terça-feira, setembro 01, 2015
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Ideia central
presente em diversos sistemas filosóficos e religiosos, a reencarnação muitas vezes
é concebida como oportunidade de aprendizado, jornada de evolução espiritual ou
simplesmente a oportunidade de uma segunda chance. Ao contrário, o filme de estreia
do diretor ingles Christopher Butler, “The Scopia Effect” (2014), apresenta uma
visão bem diferente: uma regressão hipnótica faz uma jovem ter acesso a partes
do cérebro que contém detalhes de suas vidas passadas. E o resultado é a
descoberta, da pior maneira possível, do porquê esquecemos nossas vidas
anteriores. Aproximando-se de uma concepção gnóstica sobre a reencarnação e
inspirado em animes japoneses, “The Scopia Effect” mostra não só como esquecemos os fantasmas não resolvidos de outras vidas, como também o esquecimento nos condena a revive-los em um eterno retorno.
Era uma vez duas lagartas que viviam na árvore mais alta da mais alta
montanha. Tinham uma boa vida com todas as folhas verdes que pudessem comer.
Então, chegou um dia em que elas se transformariam em borboleta. Enquanto
entravam nos seus casulos, fizeram uma promessa: uma esperaria pela outra
converter-se em borboleta para poderem voar juntas.
Porém, enquanto sonhavam em seu casulos veio uma forte tempestade que
destruiu a floresta e atirou os casulos para longe, um distante do outro. A
tempestade parou, saíram de seus casulos como borboletas deslumbrantes, mas se
viram sozinhas e ficaram tristes. Sentiam muita falta uma da outra. Saíram à procura do seu amigo perdido. Mas, como se reconheceriam se tinham mudado suas formas?
E continuaram em uma procura que nunca mais terminou.
Essa antiga fábula
do folclore japonês que é contada em uma das linhas de diálogo do filme The Scopia Effect é a chave de compreensão
para o espectador juntar o quebra cabeças proposto pelo diretor Christopher
Butler – o próprio diretor fala que assistir ao filme é como “montar um quebra
cabeças em um terremoto”.
Em sua estreia na
direção de um filme longa metragem, o diretor (egresso do mercado de filmes
publicitários) consegue fazer uma instigante fábula sobre a reencarnação
partindo dessa alegoria japonesa sobre lagartas e borboletas.
The Scopia Effect vai muito mais além do que um filme
sobre os perigos de se brincar de Deus como em filmes recentes que seguem a
linha Dr. Frankenstein como Ex-Machina
ou Transcendence. Butler mergulha
fundo no cerne gnóstico dessa pequena fábula japonesa – morremos e quando
retornamos somos condenados ao esquecimento, separando-nos uns dos outros, para
recomeçar do zero uma busca do que foi perdido. Uma busca que jamais termina.
Estamos condenados ao eterno retorno.
Esquecemos as
vidas passadas. Porém, mesmo esquecidas nossas opções e traumas de existências
passadas continuam nos determinando. Somos prisioneiros da morte, da reencarnação
e do esquecimento.
O Filme
O filme acompanha
a vida de uma jovem polonesa chamada Basia que vive e trabalha em Londres. Sua
mãe morreu quando ainda era criança e ela ainda tenta lidar com esse trauma, que
começa a se manifestar por crises depressivas e bipolaridade. Basia inicia
sessões de hipnose e regressões como uma maneira de desenterrar problemas
esquecidos da infância.
Mas algo começa a
dar errado: ela não apenas começa a desenterrar traumas infantis, mas vai cada
vez mais longe, mais para trás e regride para as suas vidas passadas. O
problema é que suas outras personas, assim como seus inimigos do passado,
começam a infectar o presente de uma forma cada vez mais assustadora: Basia
torna-se assombrada por pessoas de suas vidas anteriores e começa a reviver os
traumas e as mortes das suas outras encarnações.
O que era um
tratamento psicológico acaba se tornando uma luta pela sobrevivência e manutenção
da sanidade mental – ela deverá lutar para diferenciar o que é real ou delírio.
Basia é incapaz de
defender-se de suas assombrações que surgem de diversas camadas narrativas das
vidas passadas que se interconectam de diferentes séculos e países: Inglaterra,
França, Japão, África, Ásia... O espectador é desafiado a organizar essas
diversas existências e lugares em uma montagem e edição habilmente concebidas
pelo diretor Christoper Butler.
Através da
hipnose, Basia inadvertidamente conseguiu acessar uma parte da sua mente que
mantem detalhes das vidas passadas e ao fazê-lo desencadeou algo que não pode
ser controlado ou explicado.
Reencarnação, esquecimento e alienação
Ao acompanhar e
tentar organizar os sucessivas narrativas de épocas e lugares diferentes, o
espectador lembrará da série Netflix Sense8
dos Wachowski pela simultaneidade das conexões. Assim como em Sense8, The Scopia Effect partilha de uma mesma visão gnóstica da condição
humana: o homem encontra-se prisioneiro nesse cosmos graças a condições que o
condenam ao isolamento e alienação.
Se em Sense8 o processo de iluminação
espiritual vem da progressiva consciência de que todos os sensates estão conectados mentalmente apesar das distâncias, em The Scopia Effect a gnose de Basia vem da
descoberta de que todas as existências em outras vidas estão conectadas,
simultaneamente atuantes e influenciando o presente.
Basia vive um
estado de alienação por causa da morte e do esquecimento que as reencarnações
criam em todos nós. As situações traumáticas e separações se sucedem através do
tempo. A cada morte e reencarnação, começa-se sempre do zero para os mesmos
erros serem repetidos posteriormente e repercutidos através das sucessivas
vidas futuras.
Tal como as
lagartas que viram borboletas da pequena fábula japonesa, a tempestade (a
morte) nos afasta uns dos outros, isolando-nos, para que o estado de alienação
se perpetue através da eternidade.
Por isso, a
princípio The Scopia Effect nos apresenta
uma visão desesperançada da morte e da reencarnação, apesar da sequência final
redentora.
Ao contrário das
visões kardecistas que veem nas sucessivas reencarnações o palco de aprendizado
e evolução ou a lei do Carma que promete garantir justiça e oportunidade de uma
segunda chance, o ponto de vista gnóstico mostrado por The Scopia Effect mostra que a reencarnação não opera por soma, mas por
subtração – esquecido o passado e isolados uns dos outros (sejam inimigos ou almas
gêmeas), somos condenados à repetição o que nos mantém prisioneiros a esse cosmos
sem possibilidade de transcendência.
O Inferno é a repetição
Em várias
passagens do filme, Basia é exortada a acordar – “Acorde!”, a famosa exortação
gnóstica que parte do princípio de que todos nós estamos em estado de sono e
esquecimento.
Em um de seus
livros Sthepen King disse que o Inferno é a repetição. Pois é esse, em síntese,
o inferno pessoal que a regressão hipnótica revelou para Basia – revelou a
própria condição espiritual humana, sempre condenada pela “tempestade na
floresta” a esquecer e repetir os mesmos erros.
Essas conexões
entre Gnosticismo e cultura oriental ficam ainda mais evidentes com a
declaração do próprio diretor em entrevistas de que uma das inspirações para The Scopia Effect foram as animes japonesas,
especificamente Evangelion de Hideki
Anno, considerado pelos pesquisadores uma verdadeira bíblia gnóstica
pós-moderna – sobre isso clique aqui.
Mas apesar desse
núcleo gnóstico sombrio e trágico, The Scopia
Effect cria uma atmosfera mágica de contos de fada, principalmente pela pontuação
da narrativa por meio de uma trilha musical serena. A decisão do diretor em
contrastar o interior psíquico sombrio de Basia com o exterior em cores pastéis e fotografia estourada com muita contraluz impede de o filme ser excessivamente deprimente.
Além disso,
Christopher Butler foi hábil em criar uma protagonista simpática e humana.
Basia é uma garota normal que trabalha, vai a aulas de danças e sai com amigas.
Mas, ao mesmo tempo, o horror é capaz de irromper em qualquer uma das situações
de normalidade – o passado esquecido parece ainda nos atormentar como um
pesadelo na cabeça de nós, os vivos.
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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