, todas com motivos religiosos, se agarrou a um leão e passou
a ser atacado pelos outros. Os leões foram sacrificados e o “suicida” levado ao
hospital em estado grave.
Enquanto isso, em Belo Horizonte, a apresentadora
da TV Record Ana Hickman sofria um atentado em um hotel de luxo onde estava
hospedada. Rodrigo Augusto de Pádua, 30 anos, rendeu o cunhado da apresentadora
e invadiu o quarto dela. Este reagiu e entrou em luta corporal com o homem
armado, desarmando-o e matando-o. A assessora de Hickman foi também atingida
com dois tiros. Em seus perfis no Instagram e Facebook, Pádua demonstrava
obsessão pela apresentadora fazendo dedicatórias de amor e mandando mensagens
para ela. Inclusive uma foto do seu pênis.
De um lado um suposto suicida chileno vivendo um
delírio místico e messiânico (nas roupas foi encontrada uma carta dizendo ser
um profeta, filho de Jesus Cristo e que o apocalipse havia chegado – a alusão
ao relato bíblico de Daniel na cova dos leões é imediato); e do outro um
stalker de celebridade com uma obsessão amorosa e que em sua cabeça achava
estar vivendo um relacionamento com a apresentadora.
Semelhanças significativas
Além da coincidência dos episódios terem ocorrido
no mesmo dia 21, há outras semelhanças significativas entre os bizarros eventos
chileno e brasileiro:
(a) ambos os protagonistas estavam sob fascinação
por um objeto de fetiche (do português feitiço,
apropriado pela palavra francesa fétichisme,
adoração ou culto de fetiches), seja religioso ou por uma celebridade;
(b) ambos foram levados pelo impulso de demonstrar
publicamente seus sentimentos e obsessões;
(c) Os seus objetos de fascínio ou desejo eram
externos a eles – Jesus e Ana Hickman;
(d) os protagonistas expressavam sintomas de desajustamento
familiar e sociopatia: Franco Ferrada teve a mãe morta por câncer, dois irmão
presos e foi interno do Servicio Nacional de Menores de Chile; Augusto de Pádua
era desempregado e aos 30 anos era apegado à mãe e não saia de casa, a não ser
para ir à academia de musculação – sua mãe afirmava que ele “lutava 24 horas
contra um inimigo terrível”.
O que chama a atenção no sincronismo desses
episódios é que não são meros eventos aleatórios ou fait divers – “fatos
diversos” ou curiosidades bizarras, como se fala em jornalismo. Mas são
verdadeiros sintomas de um tipo de patologia social cotidiana que se vulgarizou
a ponto de se tornar um evento aleatório promovido por espécies de “lobos solitários”
– atiradores, serial killers etc.
Freud e a neurose: cada sociedade cria sua própria patologia |
Da neurose à psicose e fetichismo
Cada sociedade cria suas próprias patologias
psíquicas: a era vitoriana de Freud produziu a neurose decorrente da repressão
sexual de uma rígida ordem patriarcal; e a atual cultura sociedade das imagens
e do espetáculo produz esquizofrenia e transtornos psicóticos na desordem da
chamada família nuclear – ausência paterna física ou simbólica e ego vulnerável
às pressões do meio social.
Tanto o chileno quanto o brasileiro viviam a
compulsão em demonstrar publicamente sentimentos e obsessões, seja tirando a
roupa diante de todos em um zoológico para viver uma fantasia religiosa, seja
tirando as vestes psíquicas em perfis nas redes sociais para viver uma fantasia de ter um íntimo e
conturbado relacionamento com uma celebridade.
Pesquisadores como Richard Sennett chamam essa
marca contemporânea de “ascetismo social” – ao contrário do monge que
demonstrava sua fé a Deus na privacidade da sua cela sem pensar na sua
aparência diante dos outros, hoje temos a necessidade de demonstrar a Deus ou
aos outros os nossos sentimentos para demonstrar que se tem um eu que vale a
pena – leia SENNETT, Richard. O Declínio
do Homem Público.
Narcisismo em tempos difíceis
Esse “narcisismo de tempos difíceis” seria o drive
psíquico das relações de fascínio fetichista por religiões e celebridades – no
final tanto um como o outro possuem o mesmo mecanismo da regressão fetichista:
adoração de objetos, pessoas ou símbolos tomados como encarnações de poderes
mágicos, sobrenaturais ou ligados a entidades espirituais.
Mecanismo de inversão onde o homem, criador do
objeto, é dominado por uma espécie de feitiço ou fascínio. Franco Ferrada quer
reencenar diante de todos algum drama bíblico e se acha filho de Jesus – a
celebridade religiosa com a qual quer ter uma relação pessoal para ter de volta
aquilo que ele transferiu para o objeto fetiche – seus sentimentos, desejos e
aspirações.
Seu messianismo e a fantasia de ter uma relação
íntima com Jesus esconde a sua impotência social, o fato de ser mais um zé
ninguém e um desajustado – outro anônimo dentro de uma crescente estatística:
17,2% de chilenos que sofrem de depressão segundo a Organização Mundial de
Saúde.
Enquanto isso, Rodrigo de Pádua vivia a relação de
amor e ódio com uma celebridade-fetiche tão bem descritas por sociólogos clássicos
como Theodor Adorno ou David Riesman – a celebridade confundida com afeição, e
a fama com o amor.
Somos todos mal amados
Se Adorno dizia que no fundo, na sociedade atual,
todos nós nos sentimos mal amados ou Riesman afirmava que a multidão produzia a
solidão, a celebridade passa a ser o objeto fetiche mais estimado: a
celebridade será aquela pessoa supostamente especial porque amada por todos
cuja fama atrai carinho e afeição – sobre isso leia ADORNO, Theodor. “Educação
Após Auschwitz In: Adorno. São Paulo:
Ática e RIESMAN, David. A Multidão
Solitária, Perspectiva, 1995.
Por isso, a relação com esse particular
objeto-fetiche será marcada pela ambiguidade amor-frustração-ódio. O amor se
transformará logo em frustração (afinal, o fã sabe que é apenas mais um anônimo
em um multidão de fãs) e, depois, ódio por no fundo saber que jamais terá de
volta o amor e afeto transferido para o objeto-fetiche.
Assim como o “suicida” chileno queria ter uma
relação pessoal com Jesus, Augusto de Pádua vivia uma fantasia de possessão
erótica do corpo da celebridade Ana Hickmann – o desejo desesperado de possuir
a carne da celebridade para “devorar” a fama que a faça fugir da sua vida
frustrada.
Franco Ferrada queria ser comido pelos leões,
enquanto Augusto de Pádua queria “comer” (ou possuir) a “celebridade” – amor e
afeto. Relações autofágica e antropofágica. Relações análogas e em sentidos
inversos. Duas formas diferentes mas com o mesmo propósito: de alguma forma ter
para si o objeto-fetiche, seja Jesus ou Ana Hickmann.
O Verbo se fez carne
Portanto, há uma linha de continuidade entre a
civilização das imagens atuais e o mistério da Encarnação de Cristo do
catolicismo: “E o Verbo se fez carne”, versículo do Evangelho Segundo João, é a
própria essência religiosa na relação fetichista atual com pessoas, marcas e objetos
na sociedade de consumo.
O filme canadense Antiviral (2012) é talvez o que melhor trata essa relação extrema
dos fãs com as celebridades - em um futuro próximo as relações serão tão
obsessivas que todos gostarão de entrar em uma “comunhão biológica” comprando
vírus e enfermidades exclusivas dos famosos e comendo carne processada com
células dos seus ídolos – sobre o filme clique aqui.
Essa talvez seja a principal patologia decorrente da
combinação atual da sociedade de consumo com a cultura da imagem e do
espetáculo: tornamo-nos vazios. Os objetos-fetiches parecem roubar de nós as
nossas melhores qualidades e achamos que só poderemos tê-las de volta comprando
e idolatrando. Ou através do assassinato do próprio ídolo (John Lennon que o
diga) ou do suicídio diante dele.
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