O mundo, particularmente a Europa, vive uma atmosfera de cancelamento do futuro: de um lado a urgência climática; do outro, a escalada da guerra da Ucrânia que resvala para um conflito nuclear. Sensação de cancelamento de futuro na Guerra Fria criou a estética do niilismo hiperativo da house music nos anos 1980. E o filme francês “MadS” (2024) inaugura o niilismo eufórico, o espírito do século XXI, através de um curioso mix entre os zumbis de George Romero e a hiperatividade eufórica de “Corra, Lola, Corra” (1998). Filmado em um único plano sequência e em tempo real, acompanha a noite de jovens numa festa de drogas, sexo e música, na qual o efeito lisérgico cria uma estranha desconexão na clássica mutação zumbi: tudo que acontece é apenas uma bad trip? Ou há algo pior - parece que o contágio oferece algum tipo de adrenalina. Do niilismo hiperativo do passado, agora temos zumbis niilistas eufóricos.
Depois de décadas de ascensão dos televangelistas, acompanhamos nesse século o retrocesso civilizatório da escalada global das relações promíscuas e hipócritas entre religião, política e Estado. Não faltaram alertas no campo do cinema e audiovisual, para começar na série “Handmaid’s Tale”. Esses alertas vêm de muito tempo antes, ainda no século XX, em produções como “O Mensageiro do Diabo” (The Night of the Hunter, 1955). Robert Mitchum interpreta um reverendo itinerante que, entre citações bíblicas, casa com viúvas para matá-las e roubar as economias da família em pela Grande Depressão americana. Mas filhos relutam em dizer onde seu pai verdadeiro escondeu o dinheiro fruto de um roubo. Com forte influência do filme noir e expressionismo alemão, à época foi um fracasso de público e crítica. Para ao longos dos anos acabar sendo reconhecido como uma obra-prima.
Uma explosão solar desencadeia um apocalipse geomagnético na Terra, inutilizando dispositivos móveis e a Internet. Quem se beneficiaria com o caos? Palhaços e jornalistas: sem a concorrência do Tik Tok, a “comedia dell’arte” voltaria à ribalta e num mundo analógico os jornalistas retomariam o faro investigativo perdido. Esse é a comédia irlandesa “Apocalypse Clown” (2023) que traz mais uma vez o niilismo gnóstico ao estilo Terry Gilliam da trupe de humor Monty Python: o riso é a única resposta sensata a uma existência sem sentido. Lembrando a célebre “punch line” do Coringa de Heath Ledger: “Porque está tão sério?”. Um trio de palhaços fracassados se torna anti-heróis em um mundo desconcertante onde nada é o que parece.
O filme do diretor Lars von Trier, “O Grande Chefe” (The Boss of it All, 2006, disponível no MUBI), segundo o diretor, é uma comédia inocente e despretensiosa. Sua fala já é cínica e irônica, tanto quanto o tema soturno dessa comédia: como a ética sobrevivencialista e o “cinismo esclarecido” (Peter Sloterdijki) criam no nosso cotidiano (no filme, uma narrativa ao estilo “The Office”) traços psíquicos como a das pessoas que vivem situações extremas: auto-distanciamento irônico, individualidade multiforme e anestesia emocional. O dono de uma empresa inventa um personagem (o “chefe de tudo”) para dizer que apenas cumpre ordens, para evitar se indispor com subalternos em decisões mais delicadas (e duras). Por isso, contrata um ator para cumprir esse papel, transformando tudo em uma farsa de mal-entendidos e embaraços.
Sabemos que o cinema e o audiovisual são sismógrafos do zeitgeist dominante de cada momento histórico. Vingança e luta de classes são temas recorrentes na cinematografia sul-coreana. Produções como “Parasita” e “Round 6” revelaram isso. Além do ressentimento estar embutido na cultura pop daquele país, desde o sucesso internacional do videoclipe “Gangnam Style”. Espremida entre as potências China e Japão e com o crescimento econômico que gera um crescente abismo social, a produção cultural coreana reflete este mal-estar. A série Netflix “A Lição” (The Glory, 2022- ) é mais um sintoma disso: é sobre uma mulher que constrói uma vida em torno de um plano de punir e se vingar das pessoas que fizeram bullying contra ela no ensino médio. Inspirado em outro problema crescente no país, decorrente da desigualdade: a violência escolar. Nos 16 episódios acompanhamos planejamento e execução de um plano frio e lento seguindo uma inspiração nietzschiana: porque só existe a glória para além do bem e do mal.
Dois homens sentados à mesa num pequeno apartamento em um bairro miserável de Nova York. Ele salvou um desconhecido que tentava se matar atirando-se de uma plataforma de metrô e o trouxe para sua casa. Como pastor, tentará salvá-lo também com as palavras da Bíblia. O desconhecido é um professor universitário desiludido e, aparentemente, ateu. “The Sunset Limited” (2011), adaptação da peça teatral homônima de Cormac McCarthy, lembra o velho confronto entre Fé e Razão. Mas vai muito mais além disso: aquele professor não é um ateu comum – sua firme posição suicida é o resultado de uma jornada de séculos da destruição do indivíduo na Filosofia ocidental. De repente, Deus é a parte do problema existencial ao lado de noções como “Logos”, “Ideia”, “Razão” – o niilismo desafiador daquele estranho que quer fazer um acerto de contas com toda a inutilidade da Filosofia e da Religião.
Um verdadeiro épico do pavor existencial que sintetiza todas as questões filosóficas de Albert Camus em torno da morte e suicídio em uma simples expressão: “Shits Happens!”. Esse é o filme “Ruído Branco” (White Noise, 2022), intrigante adaptação do cineasta Noah DeLillo ao romance pós-moderno homônimo de 1985. Uma comédia híbrida com acidente ferroviário que produz uma nuvem tóxica que gera uma evacuação em massa de famílias de subúrbios, freiras cínicas e um supermercado que, com suas cores e assepsia, vira um revigorante espiritual em um mundo absurdo e aleatório. Também a angústia pela morte que vira o leitmotiv da crise conjugal na família de um professor que é autoridade mundial em “Hitlerologia”. “Ruído Branco” mostra pessoas tentando esquecer de que todos nós vivemos no limite tênue entre a descoberta do absurdo e a esperança num sentido ou propósito que faça sentir que a vida vale a pena.
Depois de filmes como “Irreversível”, “Enter the Void” e “Climax”, com perturbadoras cenas de violência sexual, extremos afetivos e lisérgicos, dessa vez o diretor franco-argentino Gaspar Noé volta-se para o tema da velhice e decrepitude física e mental em “Vortex” (2021, estreou no MUBI Brasil). Um casal de idosos passa seus dias em um apartamento labiríntico em Paris, cercado de objetos, pôsteres e livros, memórias de um passado de radicalismo político e engajamento intelectual. Aqui, a velhice e a espera da morte são grandes equalizadores existenciais - não importa quem você é ou foi. Sem exceção, todos estão indo na mesma direção. E todos os nossos índices das memórias e realizações serão deixados como testemunhos que deveriam ser duradouros. Mas numa sociedade em que o elo geracional se quebra, esses índices do passado estão condenados a se tornarem tão efêmeros quanto a nossa passagem por esse mundo.
O que há em comum entre Musk, Bezos, Thiel e Zuckerberg? Além da fortuna e dos fundos de investimentos turbinando seus projetos, está o niilismo apocalíptico e a urgência de fugir desse planeta, seja para colônias em Marte ou para Multiversos. Nove em cada dez produções sci-fi atuais está alinhada com a agenda desses super-ricos. E a exceção confirma a regra. Uma das poucas exceções é o filme “Io – O Último na Terra” (Io - Last on Earth, 2019), o filme mais anti-Musk dos últimos tempos. Uma cientista vive solitária na Terra pós-apocalíptica, dominada por uma nuvem tóxica que matou grande parte da humanidade – os sobreviventes migraram para uma estação espacial na lua de Júpiter Io. Seu namorado em Io (ironicamente chamado Elon) tenta convencê-la a embarcar na última nave que partirá da Terra. Porém, entre colmeias de abelhas e obras de arte que pega dos escombros de um museu de Arte Moderna, tenta provar que a vida no planeta é mais resiliente do que imaginamos. E somos os guardiões do renascimento.
Para além dos aspectos econômicos, os reflexos da pandemia e isolamento social no cinema e audiovisual também se apresentam nos picos temáticos dos roteiros: além da “covid exploitation” e do tema da “viagem no tempo”, há uma alta do subgênero “time loop” – personagens tornam-se prisioneiros de um período de tempo que se repete. A produção indie “Palm Springs” (2020) é mais um loop temporal entre as produções desse período: um protagonista preso desde sempre no dia de uma festa de casamento. Ele mal se recorda da vida anterior e está adaptado ao seu destino vivendo todos os prazeres que uma vida amoral e hedonista pode proporcionar. Até uma das convidadas cair sem querer em seu loop, quebrando a sua confortável rotina. Por que tantos loops no cinema e audiovisual em 2020? Será um “déjà-vu” dos espectadores na pandemia? Ou seria também um sintoma do chamado “presente extenso”, consequência das nossas vidas agora hipermediadas por dispositivos tecnológicos?
Enquanto o Ocidente absorve religiões orientais pela sua fluidez e exotismo, o Oriente se inspira no esoterismo ocidental. Principalmente a vertente gnóstica na cultura pop japonesa através de mangás e animes. Até chegar aos vídeos, como a série Netflix “Alice in Borderland” (2020-) adaptada do mangá de Haro Aso “Imawa no Kuni no Alice”. Três jovens saem de uma estação de metrô de Tóquio e descobrem que estão num mundo paralelo onde a capital japonesa está deserta e às escuras. Apenas acendem painéis de led exortando a participarem de games repletos de charadas e paradoxos: se não zerar o jogo dentro do tempo, o castigo é a morte. A gameficação da jornada interior do herói se mistura com os mitos gnósticos do Demiurgo, da Alma Decaída e do Divino Feminino.
O ano é 1986. Cidade-satélite de Ceilândia. Uma violenta repressão policial em um baile funk resulta em dois jovens negros com sérias sequelas: um, na cadeira de rodas; e o outro, andando com ajuda de uma prótese. Baseado nesse fato real, o filme “Branco Sai, Preto Fica” (2014), do documentarista Adirley Queirós, constrói uma curiosa ficção científica (gênero rarefeito no cinema brasileiro) “hipo-utópica”: o futuro não existe nem mesmo como distopia, sendo uma mera projeção hiperbólica do presente dos protagonistas – um apartheid racial e social em volta de uma Brasília sitiada. De um futuro que parece o Brasil atual, vem um “agente terceirizado do Estado brasileiro” investigar os responsáveis pela tragédia de 1986. A mistura de gêneros documentário e sci-fi é proposital: mostrar como no “País do Futuro”, passado, presente e futuro se estendem num estranho eterno presente. Sem existir o amanhã.
“Irreversível” (Irréversible, 2002) é brutal e cruel. Assim como o Tempo, no qual todo momento de felicidade depende de uma linha tênue que é corroída pela entropia na medida em que avançamos para o futuro. O diretor franco-argentino Gaspar Noé nos mostra como a vida seria insuportável sem a inocência da nossa ignorância sobre o Tempo – uma estória contada em ordem cronológica invertida: começamos pelas cenas brutais e selvagens para recuarmos para as cenas calorosas e divertidas de um casal apaixonado cujas vidas estão prestes a ser alteradas para sempre. Gaspar Noé desconstrói tanto o tempo da narrativa cinematográfica (que nos deixa desarmados diante das sequenciais iniciais), quanto a nossa inocência diante do Tempo: a ilusão do livre-arbítrio diante do Tempo que tudo destrói.
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo? |
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros. |
Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes d...
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos. |
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo. |
"Cinegnose" Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo. >>> Leia mais>>>
![]() "O Caos Semiótico" Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>> |