O curta australiano de
animação premiado com o Oscar “Leisure” (1976) e o filme italiano “A Classe
Operária Vai ao Paraíso” (1971) foram repercussões audiovisuais das discussões
da chamada “New Left” (Nova esquerda) nos anos 1960-70 quando, diante do enfraquecimento do movimento operário no capitalismo avançado, sentiu a necessidade de
politizar o “lazer” como a resultante da dominação do tempo livre pela
indústria do entretenimento. Ambos os filmes exploram a situação paradoxal onde
trabalho e lazer ao mesmo tempo se opõem e tornam-se semelhantes.
Muito tempo antes de se falar em “ócio criativo” e as
conexões entre lazer e ócio na sociedade pós-industrial, um curta de animação
era premiado em 1976 antecipando essas discussões. É o curta
chamado “Leisure” do animador e cartunista político australiano Bruce Petty,
premiado com Oscar de melhor curta de animação. Depois o filme ganhou vários
prêmios em festivais internacionais de cinema.
O estilo de animação lembra muito a dos filmes do grupo
inglês de humor Monty Python. O filme traça a trajetória do lazer ou tempo
livre desde a pré-história, mais precisamente a partir do momento em que o
aprimoramento do pensamento racional resultou em uma divisão nas sociedades
humanas entre dois grupos: os que ficam sentados sonhando e resolvendo problemas
e os que ficam em pé trabalhando. Elite e trabalhadores. Esses que ficam
sentados começam a produzir arte e cultura para consumo próprio: surge o
“lazer”.
Com o Iluminismo e a formulação dos direitos e a igualdade
humana, esses trabalhadores são levados para dentro do universo do lazer por
meio da industrialização do entretenimento. Com a popularização da eletricidade
desenvolve-se a indústria de massa de entretenimento nos grandes centros
urbanos o que trará um resultado paradoxal: lazer e trabalho serão
experimentados simultaneamente como opostos e semelhantes – o primeiro mais
prazeroso do que o segundo e as formas de lazer e do próprio estilo de vida nos
centros urbanos serão tão passivos e sem imaginação quanto o trabalho
rotinizado.
"A Classe Operária Vai ao Paraíso": a irracionalidadedo do trabalho e do lazer |
Sente-se na abordagem ao mesmo tempo criativa e divertida do curta “Leisure” a repercussão das
discussões da chamada “New Left” (Nova Esquerda”) nos anos 1960-70 em que se
procurava politizar as formas de entretenimento dentro do capitalismo,
convertidas em uma indústria da consciência e das fantasias.
Com o enfraquecimento dos movimentos operários e sindicais, era necessário discutir as novas formas de alienação trazidas pela indústria das consciências. Filmes como o de Elio Petri “A Classe Operária Vai ao Paraíso” (1971) queriam na época colocar em questão o conformismo e apatia política trazidas pela sociedade de consumo: o protagonista Lulu (Gian Maria Volonté), um operário com alta produtividade e alheio ao sindicalismo, vê nos objetos de consumo um prêmio para sua dedicação aos patrões. Até sofrer um acidente no trabalho e passar a questionar a utilidade de tudo aquilo que fazia (peças na indústria e objetos no consumo).
Com o enfraquecimento dos movimentos operários e sindicais, era necessário discutir as novas formas de alienação trazidas pela indústria das consciências. Filmes como o de Elio Petri “A Classe Operária Vai ao Paraíso” (1971) queriam na época colocar em questão o conformismo e apatia política trazidas pela sociedade de consumo: o protagonista Lulu (Gian Maria Volonté), um operário com alta produtividade e alheio ao sindicalismo, vê nos objetos de consumo um prêmio para sua dedicação aos patrões. Até sofrer um acidente no trabalho e passar a questionar a utilidade de tudo aquilo que fazia (peças na indústria e objetos no consumo).
Mas vamos explorar o paradoxo apresentado no curta “Leisure”
– Lazer e trabalho tornam-se simultaneamente opostos e semelhantes.
“Tempo livre” e “tempo preso”
Certa vez perguntaram para o filósofo alemão Theodor Adorno
se ele tinha um “hobbie” e o que fazia no seu “tempo livre”. No seu costumeiro
estilo de ironia ácida respondeu que para ele o “tempo livre” não existia para
as pessoas realmente livres, pois não teria “tempo preso” já que o seu trabalho
na pesquisa e docência eram prazerosos. E a cobrança das pessoas possuírem um
“hobbie” já era um sintoma do mesmo princípio do desprazeroso mundo do trabalho
projetado no “tempo livre”: uma “liberdade obrigatória”, a necessidade de ter
que ocupar o seu tempo de forma produtiva com alguma atividade imposta e organizada
pelo mercado e indústria cultural. (Veja ADORNO, Theodor. “Tiempo Libre” In:
Consignas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1973).
Para Adorno, a transformação do tempo livre
dentro da Indústria Cultural tem um duplo aspecto: a transformação do tempo
livre em mercadoria e a submissão do tempo ocioso do lazer ao princípio do
desempenho que fundamenta a esfera do trabalho (eficácia, eficiência,
produtividade, correr contra o tempo, etc.).
Peguemos o exemplo da praia. Submetida à
liberdade organizada, a praia deixa de ser um lugar de fruição espontânea do
tempo para ser submetida ao fetichismo da mercadoria. Como observou Adorno em
uma oportunidade, o bronzeado do corpo de torna um fetiche, um fim em si mesmo.
Não basta ir apenas à praia, é necessário adquirir um bronzeado ótimo, uma
performance ideal para que o bronzeado
seja o testemunho de que suas férias foram excelentes. Se você voltar ao
trabalho sem a cor obrigatória pode ficar seguro que algum colega fará uma
pergunta mordaz: “Mas o quê você fez nas suas férias?”. Isso sem falar dos controles sociais
complementares: indústria de cosméticos, tratamentos estéticos, consultas
dermatológicas, etc. O corpo que deveria proporcionar prazer é atrelado a uma
disciplina que implica em gastos financeiros e atrelamento do indivíduo ao
sistema econômico que gostaria de escapar. Dessa maneira, conclui Adorno, o
entretenimento perde a autonomia para tornar-se a extensão da lógica
disciplinar do trabalho.
As origens do tempo livre e do lazer
Com o avanço do sindicalismo, as revoluções
tecnológicas na virada dos séculos XIX para o XX e o crescimento da
produtividade na sociedade industrial, a jornada de trabalho é reduzida
drasticamente, chegando à chamada “jornada inglesa” (oito horas diárias de
trabalho). É o aparecimento do tempo livre para as pessoas. Mas isso trouxe um
inesperado problema para a disciplina industrial: chefes e patrões perceberam
que os empregados se tornavam cada vez mais arredios, indisciplinados e
contestadores. Após o tempo livre, os trabalhadores voltavam renovados: a
conquista de um tempo totalmente fora da rotina mecânica da disciplina do
trabalho, das ordens do chefe e do relógio-ponto, mostrou que havia um outro
mundo, onde a pessoa podia ser autônoma e dispor livremente do próprio tempo.
Não era à toa que os empregados voltassem cada vez mais arredios ao mundo do
trabalho. O crescimento do tempo livre demonstrava um potencial politicamente
subversivo ao sistema.
Cena de "Leisure" |
“A partir do dia de trabalho, a alienação e a arregimentação se alastram para o tempo livre. O controle básico do tempo de ócio é realizado pela própria duração do tempo de trabalho, pela rotina fatigante e mecânica do trabalho alienado, o que requer que o lazer seja um relaxamento passivo e uma recuperação de energias para o trabalho. Só quando se atingiu o mais recente estágio da civilização industrial, quando o crescimento da produtividade ameaça superar os limites fixados pela dominação repressiva, a técnica de manipulação das massas criou então uma indústria de entretenimentos, a qual controle diretamente o tempo de lazer, ou o Estado chamou a si diretamente a execução de tal controle. Não se pode deixar o indivíduo sozinho, entregue a si próprio. Pois se tal acontecesse, com o apoio de uma inteligência livre e consciente das potencialidades de libertação da realidade da repressão, a energia libidinal do indivíduo, gerada pelo id, lançar-se-ia contra as suas cada vez mais extrínsecas limitações e esforçar-se-ia por abranger cada vez mais vasta área de relações existenciais, assim arrasando o ego da realidade e seus desempenhos repressivos” (MARCUSE, Herbert, Eros e Civilização, R. de Janeiro, Zahar Editores, 1981, p. 60).
Diante desse perigo de no interior do capitalismo
surgirem esferas de tempo livre cada vez mais amplas, é inventado o “tempo de
lazer” administrado e planejado pela Indústria Cultural. As origens dessa
indústria de entretenimento podem estar localizadas na estratégia das fábricas
criarem grêmios desportivos, clubes de campo, campeonatos esportivos internos,
etc para fazer os operários ocuparem produtivamente este tempo de lazer, isto
é, um tempo livre filtrado pela censura de conteúdo imposta pela cúpula
empresarial. Mas isto ainda era muito primário. É na sociedade de consumo que
esse controle realiza-se de modo mais sutil, na transformação do próprio tempo
livre em mercadoria a ser adquirida pelo indivíduo.
Indo mais além, enquanto no mundo do trabalho os
processos utilizados para mensuração do tempo, divisão e organização geral do
trabalho resultam em movimentos monótonos e repetitivos (algo semelhante ao
trabalho maquinal feito pelo personagem de Charles Chaplin no filme Tempos
Modernos), o lazer, em muitos aspectos repete este mesmo princípio. Academias
de musculação onde indivíduos repetem até quase morrer os mesmos movimentos;
programas populares de perguntas e respostas concorrendo a prêmios milionários
onde nos divertimos vendo pessoas passando situações análogas as que vivemos no
nosso dia-a-dia de trabalho: correndo contra o cronômetro para apertar o botão
e ganhar a bolada milionária.
Ficha Técnica
- Título: Leisure
- Direção: Bruce Petty
- Roteiro: Bruce Petty
- Narração: Alexander Archdale
- Produção: Film Australia, Film Graphics
- Ano: 1976
- País: Austrália