Surreal, enigmático e bizarro. Mais do que uma homenagem ao Cinema, “Holy Motors” (2012) do diretor francês Leos Carax expressa incertezas e temores diante da ruptura digital que se impõe a uma mídia cuja essência é mito e magia. O medo da obsolescência do “Motor Sagrado” (o dispositivo cinematográfico) substituído por mundos virtuais onde tanto os espectadores como diretores poderão ser qualquer coisa, até esquecerem o que já foram um dia.
Definitivamente o diretor,
crítico e escritor francês Leos Carax (“Les Amants Du Pont-Neuf”, 1991; “Pola X”, 1999; “Tokyo”, 2008) não mantém uma
boa relação com a produção cinematográfica e o futuro digital do Cinema. Quando
sua última produção, “Holy Motors”, foi exibida este ano no Festival de Cannes
o ator Denis Lavant (que interpreta o protagonista Mr. Oscar) afirmou que o filme era “uma declaração poética do amor sobre a espécie
humana”. Prontamente, Carax se opõe: “Não é nada disso, mas tudo bem!”. “Mas
você não explica suas intenções narrativas aos atores antes de filmar?”,
perguntou um jornalista em Cannes. “Eu nunca trabalho com pessoas que
necessitem disso. Eu não trabalho com pessoas que me façam perguntas. Esse é o
problema de eu estar falando com você”, responde Carax de forma corrosiva ao
jornalista. (veja “Holy
Motors: the weird world of Leos Carax”
in: The Guardian 27/09/2012).
Muitos críticos especulam que o
enigmático “Holy Motors” é uma exuberante homenagem ao Cinema que ele tanto
ama, desde os tempos quando escrevia crítica cinematográfica. De fato, é um filme
sobre cinema, uma grande metalinguagem que faz lembrar “Império dos Sonhos”
(Inland Empire, 2006) de David Lynch. Porém, “Holy Motors” está muito mais para
um réquiem do que uma homenagem ao Cinema. Carax nos fala sobre os destinos do
Cinema na era digital e da Internet, da ameaça da obsolescência do dispositivo
cinematográfico, o “motor sagrado” do título.
Denis Lavant faz Mr. Oscar, um
camaleônico ator que viaja no interior de uma limusine pela cidade de Paris
dirigida por uma melancólica motorista Céline (Edith Scob). O filme inicia com
Mr. Oscar (um homem aparentemente rico) saindo para mais um dia de trabalho.
Pelo intercomunicador a motorista diz que uma pasta ao seu lado no interior da
limusine contém o arquivo com os “encontros” do dia. Esses “encontros” em
vários pontos de Paris na verdade são personagens que Oscar irá performar: uma
velha pedinte de rua corcunda, um sátiro lascivo (o “Sr. Merde”, personagem
resgatado do filme anterior “Tokyo”), um homem moribundo em uma cama, um
terrorista que tenta matar um banqueiro, um assassino de aluguel, um artista
com sensores de captura de movimentos simulando lutas e um ato sexual para a
produção de efeitos digitais 3D etc.
São “encontros” surreais
conduzidos por uma limusine que se transforma em camarim para Mr. Oscar se
transfigurar em múltiplos personagens com elaboradas máscaras de látex, perucas
e figurinos. Qual o propósito desses encontros? Por que seguranças o
acompanham? O que é a “Central”, uma suposta empresa a qual eles têm que se
reportar? Qual a natureza do trabalho de Mr. Oscar?
O filme começa com uma aparição do próprio
diretor do filme em que, tal qual Alice de Lewis Carrol caindo por um buraco
que a levará a uma existência paralela, Carax abre uma passagem em uma parede
que o conduzirá a uma sala de Cinema cujo filme projetado é o que começamos a
assistir. Pura metalinguagem: a partir daí assistimos à decomposição de um ator
através de uma galeria de personagens designados pela “Central” que ele deve
representar.
O filme torna-se uma parábola
das relações humanas e do Cinema com a era da Internet. Principalmente sobre o
problema da identidade, tanto de um quanto de outro: em primeiro lugar, o fato
de estarmos cansados de nós mesmos e as redes virtuais serem o espaço ideal
para vivenciarmos de forma esquizoide múltiplos personagens; e o Cinema
metalinguisticamente mostrado em “Holy Motors” como um mecanismo ameaçado pela
obsolescência e pelo tédio (“ninguém mais liga para motores hoje em dia”,
lamenta uma linha de diálogo próximo ao final) da plateia (representada como
espectadores sem rostos no filme) como do próprio ator cansado de performar
tantos personagens que poderiam facilmente ser substituídos por capturas
digitais - como sugere a certa altura.
A identidade no mundo virtual
“Suponho que esteja tentado
descrever a experiência de vivermos no mundo da Internet. As diferentes vidas
que podemos experimentar. A fadiga de sermos nós mesmos. Todos se cansam de vez
em quando. Então, queremos nos reinventar. Mas como fazer isso e com qual custo?”,
explica Leos Carax. A limusine que circula por Parece ser o centro de tudo:
espelho para camarins e diversas telas com as quais Mr. Oscar se comunica com a
motorista e a “Central”.
A narrativa lembra muito o problema da
identidade no pós-moderno proposto por Stuart Hall definida por ele como uma
“celebração móvel”: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Os sucessivos sistemas
culturais (moda, música, redes sócias etc.) passam a criar scripts que nos
interpelam a interpretar, resultando numa identidade não mais fixa, essencial
ou permanente (Veja HALL, Stuart. Identidade Cultural na Pós-Modernidade, 1992).
Porém,
Carax faz uma curiosa inversão: tanto Céline como Mr. Oscar só conseguem serem
eles mesmos dentro do veículo em movimento. No interior da limusine eles
expressam suas decepções, angústias, cansaço e até riem no único momento em que
se permitem apresentar algum senso de humor e descontração. Somente quando o
veículo estaciona, Mr. Oscar sai para performar mais um personagem.
Esta
inversão lembra o paradoxo descrito por outro francês, Paul Virilio, sobre o
paradoxo das tecnologias de comunicação e informação atuais se configurarem
como “veículos estáticos”. O urbanista e pensador francês fala de uma “filosofia
da interface” que dominaria as tecnologias e nosso relacionamento com o mundo.
“Doravante, tudo acontece sem que seja necessário partir. À chegada restrita dos veículos dinâmicos, móveis e depois automóveis, sucede bruscamente a chegada generalizada das imagens e dos sons, nos veículos estáticos dos audiovisuais. A inércia polar começa. A interface instantânea toma o lugar dos Intervalos de tempo das mais longas durações da deslocação. Após o advento, no século XIX, da distância/tempo em detrimento da distância espacial, é agora o advento da distância/velocidade das imagens eletrônicas: a imobilização da imagem sucede ao estacionamento contínuo” (VIRILIO, Paul. A Inércia Polar, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993, p. 38).
Enquanto nossa percepção é acelerada
através das telas pelo sentido principalmente visual, nosso corpo permanece
inerte. Através da tela podemos experimentar avatares, mútiplos perfis e
fantasias idealizadas de nós mesmos. Em “Holy Motors” Céline e Mr. Oscar são
mais autênticos em movimento do que parados, quando negam a interface
instantânea e expressam-se um ao outro enquanto experimentam um deslocamento
real por Paris. Nos aproximamos de quem realmente somos quando flanamos (o conceito de “flâneur” como
aquele que observa o mundo de forma real e descritiva enquanto se desloca), e
não quando estacionamos.
Nem mesmo quando o dia de
trabalho termina e as limusines estacionam na garagem da “Central” Céline e Mr.
Oscar voltam à realidade: ela coloca uma máscara e ele performa um novo
personagem em um novo lar.
O “Motor Sagrado”
Os vários sketchs de “Holy
Motors” não são apenas um desfile pelos diversos gêneros que marcaram a história
cinematográfica, mas refletem a própria relação pessoal de Carax com o futuro do
Cinema. E essa relação é desconfiança com a ruptura do continuum do cinema pela
tecnologia, a perda do “poder primitivo do cinema”: “O problema é encontrar
novamente o poder primitivo do cinema, como
foi a primeira imagem do trem em La Ciotat. É cada vez mais difícil de se fazer
hoje. Você tem que reinventar esse poder, que é quase um poder místico, um
poder mágico. Eles tiveram que fazer isso quando o som veio. Eles tiveram que
fazer uma e outra vez, mas desta vez vai ser mais difícil porque o cinema
digital é, na verdade, o cinema de uma outra forma.” (“Director
Leos Carax on Holy Motors” in: Filmmaker Magazine).
A certa altura do filme
lamenta-se que “ninguém mais se interessa por motores hoje em dia”. Uma
metáfora para lamentar o fim do dispositivo cinematográfico baseado em um
paradigma mecânico onde uma película em movimento capturava a luz refletida por
objetos reais. A magia de capturar o real por meio de um dispositivo
ótico-mecânico.
O cinema digital inverte tudo:
não se trata mais de capturar o real, mas superá-lo ao ponto de que o suporte
(a película) e o objeto (atores) desaparecem. Tal como o personagem com sensores
de captura digital no corpo, os movimentos humanos são sintetizados para serem
desdobrados ao infinito em software 3D.
O tema de “Holy Motors” é o
temor de Carax pela obsolescência da “Máquina Sagrada”, substituída por mundos
virtuais onde podemos ser qualquer coisa até esquecermos o que já fomos um dia.
Ficha Técnica
- Título: Holy Motors
- Diretor: Leos Carax
- Roteiro: Leos Carax
- Elenco: Denis Lavant, Edith Scob, Eva Mendes, Kylie Minogue
- Produção: Pierre Grise Productions, Théo Films, Pandora Filmproduktion
- Distribuição: Imovision (Brasil)
- País: França/Alemanha
- Ano: 2012