Desde “Corra!”, de Jordan Peele, o terror racial tornou-se um subgênero que vem chamando a atenção: série "Them", "Barbarian", "Us", "Clonaram Tyrone!" etc. Mas essa junção entre o racismo, o sobrenatural e o fantástico vai além dos limites, de quebra renovando a mitologia dos vampiros. Estamos falando do filme “Pecadores” (‘Sinners”, 2025), de Ryan Coogler (Creed, Pantera Negra). Dois irmãos gêmeos voltam financeiramente bem-sucedidos do submundo de Chicago, para sua cidade natal no Delta do Mississipi no início dos anos 1930. Dispostos a inaugurar uma casa noturna de Blues. Mas enfrentarão um mal ainda maior do que deixaram para trás: vampiros ancestrais brancos sedentos por uma música que apaga as fronteiras entre a vida e a morte. Enquanto Coogler renova a mitologia vampiresca, empilha clichês brancos sobre o Blues, como, por ex., supostos pactos diabólicos por trás dos bluesmen. Para reduzir a questão do racismo uma questão de viés cultural: a ignorância e teimosia de pessoas que ainda não perceberam que os tempos mudaram.
O que você faz se o Mal beijar a esposa melhor que o marido? Certamente serão colocados em xeque toda racionalidade científica, a moralidade e a religião. Pode parecer grosseiro e simplista, mas este parece ser o argumento central de “Nosferatu” (2024), refilmagem do cineasta Robert Eggers (“A Bruxa”, “O Farol”) do clássico mudo “Nosferatu – Uma Sinfonia do Horror”, de 1922. Ao contrário do original, Eggers vai além de um conto sobre um vampiro: mais do que entidade das trevas, Nosferatu é o Mal puro capaz de distorcer a própria realidade. “Nosferatu” concentra-se no erotismo macabro e numa sexualidade melancólica e crepuscular que vai “além dos oceanos do tempo”. A representação ontológica do Mal e sua perturbadora conexão com o Erótico, o Orgasmo e a Morte - o erotismo como a afirmação da vida que se estende até a morte.
Enquanto o filme anterior tomava o transtorno mental em veículo para uma entidade sobrenatural parasitária que vive da energia dos traumas, em “Sorria 2” (Smile 2, 2024) o Mal encontra a sua melhor performance na cultura das celebridades influencers, mais precisamente através do veículo dos traumas psíquicos de uma cantora pop. Ela está tentando retornar depois do inferno de drogas e depressão – o roteiro clássico fama. Mas não temos mais o Mal e nem a cultura da celebridade do século XX, mas o Mal viral, infeccioso e exponencial. Assim como os memes nas redes sociais. O Mal não precisa mais ser convidado para entrar, ele simplesmente infecta.
A série Netflix “Ripley” (2024) é bem fiel ao clássico da literatura policial de Patricia Highsmith, de 1955. Ao contrário da linda e fotogênica adaptação de 1999 com Matt Damon interpretando o trambiqueiro Ripley, a série liberta-se da representação hollywoodiana da maldade: ao contrário do vilão passional, quente e emocional, temos em “Ripley” o mal neutro, melancólico, apático, estoico, muito longe da loucura ou obsessão. Drenado de cor e emoção humana, reforçado pela belíssima fotografia em preto e branco. A história de Ripley, que vai até a Itália roubar a vida e identidade de um jovem herdeiro bilionário norte-americano, é narrada muito mais como um jogo: quanto mais Ripley percebe como bilionários simulam aquilo que não são, mais ele é provocado a provar que é mais esperto do que todos. Ironicamente, as mentiras de Ripley são a única coisa real num mundo de simulações e aparências.
Oscar de Melhor Filme Internacional, “Zona de Interesse” (The Zone of Interest, 2023) se diferencia de todas outras produções premiadas sobre o nazismo e o Holocausto como A Vida é Bela, O Pianista, O Filho de Saul etc. Vai além da época que pretende retratar. E a fala do diretor Jonathan Glazer na cerimônia do Oscar foi totalmente coerente com o seu filme: “Todas as nossas escolhas foram feitas para refletir e nos confrontar no presente. Não para dizer ‘olhe o que fizeram na época’, mas para olhar o que fazemos agora”, criticando o genocídio de Israel em Gaza. A família de um oficial da SS vive uma vida bucólica e pastoral, indiferentes ao que ocorre do outro lado do muro da propriedade: o genocídio de Auschwitz. A poucos metros do Holocausto, acompanhamos uma típica vida de classe média de comerciais de margarina na TV. Glazer tem um conceito radical: e se a banalidade do mal se transformou em uma “banalidade do bem” na sociedade de consumo pós-guerra?
Como um título em português pode estragar a exata compreensão de um filme! É o caso da produção argentina “Cuando Acecha la Maldad” (2023), de Demián Rugna (“Aterrorizados”), que mereceu em português o título “O Mal que Nos Habita”. Rugna impacta com sua brutalidade anárquica. Principalmente porque rompe com tabus e o cânone do gênero da representação do Mal e da monstruosidade. No filme, o Mal não é mais moral, punindo pecadores de forma exemplar. Mas ontológico, gnóstico. Uma combinação visceral de possessão demoníaca como fenômeno viral e epidemiológico num lugar remoto no interior da Argentina. Ele não nos habita, mas nos cerca e nos espreita. O Mal está na Criação, não em nós. O filme leva essa ideia a uma poderosa metáfora política da Argentina atual.
Para defender os “patriotas” presos pelas depredações em Brasília, o médium kardecista Divaldo Franco chegou a lançar mão da célebre frase do ativista Martin Luther King sobre “os gritos dos maus” e o “silêncio dos bons” diante das “coisas feitas pelos poderosos”. Mas quem são os “bons” e os “maus”? Essas noções tornaram-se ambíguas e reversíveis porque ainda são pensadas no campo do julgamento moral. A ponto de um “espírita reaça” se apropriar do pensamento de um ativista dos direitos civis. Como desambiguar essas noções e transformá-las em categorias sócio-psicológicas objetivas? Um caminho é através da Teoria da Estupidez do teólogo Dietrich Bonhoeffer e da teoria do “viés da auto-seleção” do cientista político Brian Klass: por que as pessoas erradas são sempre atraídas pelo poder, assim como as mariposas pela luz?
Este humilde blogueiro adora escrever e falar sobre filmes porque eles não são meros produtos de entretenimento. São verdadeiros sismógrafos que detectam as mudanças do imaginário e sensibilidades de cada época. O terror indie “Noites Brutais” (Barbarian, 2022) é um quebra-cabeças irônico que, de um lado, ambienta-se em dois aspectos da globalização: uma Detroit desindustrializada e a nossa confiança cega em plataformas digitais como Airbnb ou Uber. E do outro, a transformação da matriz do terror com o subgênero “terror de gênero” ou “woke exploitation” no qual o Mal emerge agora da masculinidade tóxica. Tess e Keith são vítimas possivelmente de um golpe de reserva dupla de uma casa pelo Airbnb em um decadente e quase apocalíptico bairro periférico de Detroit. Lá descobrirão da pior maneira possível que a casa não é aquilo que parecer ser.
O filme “O Enfermeiro da Noite” (The Good Nurse, 2022) é mais um filme de uma recorrente abordagem no cinema do Mal como viral e exponencial. Não pela monstruosidade do Mal, mas como efeito colateral de um sistema intrinsecamente corrompido. No caso, o sistema hospitalar dos EUA, visto pelo olhar de um diretor que veio de um país (Dinamarca) com assistência médica púbica e a saúde universalizada: ao contrário, nos EUA a saúde tornou-se um negócio centrado em ter pacientes, não em ajudá-los. Contando com o silêncio de um sistema privado temeroso por ações judiciais, um enfermeiro serial killer deixa um rastro de dezenas de pacientes mortos por envenenamento em diversos hospitais nos quais trabalhou. Baseado no caso real do assassino serial considerado o mais mortal da história do país.
No terror “Sorria” (Smile, 2022) há duas linhas de diálogo que são chaves de compreensão do filme: ““Faça uma cara feliz. Você fica mais bonita quando sorri” e na cena clássica da protagonista diante do monstro: “por que você está fazendo isso comigo?” “Porque sua mente é tão convidativa!”, responde a entidade com um sorriso psicótico. Dessa maneira, “Sorria” incorpora as origens antropológica ambíguas do riso: de um lado como inversão e desestabilização diante da positividade hipócrita da sociedade; e do outro, as origens sardônicas do riso na violência e crueldade: o riso como fenômeno demoníaco. Mas numa sociedade mediada pela Internet e redes sociais, o riso maligno só pode ser infeccioso e viral, cuja força está no trauma, culpa e ressentimento.
Discursos sobre a superioridade moral do Bem nos cercam. As ideias de progresso, Democracia, positividade, racionalidade etc. criam uma sociedade asséptica, profilática, no qual a morte e a violência foram embranquecidas. Tornando-nos impotentes e vulneráveis à presença do Mal. O Mal existe porque o permitimos, ao nega-lo, seja no campo do micro-orgânico ao macropolítico. Esse é o subtexto do filme dinamarquês “Speak No Evil” (2022): uma família de classe média alta dinamarquesa, culta, polida e politicamente correta, aceita o convite de uma família holandesa que conheceu nas férias. O que poderia dar errado num idílico final de semana numa casa rural? Tudo! Quanto mais educados tentam ser diante de anfitriões que se tornam cada vez mais desagradáveis e manipuladores, mais o Mal começa a se impor. Revelando como nossa sociedade asséptica gera a própria virulência, impotente diante da presença do Mal.
Nada de bom pode vir de uma inteligência artificial. Pelo menos no cinema, desde que HAL 9000 decidiu matar a tripulação de uma nave no clássico “2001” de Kubrick. À primeira vista, um filme com o título “Dark Cloud” (2022), sobre uma paciente num tratamento terapêutico pioneiro em uma casa remota totalmente controlada por uma IA, já sugere ao espectador que as coisas também não vão acabar muito bem. Porém, “Dark Cloud” vai muito além do confronto máquina versus humanidade. Se no passado a IA tentava emular a inteligência humana revelando ser maligna pelo fato de não possuir alma, no pós-humanismo o Mal é de natureza “patafísica”: justamente por ser tão complexa, eficiente e precisa, ironicamente uma IA pode se voltar contra a própria finalidade para a qual foi construída – a Teoria dos Sistemas de Varela e Luhumann e o Teorema da Incompletude de Gödel talvez expliquem essa cilada lógica de todo sistema tecnológico.
Se em “Não Olhe Para Cima” a humanidade, fechada nas bolhas virtuais das mídias sociais, ficava indiferente a um asteroide em rota de colisão com a Terra, no terror sci-fi “The Seed” (2021) influenciadoras digitais veem num alien que cai do céu apenas um conteúdo para aumentar engajamento e monetização nas redes sociais. Três amigas vão passar o final de semana regado a bebidas e drogas em um rancho no meio do deserto do Mojave para assistir a uma rara chuva de meteoros. Mas o que até então era uma comédia de terror leve sobre adolescentes ricas e insípidas em férias de verão, de repente se transforma em uma mistura de alucinação alienígena erótica e horror corporal ao melhor estilo do horror cósmico do escritor gótico norte-americano HP Lovecraft.
Desde “Deixe Ela Entrar” (2008) as produções audiovisuais escandinavas têm como característica inovações inusitadas em gêneros que sempre foram marcados pelos clichês hollywoodianos. Um deles é a da mitologia do vampiro. Na série “Post Mortem: Ninguém Morre em Skarnes” (2021- ) não há vampiros que fogem de cruzes ou réstias de alho, e andam normalmente à luz do dia. E muito menos, pescoços mordidos em série – para desespero de uma agência funerária local em crise financeira. Na série os vampiros não seduzem adolescentes como em “Crepúsculo”, e não são nem encarnações ou representações do Mal. É apenas uma incômoda herança (assim como as dívidas da agência funerária) com a qual deve-se conviver através de medidas práticas. É a marca da cineteratologia (as representações da monstruosidade e do Mal no cinema) atual: ética e moralmente neutros, seres que apenas lutam para sobreviver.
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo? |
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros. |
Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes d...
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos. |
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo. |
"Cinegnose" Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo. >>> Leia mais>>>
![]() "O Caos Semiótico" Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>> |