terça-feira, dezembro 11, 2012

Réquiem ao cinema e a identidade em "Holy Motors"

Surreal, enigmático e bizarro. Mais do que uma homenagem ao Cinema, “Holy Motors” (2012) do diretor francês Leos Carax expressa incertezas e temores diante da ruptura digital que se impõe a uma mídia cuja essência é mito e magia. O medo da obsolescência do “Motor Sagrado” (o dispositivo cinematográfico) substituído por mundos virtuais onde tanto os espectadores como diretores poderão ser qualquer coisa, até esquecerem o que já foram um dia.

Definitivamente o diretor, crítico e escritor francês Leos Carax (“Les Amants Du Pont-Neuf”, 1991;  “Pola X”, 1999; “Tokyo”, 2008) não mantém uma boa relação com a produção cinematográfica e o futuro digital do Cinema. Quando sua última produção, “Holy Motors”, foi exibida este ano no Festival de Cannes o ator Denis Lavant (que interpreta o protagonista Mr. Oscar) afirmou que o filme era “uma declaração poética do amor sobre a espécie humana”. Prontamente, Carax se opõe: “Não é nada disso, mas tudo bem!”. “Mas você não explica suas intenções narrativas aos atores antes de filmar?”, perguntou um jornalista em Cannes. “Eu nunca trabalho com pessoas que necessitem disso. Eu não trabalho com pessoas que me façam perguntas. Esse é o problema de eu estar falando com você”, responde Carax de forma corrosiva ao jornalista. (veja “Holy Motors: the weird world of Leos Carax in: The Guardian 27/09/2012).

Muitos críticos especulam que o enigmático “Holy Motors” é uma exuberante homenagem ao Cinema que ele tanto ama, desde os tempos quando escrevia crítica cinematográfica. De fato, é um filme sobre cinema, uma grande metalinguagem que faz lembrar “Império dos Sonhos” (Inland Empire, 2006) de David Lynch. Porém, “Holy Motors” está muito mais para um réquiem do que uma homenagem ao Cinema. Carax nos fala sobre os destinos do Cinema na era digital e da Internet, da ameaça da obsolescência do dispositivo cinematográfico, o “motor sagrado” do título.

Denis Lavant faz Mr. Oscar, um camaleônico ator que viaja no interior de uma limusine pela cidade de Paris dirigida por uma melancólica motorista Céline (Edith Scob). O filme inicia com Mr. Oscar (um homem aparentemente rico) saindo para mais um dia de trabalho. Pelo intercomunicador a motorista diz que uma pasta ao seu lado no interior da limusine contém o arquivo com os “encontros” do dia. Esses “encontros” em vários pontos de Paris na verdade são personagens que Oscar irá performar: uma velha pedinte de rua corcunda, um sátiro lascivo (o “Sr. Merde”, personagem resgatado do filme anterior “Tokyo”), um homem moribundo em uma cama, um terrorista que tenta matar um banqueiro, um assassino de aluguel, um artista com sensores de captura de movimentos simulando lutas e um ato sexual para a produção de efeitos digitais 3D etc.

São “encontros” surreais conduzidos por uma limusine que se transforma em camarim para Mr. Oscar se transfigurar em múltiplos personagens com elaboradas máscaras de látex, perucas e figurinos. Qual o propósito desses encontros? Por que seguranças o acompanham? O que é a “Central”, uma suposta empresa a qual eles têm que se reportar? Qual a natureza do trabalho de Mr. Oscar?

 O filme começa com uma aparição do próprio diretor do filme em que, tal qual Alice de Lewis Carrol caindo por um buraco que a levará a uma existência paralela, Carax abre uma passagem em uma parede que o conduzirá a uma sala de Cinema cujo filme projetado é o que começamos a assistir. Pura metalinguagem: a partir daí assistimos à decomposição de um ator através de uma galeria de personagens designados pela “Central” que ele deve representar.

O filme torna-se uma parábola das relações humanas e do Cinema com a era da Internet. Principalmente sobre o problema da identidade, tanto de um quanto de outro: em primeiro lugar, o fato de estarmos cansados de nós mesmos e as redes virtuais serem o espaço ideal para vivenciarmos de forma esquizoide múltiplos personagens; e o Cinema metalinguisticamente mostrado em “Holy Motors” como um mecanismo ameaçado pela obsolescência e pelo tédio (“ninguém mais liga para motores hoje em dia”, lamenta uma linha de diálogo próximo ao final) da plateia (representada como espectadores sem rostos no filme) como do próprio ator cansado de performar tantos personagens que poderiam facilmente ser substituídos por capturas digitais - como sugere a certa altura.

A identidade no mundo virtual


“Suponho que esteja tentado descrever a experiência de vivermos no mundo da Internet. As diferentes vidas que podemos experimentar. A fadiga de sermos nós mesmos. Todos se cansam de vez em quando. Então, queremos nos reinventar. Mas como fazer isso e com qual custo?”, explica Leos Carax. A limusine que circula por Parece ser o centro de tudo: espelho para camarins e diversas telas com as quais Mr. Oscar se comunica com a motorista e a “Central”.

A narrativa lembra muito o problema da identidade no pós-moderno proposto por Stuart Hall definida por ele como uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Os sucessivos sistemas culturais (moda, música, redes sócias etc.) passam a criar scripts que nos interpelam a interpretar, resultando numa identidade não mais fixa, essencial ou permanente (Veja HALL, Stuart. Identidade Cultural na Pós-Modernidade, 1992).

Porém, Carax faz uma curiosa inversão: tanto Céline como Mr. Oscar só conseguem serem eles mesmos dentro do veículo em movimento. No interior da limusine eles expressam suas decepções, angústias, cansaço e até riem no único momento em que se permitem apresentar algum senso de humor e descontração. Somente quando o veículo estaciona, Mr. Oscar sai para performar mais um personagem.

Esta inversão lembra o paradoxo descrito por outro francês, Paul Virilio, sobre o paradoxo das tecnologias de comunicação e informação atuais se configurarem como “veículos estáticos”. O urbanista e pensador francês fala de uma “filosofia da interface” que dominaria as tecnologias e nosso relacionamento com o mundo.
“Doravante, tudo acontece sem que seja necessário partir. À chegada restrita dos veículos dinâmicos, móveis e depois automóveis, sucede bruscamente a chegada generalizada das imagens e dos sons, nos veículos estáticos dos audiovisuais. A inércia polar começa. A interface instantânea toma o lugar dos Intervalos de tempo das mais longas durações da deslocação. Após o advento, no século XIX, da distância/tempo em detrimento da distância espacial, é agora o advento da distância/velocidade das imagens eletrônicas: a imobilização da imagem sucede ao estacionamento contínuo” (VIRILIO, Paul. A Inércia Polar, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993, p. 38).

Enquanto nossa percepção é acelerada através das telas pelo sentido principalmente visual, nosso corpo permanece inerte. Através da tela podemos experimentar avatares, mútiplos perfis e fantasias idealizadas de nós mesmos. Em “Holy Motors” Céline e Mr. Oscar são mais autênticos em movimento do que parados, quando negam a interface instantânea e expressam-se um ao outro enquanto experimentam um deslocamento real por Paris. Nos aproximamos de quem realmente somos quando flanamos (o conceito de “flâneur” como aquele que observa o mundo de forma real e descritiva enquanto se desloca), e não quando estacionamos.

Nem mesmo quando o dia de trabalho termina e as limusines estacionam na garagem da “Central” Céline e Mr. Oscar voltam à realidade: ela coloca uma máscara e ele performa um novo personagem em um novo lar.

O “Motor Sagrado”

Os vários sketchs de “Holy Motors” não são apenas um desfile pelos diversos gêneros que marcaram a história cinematográfica, mas refletem a própria relação pessoal de Carax com o futuro do Cinema. E essa relação é desconfiança com a ruptura do continuum do cinema pela tecnologia, a perda do “poder primitivo do cinema”: “O problema é encontrar novamente o poder primitivo do cinema,  como foi a primeira imagem do trem em La Ciotat. É cada vez mais difícil de se fazer hoje. Você tem que reinventar esse poder, que é quase um poder místico, um poder mágico. Eles tiveram que fazer isso quando o som veio. Eles tiveram que fazer uma e outra vez, mas desta vez vai ser mais difícil porque o cinema digital é, na verdade, o cinema de uma outra forma.” (“Director Leos Carax on Holy Motors” in: Filmmaker Magazine).  

A certa altura do filme lamenta-se que “ninguém mais se interessa por motores hoje em dia”. Uma metáfora para lamentar o fim do dispositivo cinematográfico baseado em um paradigma mecânico onde uma película em movimento capturava a luz refletida por objetos reais. A magia de capturar o real por meio de um dispositivo ótico-mecânico.

O cinema digital inverte tudo: não se trata mais de capturar o real, mas superá-lo ao ponto de que o suporte (a película) e o objeto (atores) desaparecem. Tal como o personagem com sensores de captura digital no corpo, os movimentos humanos são sintetizados para serem desdobrados ao infinito em software 3D.

O tema de “Holy Motors” é o temor de Carax pela obsolescência da “Máquina Sagrada”, substituída por mundos virtuais onde podemos ser qualquer coisa até esquecermos o que já fomos um dia.

Ficha Técnica

  • Título: Holy Motors
  • Diretor: Leos Carax
  • Roteiro: Leos Carax
  • Elenco: Denis Lavant, Edith Scob, Eva Mendes, Kylie Minogue
  • Produção: Pierre Grise Productions, Théo Films, Pandora Filmproduktion
  • Distribuição: Imovision (Brasil)
  • País: França/Alemanha
  • Ano: 2012




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