quinta-feira, dezembro 20, 2012

A necrospectiva do fim do mundo

Talvez essa postagem jamais seja publicada: o mundo poderá acabar antes. Estamos em meio a uma contagem regressiva para o fim do mundo que, segundo a profecia maia, seria no dia 21 de dezembro de 2012. Tal como em 1999 (talvez lá fosse muito pior, pois estávamos às voltas com uma dupla catástrofe: a bomba informática do “bug do milênio” e as profecias de Nostradamus), agora temos uma nova contagem regressiva, dessa vez à base de uma interpretação arbitrária do calendário Maia, turbinada por filmes-catástrofes de Hollywood como “2012”. Por que essa necessidade das religiões e do imaginário contemporâneo criarem profecias, apocalipses e contagens regressivas? Por que essa obsessão “necrospectiva”?

Final de ano é um momento de retrospectivas que dominam quase totalidade dos conteúdos das mídias. Como todo tipo de olhar que use o prefixo “retro”, é um misto de nostalgia e compulsão de colecionador em querer catalogar e organizar o passado. Dessa forma, a necessidade retrospectiva é um subproduto do pensamento racionalista Ocidental de tentar encontrar nos eventos recorrências, padrões ou sentido. Lá tentamos achar lições ou conhecimentos que nos orientem em direção ao futuro.

Mas uma obsessão maior parece sobrepor esse olhar retro: a Necrospectiva, no sentido dado pelo pensador francês Jean Baudrillard – a liquidação de todo e qualquer futuro em uma contagem regressiva. O futuro transformado em bomba relógio. O tempo não mais contado aditivamente como nas retrospectivas, mas como subtração começando do fim nas proféticas necrospectivas (veja BAUDRILLARD, Jean, Paroxism: the end of the millennium or the countdown).

domingo, dezembro 16, 2012

No Terceiro Aniversário uma questão: o "Cinegnose" é um blog "sobre Gnosticismo" ou "Gnóstico"?

O blog “Cinema Secreto: Cinegnose” chega ao terceiro aniversário com a notícia de que chegamos ao Top 3 dos finalistas do prêmio Top Blog 2012 na categoria “Arte e Cultura”. Projeto iniciado com as análises dos filmes gnósticos na dissertação de mestrado, o “Cinegnose” começou com uma linha editorial “sobre Gnosticismo”: especializado na análise de filmes gnósticos como ponto de partida para aprofundar temas filosóficos do Gnosticismo. Chegamos ao terceiro ano expandindo a discussão, dessa vez optando pelo “olhar gnóstico”, resultando numa abordagem mais abrangente para o Cinema, Audiovisual e Cultura Pop.

Esse mês o “Cinema Secreto: Cinegnose” faz aniversário. Pela terceira vez! Esse foi o terceiro ano de um projeto iniciado com a dissertação de mestrado “Cinegnose: a recorrência de elementos gnósticos na produção cinematográfica norte-americana – 1995 a 2005”, defendida na Universidade Anhembi Morumbi. Como sempre, ao final da edição de qualquer produto cultural (seja um CD, filme, livro ou dissertação) muito material acaba ficando de fora por absoluta falta de tempo e espaço físico.

Ao final da análise sobre a recorrência de elementos gnósticos (narrativas, mitologias, símbolos, iconografia etc.) até 2005, percebi que, na verdade, o objeto da análise estava em constante desdobramento e evolução: filmes posteriores como “Ilha do Medo” (2010), “A Origem” (2010) e até o brasileiro “Os Famosos e os Duendes da Morte” (2009) demonstravam que o Gnosticismo era uma influência cada vez mais presente (explícita ou implícita) em temas e roteiros fílmicos.

Foi então que ao final de uma das aulas no doutorado da ECA-USP, a professora Gloria Kreinz sugeriu-me: por que não faz um blog? Seria uma forma de dar vazão a todo esse material que ficou de fora do inevitável corte metodológico que todo trabalho científico impõe.

quinta-feira, dezembro 13, 2012

Filme "Capricórnio Um": o pai de todas as conspirações

Um clássico dos filmes sobre conspirações. Talvez, o pai de todas as teorias conspiratórias sobre o programa espacial norte-americano. O filme “Capricórnio Um” (1977), escrito e dirigido por Peter Hyams, se insere em uma tendência de filmes dos anos 1970 estranhamente perturbadores. Muitos críticos reconhecem que essa década foi a era de ouro do Cinema com filmes cujas narrativas são dominadas por atmosferas paranoicas e esquizofrênicas. Um filme que inspirou todas as futuras teorias conspiratórias e que tornou crível a possibilidade de que o pouso na Lua jamais tivesse ocorrido. Além do diretor Peter Hyams oferecer uma ótima oportunidade para se discutir a importância fetichista que damos às imagens na cultura contemporânea.

Embora a indústria do entretenimento norte-americano alimente essas atmosferas desde o pânico em massa criado pela transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos de 1938, o gênero fílmico noir nas décadas de 1930-40 e a paranoia anti-comunista simbolizada por filmes sci fi de marcianos invadindo a Terra e corpos humanos nos anos 1950, foi na década de 1970 que a paranoia alcançou sua maturidade crítica: não só apontou que havia algo de errado na sociedade mas começou a sugerir o que estava por trás dela.

“Capricórnio Um” parte de uma questão que estará por trás de todas as teorias das conspirações até hoje: e se o maior evento da história recente jamais tivesse acontecido? Essa era a pergunta nos anúncios promocionais do filme em 1978 onde víamos uma foto com astronautas do lado de fora de uma espaçonave em uma paisagem marciana fake, rodeados por câmeras e spots de um estúdio hollywoodiano.

O filme inicia com os últimos minutos que antecedem o lançamento do foguete “Capricórnio Um” que conduzirá três astronautas (performados por James Brolin, Sam Waterson e O. J. Simpson) para o primeiro pouso tripulado em solo marciano. Faltando poucos minutos para o final da contagem regressiva, os astronautas são secretamente retirados do interior da cápsula e levados para longe dali, para um hangar abandonado no meio de um deserto, enquanto o foguete é lançado em direção à Marte sem a tripulação.

terça-feira, dezembro 11, 2012

Réquiem ao cinema e a identidade em "Holy Motors"

Surreal, enigmático e bizarro. Mais do que uma homenagem ao Cinema, “Holy Motors” (2012) do diretor francês Leos Carax expressa incertezas e temores diante da ruptura digital que se impõe a uma mídia cuja essência é mito e magia. O medo da obsolescência do “Motor Sagrado” (o dispositivo cinematográfico) substituído por mundos virtuais onde tanto os espectadores como diretores poderão ser qualquer coisa, até esquecerem o que já foram um dia.

Definitivamente o diretor, crítico e escritor francês Leos Carax (“Les Amants Du Pont-Neuf”, 1991;  “Pola X”, 1999; “Tokyo”, 2008) não mantém uma boa relação com a produção cinematográfica e o futuro digital do Cinema. Quando sua última produção, “Holy Motors”, foi exibida este ano no Festival de Cannes o ator Denis Lavant (que interpreta o protagonista Mr. Oscar) afirmou que o filme era “uma declaração poética do amor sobre a espécie humana”. Prontamente, Carax se opõe: “Não é nada disso, mas tudo bem!”. “Mas você não explica suas intenções narrativas aos atores antes de filmar?”, perguntou um jornalista em Cannes. “Eu nunca trabalho com pessoas que necessitem disso. Eu não trabalho com pessoas que me façam perguntas. Esse é o problema de eu estar falando com você”, responde Carax de forma corrosiva ao jornalista. (veja “Holy Motors: the weird world of Leos Carax in: The Guardian 27/09/2012).

Muitos críticos especulam que o enigmático “Holy Motors” é uma exuberante homenagem ao Cinema que ele tanto ama, desde os tempos quando escrevia crítica cinematográfica. De fato, é um filme sobre cinema, uma grande metalinguagem que faz lembrar “Império dos Sonhos” (Inland Empire, 2006) de David Lynch. Porém, “Holy Motors” está muito mais para um réquiem do que uma homenagem ao Cinema. Carax nos fala sobre os destinos do Cinema na era digital e da Internet, da ameaça da obsolescência do dispositivo cinematográfico, o “motor sagrado” do título.

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Niemeyer e Brubeck: a morte da utopia da "arte total"

Em meio à influência do cartesianismo de Le Corbusier e Bauhaus no Palácio do Itamarati, Oscar Niemeyer inseriu a sensualidade e força ascendente de uma escadaria interior que reinventou a vanguarda. O riff de piano sincopado, quase sinistro, de “Take a Five” acompanhado por uma misteriosa linha de saxofone que flutuava sobre o ritmo 5/4 igualmente foi outra reinvenção, dessa vez de Dave Brubeck no Jazz. A morte desses dois artistas no mesmo dia tem um significado altamente simbólico, sincromístico: não foi apenas a morte de dois grandes expoentes nas suas respectivas áreas de atividade – arquitetura e música – mas o desfecho ao mesmo tempo de uma era e da utopia que sustentou todo o movimento modernista do século XX: a “obra de arte total”, a utopia romântica de que a arte abandonasse o estéril esteticismo e fosse capaz de fazer uma síntese entre o artístico e o social.

Leveza e elegância. Assim pode ser definida a arte tanto de Niemeyer quanto de Brubeck, menos por uma suposta “poesia do concreto” ou pelo “jazz branco” como alardeiam os obituários midiáticos e muito mais pelo excelente paradoxo que eles representaram: diferente das vanguardas artísticas tradicionalmente agressivas e arrogantes, eles conseguiram conciliar a invenção dentro da tradição. Niemeyer inseriu a curva, sensualidade e imaginação no cartesianismo das linhas retas e angulosas de Le Corbusier e Mies Van Der Rohe, enquanto Brubeck inseriu métricas inspiradas em músicos de rua da Turquia (quando da excrusão com o seu Quarteto naquele país na década de 1950) no jazz tradicional do tempo 3/4 ou 4/4, métricas características da valsa.

Como típicos artistas representantes do ideário modernista, viam nas suas artes muito mais do que um diletante esteticismo, mas buscavam a obra de arte total capaz de integrar arte e vida, estética e sociedade.

quarta-feira, dezembro 05, 2012

A dialética da família: de "Charlie e Lola" aos "Simpsons"

O irmão mais velho assume a imagem de mentor outrora ocupada pelos pais; duas meninas demonstram poder desenvolver valores sem a necessidade de qualquer tipo de influencia de adultos; e em outro caso um personagem no papel de pai cuja autoridade é rebaixada pela sua absoluta incapacidade de lidar com as tecnologias que o cercam. Pesquisa da Universidade Anhembi Morumbi desenvolvida por alunos da graduação da Escola de Comunicação encontra nas animações infantis, adolescentes e adultas a recorrência não só do desaparecimento simbólico ou mesmo literal da figura dos pais como, também, do anacronismo ou deficiência em desempenhar os papéis que deveriam ocupar na formação social dos filhos. Além disso, personagens e narrativas expressariam a chamada "dialética da família" contemporânea: a crítica à autoridade patriarcal como anacrônica e autoritária ao lado de um modelo familiar igualitário e liberal foram historicamente emancipadores, mas, por outro lado, expôs as novas gerações às insidiosas e sedutoras novas formas de manipulação.

Em postagem recente intitulada “Por que os pais desapareceram do imaginário infantil?” discutíamos como o anacronismo da família como agencia socializadora, suplantada pela indústria cultural das celebridades e entretenimento ao oferecer novos modelos de “super-pais”, estava sendo representado por animações infantis onde se verifica uma significativa recorrência de situações onde os pais desaparecem simbolicamente e até mesmo fisicamente.  

O grupo de estudantes formados por Ana Lucia Borsari, Eduardo Gomes, Laryssa Valverde, Leonardo Salles e Nicolas Gomes da graduação da Escola de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (UAM/SP) decidiu então aprofundar a discussão do post em um trabalho de iniciação científica para a disciplina Estudos da Semiótica, procurando matizar as animações em três tipos de públicos: infantis, adolescentes e adultos. Respectivamente, o universo da pesquisa foram “Backyardgans”, Charlie e Lola, Pink, Dink Doo”e “Milly e Molly”; Os Flintstones e os Jetsons; e o último grupo “Os Simpsons” e “Uma Família da Pesada”.

sábado, dezembro 01, 2012

Um sci fi comunista: "Aelita - A Rainha de Marte"


“Sigam nosso exemplo camaradas! Unam-se numa família de trabalhadores, numa União Marciana de Repúblicas Socialistas Soviéticas”, brada o herói em um levante de operários nos subterrâneos de Marte contra uma espécie de totalitarismo czarista de outro mundo. Considerado o primeiro filme de ficção científica soviético, “Aelita - Rainha de Marte” (1924) é na verdade um anti-sci fi. Os revolucionários bolcheviques já se consideravam o futuro e a vanguarda, não precisavam de filmes sobre futuros utópicos. Como pretende demonstrar no filme, a utopia sobre viagens espaciais somente poderia ser uma excrescência do individualismo burguês. Mas ironicamente “Aelita” acabou influenciando clássicos do expressionismo alemão como “Metrópolis” e séries das futuras matinês dos cinemas norte-americanos como “Buck Rogers”. Também "Aelita" vai inaugurar o imaginário sobre Marte e a paranoia das invasões no secúlo XX.

domingo, novembro 25, 2012

O homem prisioneiro do tempo em "Matadouro 5"

O filme “Matadouro 5” (Slaughterhouse Five, 1972)  é um dos mais niilistas e desesperançados filmes gnósticos: sem saída, o homem é prisioneiro no tempo e condenado por alienígenas a repeti-lo por toda a eternidade. O que torna o filme “Matadouro 5” um clássico dos filmes com temática gnóstica é que ele inicia uma crítica metafísica de fatos que tradicionalmente são abordados pelo viés da crítica política ou social. No filme, a guerra não é mais enquadrada pela crítica ideológica ou política, mas, agora, como mais um fato dentro de um absurdo plano cósmico levado a cabo por demiurgos alienígenas.

"Matadouro 5" foi um dos filmes que mais impactaram a minha adolescência nos anos 70. O filme, baseado na obra consagrada de Kurt Vonnegut Jr. (escritor de ascendência germânica e falecido em 2007 nos EUA), é uma mistura de II Guerra Mundial, viagens no tempo e alienígenas de um planeta chamado Tralfamador. Uma mistura aparentemente bizarra que segue a linha do humor negro e das obras anti-guerra ou pacifistas dessa época (filmes como “Ardil 22” - Catch 22 de 1970, “Mash” de 1970 ou “Dr. Fantástico” - Dr. Strangelove, 1964 - de Kubrick são outros bons exemplos).

O filme narra a vida do protagonista Billy Pilgrim, soldado americano na II Guerra Mundial e sobrevivente ao infame bombardeio da cidade de Dresden, na Alemanha, no final da guerra (para quem não sabe, Dresden não era um alvo militar, mas acabou tornando-se vítima de pesado bombardeio aéreo aliado que resultou em 135 mil mortos, o dobro de mortos de Hiroshima).

sexta-feira, novembro 23, 2012

A máfia midiática elimina o Estado em "Generation P"

Che Guevara ensina lições sobre o novo capitalismo e o marketing moderno em meio a viagens lisérgicas e místicas de um protagonista que tenta se adaptar à Rússia pós-comunismo. “Generation P” (2011) do russo Victor Ginzburg consegue fazer uma adaptação de um livro considerado impossível de ser transposto ao cinema: “Babylon” do escritor Viktor Pelevin. Ginzburg faz uma espécie de revisionismo da recente história russa pós-comunismo sob o irônico título “Generation P” – o “P” de Pepsi-Cola referindo-se àqueles que abraçaram o produto como o gosto oficial da nova liberdade. Na verdade, Ginsburg mostra um verdadeiro circo onde misticismo e religião se misturam com imagens midiáticas geradas com recursos digitais por profissionais egressos do mundo da publicidade comandados por uma poderosa máfia que, secretamente, controla o Estado e define os destinos da Rússia.

Em 1997 o Barry Levinson dirigiu “Mera Coincidência” (Wag The Dog) onde um presidente norte-americano às vésperas da reeleição envolve-se em um escândalo sexual na Casa Branca. O staff do presidente contrata um produtor de Hollywood para criar uma fictícia guerra com a Albânia para, através de recursos de marketing e edição digitais de vídeos, fazer a mídia morder a isca e repercutir uma guerra fake que desvie a atenção da opinião pública do escândalo sexual.

“Generation P” do russo Victor Ginzburg é mais radical: e se o próprio Estado e todos os seus eventos políticos (corrupção, atentados e guerras) forem fake? Isto é, e se os eventos políticos ou o próprio Estado não passarem de imagens midiáticas geradas com recursos digitais por profissionais egressos do mundo da publicidade comandados por uma poderosa máfia que, secretamente, define os destinos da Rússia? Presidentes, políticos e ministros nada mais seriam do que os próprios componentes dessa máfia que foram escaneados e inseridos digitalmente nos noticiários, propaganda política e eventos reais produzidos cinematograficamente. E tal escaneamento ocorreria dentro de um ritual antigo babilônico a Ishtar, deusa do amor!

segunda-feira, novembro 19, 2012

A angústia da existência no filme "eXistenZ"

Se Basilides (um dos primeiros professores gnósticos em Alexandria, Egito, no século II da Era Cristã) fizesse um filme, certamente teria sido “eXinstenZ” (1999). Um filme onde o canadense David Cronenberg leva a relação entre o homem e a tecnologia ao limite do niilismo, do vazio e da angústia. Não tanto pelo fato das fronteiras entre real/virtual e verdade/ilusão desaparecerem em um sofisticado jogo virtual. Mas pela forma como um jogo transforma-se em fetiche erótico e religioso pelo marketing de uma poderosa corporação, impedindo a transcendência espiritual: de que a própria existência transforme-se em eXistenZ.

  Basilides nutria uma radical desconfiança em relação à linguagem porque a verdade sobre Deus estaria além do conhecimento humano: a linguagem não conseguiria apreender a plenitude e o eterno porque nela o homem torna-se obcecado em apreender as qualidades do devir nomeando-as através de conceitos e palavras estáticas uma realidade que é difusa, fluída, relativa. Preso nessa intransitividade entre os sistemas simbólicos e Deus, o homem se tornaria prisioneiro dos próprios conceitos e palavras, não conseguindo ouvir, dentro de si, a reminiscência do Uno, do Pleroma, da plenitude original que o uniria a Deus.

      Na modernidade essa angústia gnóstica é secularizada principalmente pela Filosofia existencialista, por exemplo, em Heidegger: o conceito de “Deus” é transformado em “Ser” e a angústia humana está na impossibilidade de apreendê-lo em seu sentido por meio de expressões ou enunciações. A impossibilidade da apreensão ôntica do Ser joga o ser humano na existência: o “ser-aí”, “o ser-no-mundo” ou o “ser-para-a-morte”.

     “eXistenZ” de Cronenberg transpõe essa angústia tanto gnóstica como existencialista para a discussão tecnológica: poderá o desenvolvimento tecnológico em sua interface final (a biotecnologia onde corpos e máquinas se integram por meio da informação) finalmente resolver essa angústia de séculos de religião e filosofia? A virtualização tecnológica por meio de jogos cada vez mais realistas baseados na interatividade e imersão dos jogadores poderá traduzir a verdadeira natureza do Ser como jogo onde as ações dos participantes é regida pelo princípio da aleatoriedade?

quinta-feira, novembro 15, 2012

O Mensalão e a agenda setting: a "Matrix" na prática

Muito discutida e ainda pouco compreendida, a essência do filme “Matrix” (a hipótese da virtualidade do real) talvez já esteja presente no nosso dia-a-dia mais do que imaginamos. A pesquisa “Agenda Setting e a Cobertura dos Casos Mensalão e Cachoeira” feita por estudantes de jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi São Paulo como conclusão do curso “Estudos da Semiótica” apresenta a constatação de que a mídia corporativa não tem mais o poder de eleger presidentes ou forçar impeachments como no passado, mas ela é eficiente em estabelecer pautas e agendas como a do atual julgamento do chamado “Mensalão”.  Se a hipótese da agenda setting for correta, o que chamamos de “realidade” poderia ser uma construção a partir de percepções e cognições fornecidos por um ambiente midiático em que vivemos.

Virtuosismo tecnológico, capas pretas, bullet time e todo o visual ciberpunk marcaram as representações dos mundos virtuais em filmes como “Matrix”: humanos enredados nos véus da ilusão criada por computadores/demiurgos que nos escravizam. Mas descontando todo esse sensacionalismo hollywoodiano em torno da hipótese da virtualidade do real, podemos nos surpreender ao descobrir que a essência do tema de Matrix já está presente em nosso dia-a-dia, tão diluído nos temas das nossas conversas e na indústria de informação e entretenimento que nem nos damos conta: mais do que uma figura retórica, já há muito tempo experimentamos a Matrix na prática!
        
      Isso é o que demonstra a pesquisa “Agenda Setting e a Cobertura dos Casos Mensalão e Cachoeira”, trabalho de conclusão da disciplina Estudos da Semiótica da Escola de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi – UAM/São Paulo (veja video abaixo). O grupo formado pelos estudantes da graduação em Jornalismo Ana Carolina Cassiano, Cainã Ito, Camila Albino, Gustavo Carratte e Renata Corona analisou as capas e primeiras páginas dos principais veículos de imprensa de alcance nacional e chegou a uma constatação empírica: até o início do segundo semestre o foco dos veículos como jornais “O Globo”, “Folha de São Paulo”, “O Estado de São Paulo” e de revistas como “Veja”, “Isto É” e “Época” “estava concentrado nas repercussões das denúncias envolvendo o contraventor Carlinhos Cachoeira. O julgamento do chamado Mensalão ainda era pouco comentado”.

segunda-feira, novembro 12, 2012

Os idosos nada têm a dizer na mídia


Quando o envelhecimento e a morte deixam de ser simbolicamente incorporados na cultura por meio de religiões e filosofias, o discurso midiático parece insistentemente querer demonstrar que a velhice não existe, que é tudo uma questão de atitude psicológica. Gerontologia, geriatria, engenharia genética e todo um aparato tecno-científico é atualmente mobilizado para, associado à mídia, apresentar sensacionais “lições de vida” e “superações”: idosos em praticas e comportamentos análogos ao dos jovens criando não apenas uma aversão aos processos naturais de envelhecimento mas, principalmente, a crise da função dos idosos como “elo geracional”: a transmissão de sabedoria e conhecimento acumulados em uma existência.

sábado, novembro 10, 2012

Sintoma e verdade nos zumbis

Por que pessoas fingem-se de mortos que se arrastam pelos centros urbanos do mundo, famintas por cérebros e sangue dos vivos? Como interpretar um flash mob como o “Zombie Walk” onde centenas de pessoas se transformam em realísticos zumbis, há onze anos espalhando-se por diversas capitais do mundo? Desde as lendas afro-caribenhas de pessoas que retornam do mundo dos mortos como assustadoras sombras de si mesmas até a recorrência dos mortos vivos no cinema, o fascínio pelos zumbis já produziu uma razoável bibliografia de pesquisadores que chegam a vê-los como um objeto de estudo etnográfico. Mas é inegável que os mitos e lendas dos zumbis possuem uma dupla dimensão: de um lado são sintomas de crises sociais e, do outro, possuem um momento de verdade ao fazer nos lembrar da condição humana nesse mundo.

      O flash mob “Zombie Walk” vem nos últimos anos ganhado cada vez mais espaço na mídia e seus participantes aprimorando cada vez mais no realismo das maquiagens e máscaras, trôpegos arrastando suas fantasias lentamente através de centros urbanos pelo mundo. No evento surgido em 2001 na Califórnia e que rapidamente se espalhou pelo mundo, vemos centenas de humanos fingindo-se de mortos que apodrecem enquanto lançam olhares e gestos ameaçadores para os desavisados, como se quisessem comer uns aos outros. Por que queremos fazer tais coisas? Por que os zumbis ou mortos vivos acabaram se tornando uma fantasia cinemática tão recorrente a ponto de produzir uma razoável bibliografia de pesquisadores que chegam a tratá-los como objeto etnográfico?

      Se olharmos atentamente a história da lenda dos zumbis, suas origens e desenvolvimento até chegar no cinema e na mídia, perceberemos que ela claramente apresenta duas dimensões: como sintoma social (conflitos de raça e classes) e como arquétipo, isto é, como um simbolismo do inconsciente coletivo que se filia ao imaginário dos autômatos, fantoches e bonecos como representação da condição humana nesse planeta.

quinta-feira, novembro 08, 2012

O espelho global no safári africano do Tocantins

O projeto de um parque temático milionário em pleno Tocantins (Out of África Brasil) promete trazer leões, rinocerontes, antílopes, entre outros, das savanas africanas para um safári no cerrado brasileiro. Definitivamente o Brasil se insere no imaginário da Globalização onde eventos, geografias e culturas se desterritorializam para circular pelo mundo ao sabor dos fluxos financeiros e midiáticos. Nesse imaginário os simulacros do “real” e do “selvagem” parecem ter uma única função: tal qual uma transfusão de sangue, injetar hiper-realidade em um real cujo sentido se enfraquece - o “selvagem” se humaniza como um espelho da nossa própria desumanidade: o parque temático selvagem torna-se mais “real” quanto mais é centrado no “show” da luta dos predadores e presas como lição moral para a nossa “realidade”.

"Brasil e África se juntam depois de milhares de anos que uma fissura nas placas tectônicas transformou o que hoje são dois continentes com características tão semelhantes. Agora já podemos sentir o coração de África no Tocantins." Essa é uma frase retirada do vídeo promocional de um projeto de trazer para o meio do Tocantins um típico safári africano. No projeto orçado em 350 milhões de dólares, em uma reserva de 100 mil hectares seriam colocados mais de 400 indivíduos de espécies como leões, leopardos, elefantes e búfalos. Em pleno cerrado brasileiro teríamos animais vivendo como nas savanas africanas (clique aqui para ler a notícia).

É muito curiosa essa associação entre o deslocamento das placas tectônicas que separaram os continentes por forças magnéticas do interior da Terra e um investimento milionário que pretende reunir novamente África e América do Sul através de um parque temático. Se no passado a deriva dos continentes separou, agora a energia eletromagnética e espectral da indústria do entretenimento vai unir.

Mas será que vai unir mesmo? Ou há uma semelhança irônica desses dois fatos separados no tempo? Em outras palavras, e se no safári do Tocantins estivermos experimentando o mesmo fenômeno de descolamento e desconexão do passado? Continentes foram arrastados pelas forças internas do planeta; hoje culturas e geografias são transformadas em signos pelas forças midiáticas e do marketing para se deslocarem para pontos distantes das suas origens.

domingo, outubro 28, 2012

"Deus é meu inimigo!"

Crianças são imprevisíveis, principalmente no que pensam e falam. Suas impressões e tiradas são muitas vezes surpreendentemente cortantes pela sinceridade e concisão. Ideias que para os adultos já são tão evidentes em si mesmas que passam batidas e sem exigência de reflexão, para uma criança que as conhece pela primeira vez muitas vezes são motivos de estranhamento. Uma delas é a ideia de “Deus”. Outro dia, meu filho Gael demonstrou toda sua estranheza: “O Deus é meu inimigo!”, disparou. O que está por trás dessa afirmação de uma criança de quatro anos em um universo lúdico povoado de super-heróis como Homem Aranha e Ben 10, seus preferidos?

Um dia Gael virou para minha esposa e falou com convicção: “O Deus é meu inimigo!”. “Mas o que Ele te fez?”, perguntou Tatiane pega de surpresa com uma afirmação tão dura. “Todos têm medo do Deus. Eu só tenho medo dos meus inimigos e vilões. Então, o Deus é meu inimigo”, concluiu em um evidente silogismo aristotélico. A aproximação dos termos “inimigos” e “vilões” torna claro que Gael não se referia a inimigos pessoais, mas os vilões dos super-heróis com os quais ele se identifica. Um herói teme seus inimigos (o início da sabedoria dos super-heróis) para depois encontrar o ponto fraco e vencê-los.

O que me surpreendeu foi a sua concepção de Deus como uma entidade punitiva e grave que impõem respeito através do medo. Gael não estuda em uma escola religiosa, mas pedagogicamente crítica, construtivista e laica. Certamente tal concepção não foi passada diretamente em aulas de religião, catecismo ou mesmo Filosofia. Se ele não recebeu essa concepção de Deus de forma doutrinária ou religiosa, só pode ter apreendido indiretamente dentro do contínuo cultural no qual estamos imersos.

quarta-feira, outubro 24, 2012

A sedução pelas imagens em "Saneamento Básico, O Filme"

A burocracia da administração das verbas públicas municipais coloca moradores de uma pequena cidade em uma situação inusitada: a única solução para obter dinheiro para construir uma fossa séptica e resolver o problema do esgoto a céu aberto é a produção de um vídeo ficcional sobre esse próprio problema real.  A questão é que os moradores não têm a menor noção sobre produção de um vídeo e nem o significado da palavra “ficcional”. “Saneamento Básico, O Filme” (2007) de Jorge Furtado não só faz uma didática e divertida metalinguagem sobre os princípios da linguagem audiovisual, mas nos oferece uma oportunidade de reflexão sobre como a imagem tornou-se o centro da sociedade atual, como fetiche, sedução e contaminação do real ao produzir “não-acontecimentos”.

Que vivemos na sociedade das imagens, isso é um consenso desde Guy Debord com o seu livro “Sociedade do Espetáculo” que descreve o espetáculo difuso como um modo capitalista de organização social que resulta em alienação e a transformação dos homens em simples coisas por meio das mercadorias. Desde Debord, a imagem é sempre vista através do viés do parasitismo, isto é, como uma imensa fantasmagoria que não nos deixaria compreender as verdadeiras necessidades humanas e espirituais.

Imagem seria ideologia, falsa-consciência, fetiche, mentira ou manipulação.

Mas, e se distinção que subjaz neste enfoque tradicional (imagem/referente, verdade/mentira, real/ilusório) desaparecesse na sociedade do espetáculo contemporânea? Explicando melhor: e se graças à onipresença das linguagens midiáticas e da criação de um “contínuo midiático atmosférico” a imagem se confundir com a própria realidade a tal ponto que o primado das imagens deixasse de ser apenas uma fantasmagoria, mas a própria estrutura constitutiva da realidade? Ou seja, para o indivíduo as antigas distinções entre ilusão e realidade pouco importariam, já que a imagem produz efeitos tão reais quanto as demandas ontológicas do mundo real.

Complicado? Pois o filme brasileiro “Saneamento Básico, O Filme” apresenta uma narrativa ao mesmo tempo hilária e didática sobre essa perversa evolução da sociedade do espetáculo.

Produção da Casa de Cinema de Porto Alegre e dirigido por Jorge Furtado, o filme nos apresenta uma narrativa que se passa numa simplória e bucólica comunidade de imigrantes italianos no interior do Rio Grande do Sul. Marina (Fernanda Torres) e Joaquim (Wagner Moura) lideram uma mobilização de moradores em defesa da construção de uma fossa para abrigar o esgoto local que corre a céu aberto. 

domingo, outubro 21, 2012

O Mal pune desobedientes em "Um Olhar do Paraíso"

Centrada na estória de uma menina que foi assassinada e observa sua família e seu assassino do “céu” (não propriamente, mas de um limbo entre a terra e o céu), a adaptação do romance “Lovely Bones” de Alice Sebold esquece a inteligência e a intrincada estória do livro e confina a experiência do sagrado na célebre fantasia-clichê hollywoodiana da “quebra-da-ordem-e- retorno-a-ordem”: quem transgride a Ordem deve ser punido! Assim é Um Olhar do Paraíso” (Lovely Bones, 2009)
Como já abordamos em postagens anteriores (veja links abaixo), a chamada experiência do Sagrado tal qual compreendida pelo mainstream midiático da atualidade consiste numa espécie de teologia secularizada: uma experiência que seria originada na percepção ou descoberta intuitiva súbita que o indivíduo teria de uma conexão com uma “ordem maior”, com uma totalidade cósmica ou divina.
Descontínuo e marcado para morrer, para o homem a Verdade não estaria na experiência individual, mas na liquidação de qualquer perspectiva particular em nome de uma Totalidade (“Somos todos Um”, o totalitário slogan New Age).

Nessa perspectiva, esse Sagrado enquanto teologia secularizada, teria duas “funções”: adaptar de forma violenta o indivíduo às totalidades sociais (ordem corporativa, política, moral etc.) e trazer racionalização e conforto à dor e sofrimento individuais decorrentes dessa adaptação forçada (mostrar ao indivíduo que ele é insignificante diante dos desígnios maiores do Cosmos).
Como no filme Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955) onde o personagem de James Dean (Jim Stark) olha para as estrelas do Planetário e diz que vem sempre para lá para, ao contemplar a imensidão do universo, perceber como seus problemas são insignificantes.

Da mesma forma, Um Olhar do Paraíso confina a experiência do sagrado a sucessivas experiências de punições dos personagens por transgressões da Ordem. E o filme segue essa fantasia-clichê de forma surpreendentemente rígida e esquemática no melhor estilo dos filmes que envolvem adolescentes nos gêneros terror ou thriller. Se não, vejamos.

sexta-feira, outubro 19, 2012

O futuro do cinema e do real em "S1m0ne"

“Uma estrela digitalizada! Sabe o que isso significa? Vamos entrar em uma nova dimensão: nossa capacidade de criar uma fraude ultrapassou nossa capacidade de detectá-la” Depois de escrever o roteiro de “Show de Truman” Andrew Niccol escreveu, dirigiu e produziu “S1m0ne” (2002) para aprofundar ainda mais a questão lançada no filme anterior. Se em “Show de Truman” tínhamos um mundo falso criado para aprisionar uma pessoa, em “S1m0ne” Niccol fez o inverso: a criação de uma pessoa falsa para enganar e seduzir todo o mundo.

Andrew Niccol demonstra uma afinidade com temáticas relacionadas aos impactos sociais das mídias e novas tecnologias. Antes, escreveu os roteiros de “Gattaca” (1997) e “Show de Truman” (1998), filmes que, respectivamente, discutiam a ética e o impacto humano na manipulação genética e a hipertrofia do gênero televisivo reality show. Uma olhar para o impacto da tecnologia através de simbolismos cabalísticos, alquímicos e gnósticos. Dessa forma, Niccol pertence a uma geração de roteiristas e diretores que, a partir da década de 1990, participam de uma espécie de guinada metafísica de Hollywood já discutida em postagem anterior (veja links abaixo): Darren Aronofsky (“Pi” – 1998 e “Fonte da Vida” – 2006), Charlie Kaufman – “Quero Ser John Malkovich” – 1999 e “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” – 2003) entre outros.

Em “S1m0ne” Niccol faz uma irônica projeção do futuro do cinema com as tecnologias digitais onde a virtualização poderia chegar às raias da fraude e também uma forma mística de transcendência espiritual para escapar da “irracional fidelidade à carne”, como declara o protagonista em uma das linhas de diálogo do filme.

domingo, outubro 14, 2012

Físicos tentam provar que vivemos na "Matrix"

Cientistas da Universidade de Bonn, Alemanha, estão levando a sério a hipótese de que o nosso universo poderia ser uma gigantesca simulação de computador ao melhor estilo “Matrix”. Liderados pelo físico Silas Beane, tentam encontrar a “assinatura cósmica” dessa simulação e a natureza da nossa “visão restrita” que nos impediria de percebermos essa virtualidade do real. Para superar essa “visão restrita” tentam criar uma simulação de nosso universo simulado (uma espécie de meta-simulação), o que faria lembrar não só filmes como “O Décimo Terceiro Andar” (1999) e “Matrix” (1999), mas também a cosmologia gnóstica e o Princípio da Correspondência do Hermetismo e Alquimia da antiguidade em Alexandria.

Alguma outra civilização teria alcançado a capacidade de produzir computadores tão poderosos que teria desenvolvido simulações do próprio universo em que habita. E nós poderíamos estar vivendo em uma dessas simulações, reproduzindo a mesma trajetória que os nossos “criadores” trilharam. Se na atualidade vemos um número crescente de usuários imersos em mundos virtuais como “Second Life”, “SimCity” e “World of Warcraft”, isso representaria o início dessa trajetória que nos conduziria à mesma capacidade de projetar simulações.

Essas ideias não saíram de um roteirista de sci fi, mas do filósofo e matemático professor da Universidade de Oxford Nick Bostrom, sugerido em um artigo em 2003 e sustentado apenas por uma fórmula probabilística que seria essa:     
Onde:  

  • fp  é a fração de todas as civilizações humanas que alcançaram a capacidade tecnológica de produzir programas simuladores de realidade;
  • “N” é a média de simuladores ancestrais funcionando pelas civilizações mencionadas em fp;
  • “H” é a média do número de indivíduos que viveriam em uma civilização antes dela estar hábil a criar simuladores de realidade;
  • “fsim” é a fração de todos os humanos que vivem em realidades virtuais.

Pois “H” terá um valor tão grande que, pelo menos, uma das três aproximações será verdadeira:

fp 0
N 0
fsim   0

Apesar da fórmula que dá um aspecto de cientificidade, a hipótese de Bostrom era principalmente filosófica e poucos ousariam a dar continuidade a uma ideia como essa. Até ser noticiado que uma equipe de físicos teria afirmado que seria possível confirmar ou não essa hipótese, bastando encontrar uma “assinatura cósmica” (clique aqui para ler a notícia). E os pesquisadores já teriam uma descrição do que seria essa “assinatura”. 

sexta-feira, outubro 12, 2012

Os Cátaros, Paulo Coelho e o turismo esotérico

Escalar uma "montanha mágica" nos Pirineus para encontrar a fortaleza dos heréticos Cátaros do século XII. O problema é que, para eles, toda a suposta beleza dos céus e da Terra era “obra de um demônio”. Mas para um turista esotérico isso não importa: a jornada descrita pelo famoso escritor de best sellers esotéricos Paulo Coelho confirma os principais mitos dessa agenda “new age” cujo imaginário criou um subgênero na indústria do turismo. Os mitos dessa jornada: Os “Sinais”, O “Todo”, Os “Lugares Especiais” e O “Antigo”.

Em uma das minhas visitas à cidade de Santos (meus pais moram lá) me detive diante de uma banca de jornal e parei na primeira página do jornal “A Tribuna de Santos”. Era domingo, dia em que o jornal vem com o suplemento “ATrevista”, uma revista de variedades culturais, culinárias e dicas de compras. Temas bem amenos para um típico domingo santista ensolarado e quente. Folheando a revista, perdido entre receitas culinárias e páginas publicitárias, encontro uma coluna do famoso escritor de best sellers esotéricos Paulo Coelho intitulado “Montanha Mágica” (clique aqui para ler).

O texto começa com uma típica descrição turística sobre “uma das as mais belas regiões do mundo”, Languedoc nos Pirineus e Sudoeste da França. “Mas foi nesse lugar magnífico que nasceu a primeira grande “heresia” europeia: o catarismo. Muitos livros foram escritos sobre o tema, entretanto, é possível resumir a filosofia cátara numa simples frase: o universo foi criado pelo demônio. Toda esta beleza aparente é uma obra diabólica.” Uauuu! Que tema para um domingo de sol e praia!

Para quem não sabe, os Cátaros foram os responsáveis pelo reaparecimento do Gnosticismo na Europa no século XII, esparramados pelo Sul da França, Languedoc, Catalunha e norte da Itália. Foi um movimento cristão considerado herético pela Igreja, com forte paralelo com os gnósticos do princípio da era cristã, mais precisamente com o dualismo de Mani (viveu no Irã no século III) que sustentava que o cosmos seria dividido por dois poderes opostos: o Bem e o Mal, o verdadeiro Deus e o Demiurgo, uma divindade decaída e enlouquecida com o próprio poder que nos aprisiona em um universo físico corrompido.

sábado, outubro 06, 2012

O mundo que nos expulsa no filme "Lugares Comuns"

O filósofo alemão Hegel dizia que “a coruja de Minerva somente levanta voo ao entardecer” numa alusão à esperança de que a Razão ganhe força em momentos de crise e obscurantismo. E se a Razão falhar? Então, seremos expulsos desse mundo. Esse é o tema filosófico dentro do cenário da crise econômica no filme argentino “Lugares Comuns” (Lugares Comunes, 2002). Um professor de Literatura é compulsoriamente aposentado em um reflexo da crise econômica do país e vê seus valores iluministas e humanistas desmoronarem, sentindo-se um estrangeiro em um mundo cujo lógica não trabalha com soma, mas com subtração.

“Eu sei que existe a desordem, a decepção e a desarmonia. Existe um país nos destruindo, um mundo que nos expulsa, um assassino impreciso que nos mata dia após dia, sem que percebamos. Não tenho uma resposta. Escrevo do caos, da mais completa escuridão”. Essas são as primeiras frases em off do protagonista enquanto escreve apontamentos ou pequenas crônicas para o seu diário. Fernando (Frederico Luppi) é um professor de Literatura em uma universidade em Buenos Aires sob a catastrófica crise econômica argentina do início dos anos 2000 pós-política neoliberais do presidente Carlos Menen.  

Como podemos perceber nessa fala inicial, o filme “Lugares Comuns” fará um paralelo entre a crise em uma dimensão material (a econômica) é a outra crise em um plano metafísico ou filosófico (as velhas questões da Filosofia que, de tão repetidas, tornaram-se “lugares comuns” – caos e ordem, necessidade e liberdade, livre arbítrio e destino).

Fernando é casado com Lili (Mercedes Sampietro) uma assistente social que acompanha de perto as consequências da crise no país. Apegado ao pensamento crítico, ao Iluminismo e Humanismo tenta exercer a crítica literária e, ao mesmo tempo, ensina seus alunos a pensarem e manterem-se longe dos dogmas políticos e religiosos. Tenta transformar a Razão em bússola em um momento de crise e caos social. A frase de Hegel de que “a coruja de Minerva levanta voo somente no entardecer” (a Razão torna-se mais forte em momentos de obscurantismo) seria a convicção salvadora de Fernando.

quinta-feira, outubro 04, 2012

Em busca do Cinema Acontecimento

Uma época em que o cinema não era apenas entretenimento, mas um acontecimento capaz de transformar vidas. Do início do cinema lembramos principalmente dos Irmãos Lumière e de Meliés. Mas poucos pesquisadores dão espaço para relatos sobre uma produção cinematográfica norte-americana do começo do século XX que tematizava os conflitos capital-trabalho, o sindicalismo e a dura vida de imigrantes e trabalhadores em fábricas e minas. O maravilhamento do primeiro público do cinema formado pelos estratos inferiores da sociedade ao se ver representado na tela transformava as primeiras salas de cinema em eletrizantes acontecimentos de participação e interatividade. Logo esses verdadeiros filmes-acontecimentos foram reprimidos e enquadrados por Hollywood e, a partir de 1924, considerados "anti-americanos" (comunistas) pelo Bureau of Investigation de Edgar Hoover. Desses primeiros tempos ficou o desejo da ruptura da ordem e da rotina que nos acompanha a cada ida ao cinema, o anseio pelo Acontecimento. 

Para a maioria dos espectadores, ir ao cinema não é uma atividade que esteja associada ao perigo e comportamentos transgressivos. Tido como um local onde fantasias podem ser vividas e tudo pode acontecer em um universo ficional, está mais comumente associado ao entretenimento ou, no mínimo, a uma fuga dos problemas ou do esquecimento momentâneo dos aborrecimentos do dia-a-dia.

Mas nem sempre foi assim ou, talvez, nunca tenha sido. De um lado há uma história descrita por pesquisadores que localiza no chamado primeiro cinema um tipo de experiência estética que não se resumia unicamente a uma forma de entretenimento: pelo contrário, era uma forma de experiência que poderia transformar vidas; de outro, pesquisas críticas que descrevem o cinema e a própria experiência estética como uma arena de tumulto e contenção, quebras e retornos à ordem, crítica e reação. Para esses pesquisadores, desde o primeiro cinema e a posterior industrialização, enquadramento e controle, o cinema traria ainda dentro de si a potencialidade em transcender a si mesmo, mudar vidas de espectadores, transformar a experiência estética em um acontecimento.

domingo, setembro 30, 2012

O olhar surrealista sobre o consumismo em "Little Otik"

Se nos contos de fadas tradicionais ogros, lobos e bruxas ameaçam devorar crianças, em “Otesánek” (Little Otik, 2000) do animador e diretor checo Jan Svankmajer vemos o inverso: uma criança ameaça devorar seus próprios pais. Ligado ao movimento surrealista desde a década de 1970, Svankmajer oferece um olhar carregado de humor negro sobre uma cultura de consumo baseado na regressão infantil à compulsão e voracidade oral onde objetos assumem dimensões fetichistas e mágicas ganhando vida própria, e nos prometendo a redenção das frustrações. O olhar surrealista de Svankmajer questiona: estaria nessa verdadeira cultura da devoração do outro a origem das guerras, desigualdades e terrorismo do mundo contemporâneo?

Membro do movimento de artistas surrealistas checos desde os anos 1970, Jan Svankmajer possui em seu currículo uma série de curtas e filmes longa metragem onde animações em stop motion, fantoches e animações 2D interagem com atores. Como cineasta, tenta livrar seu trabalho de tendências decorativas, maneiristas ou “artísticas” (palavra que Svankmajer rejeita em favor da “criação”) para buscar em suas narrativas realidades disfarçadas por trás do utilitário e do convencional.

Dessa maneira, Svankmajer neste filme “Otesánek” (Little Otik, 2000) transforma o prosaico ato de comer associado a um conto de fadas checo e referências explícitas a Luis Buñuel (como na sequência onde um homem pega bebês e os envolve em jornais para serem vendidos com peixes para a ceia de Natal) como metáforas do inconsciente por trás da cultura do consumo.

“Little Otik” é baseado em um antigo conto de fadas tcheco sobre um casal que descobre que não pode ter filhos, mas adquire um bebê de forma incomum: o Sr. Horák, um pacato burocrata que trabalha em uma repartição, ao cavar a terra no fundo do jardim para arrancar uma árvore, encontra uma raiz com forma curiosa que lembra vagamente uma criança. Horák esculpe a raiz dando formas definitivas e apresenta à esposa que, de imediato, adota como um bebê imaginário: secretamente lhe dá banho e o “alimenta”. 

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