Uma época em que o cinema não era apenas entretenimento, mas um acontecimento capaz de transformar vidas. Do início do cinema lembramos principalmente dos Irmãos Lumière e de Meliés. Mas poucos pesquisadores dão espaço para relatos sobre uma produção cinematográfica norte-americana do começo do século XX que tematizava os conflitos capital-trabalho, o sindicalismo e a dura vida de imigrantes e trabalhadores em fábricas e minas. O maravilhamento do primeiro público do cinema formado pelos estratos inferiores da sociedade ao se ver representado na tela transformava as primeiras salas de cinema em eletrizantes acontecimentos de participação e interatividade. Logo esses verdadeiros filmes-acontecimentos foram reprimidos e enquadrados por Hollywood e, a partir de 1924, considerados "anti-americanos" (comunistas) pelo Bureau of Investigation de Edgar Hoover. Desses primeiros tempos ficou o desejo da ruptura da ordem e da rotina que nos acompanha a cada ida ao cinema, o anseio pelo Acontecimento.
Para a maioria
dos espectadores, ir ao cinema não é uma atividade que esteja associada ao
perigo e comportamentos transgressivos. Tido como um local onde fantasias podem
ser vividas e tudo pode acontecer em um universo ficional, está mais comumente
associado ao entretenimento ou, no mínimo, a uma fuga dos problemas ou do
esquecimento momentâneo dos aborrecimentos do dia-a-dia.
Mas nem sempre
foi assim ou, talvez, nunca tenha sido. De um lado há uma história descrita por
pesquisadores que localiza no chamado primeiro cinema um tipo de experiência
estética que não se resumia unicamente a uma forma de entretenimento: pelo
contrário, era uma forma de experiência que poderia transformar vidas; de
outro, pesquisas críticas que descrevem o cinema e a própria experiência
estética como uma arena de tumulto e contenção, quebras e retornos à ordem,
crítica e reação. Para esses pesquisadores, desde o primeiro cinema e a
posterior industrialização, enquadramento e controle, o cinema traria ainda
dentro de si a potencialidade em transcender a si mesmo, mudar vidas de
espectadores, transformar a experiência estética em um acontecimento.
Audiência como parte do show
Em uma
perspectiva político-ideológica Steven Ross em seu livro “Working Class
Hollywood”[1]
descreve como a produção cinematográfica exibida desde os primeiros
nickelodeons em 1905 até o princípio da década de 1920 representou os crescentes
conflitos entre capital e trabalho, greves, a precarização do trabalho e o
sindicalismo. Antes de Hollywood descobrir as narrativas baseadas em fantasias
que transcendiam as classes sociais (“cross-class fantasies”), diversos
pequenos estúdios concentravam seus filmes em melodramas inspirados no
cotidiano de trabalhadores e imigrantes.
Ross descreve o
maravilhamento de um público formado pelos estratos inferiores da sociedade (o
primeiro público do cinema) ao ver suas vidas, problemas urbanos e trabalhistas
representado em narrativas visuais nas telas. Cineastas e produtoras como
American Mutuoscope e American Biograph realizavam em 1910 inúmeros filmes com
diversos aspectos da vida das classes trabalhadoras que formava um arco que se
estendia dos inócuos romances, melodramas e comédias, passando por temas
focados em problemas sociais, trabalhistas e sindicais nas relações
capital-trabalho até chegar nos filmes explicitamente ideológicos e de
confronto focando os violentos choques (greves e repressão policial) entre
empregadores e empregados.
“Transforme o seu
níquel em uma arma”, afirmavam muitos cineastas que apoiavam causas
socialistas, referindo-se ao preço acessível dos ingressos nos nickelodeons e a
oportunidade conscientização política que esses filmes suscitavam. Mais que os
jornais, o cinema era realista, compreensível, conveniente, barato e,
principalmente, participativo e divertido: a experiência de participação do
público durante a exibição dos filmes com aplausos, vaias ou comentários
tornou-se uma importante parte do show.
Como afirma Ross,
os relatos da participação e interação das audiências e a variedade ideológica
do conteúdo das narrativas dessa era inicial do cinema que transformava o campo
do entretenimento em uma verdadeira arena de batalha acabou contrariando os
teóricos da Escola de Frankfurt sobre a indústria cultural e a passividade das
massas.
As exaustivas
descrições e documentações de Ross sobre esse período inicial do cinema
norte-americano demonstram como as primeiras salas de projeções tornavam-se
verdadeiros acontecimentos: de um
lado, o cinema era encarado pelo seu público como um remédio rápido para a dor
e tédio do trabalho diário por meio do esquecimento ou como oportunidade única
que permitia deixar a fantasia assumir o comando por alguns momentos nas suas
vidas; e do outro os filmes era facilmente integrados à vida dos trabalhadores
por fazê-los se reconhecerem nas imagens. De Griffith a Chaplin, todos eles
retrataram injustiças sociais e mazelas das vidas urbanas que, no final, eram
experiências experimentadas nas próprias vidas desses diretores e reconhecidas
pelas audiências populares.
Edgar Hoover em 1924: repressão ao cinema "anti-americano" |
Mas todas essas
experiências e acontecimentos potencialmente transgressivos receberam ataques
das classes mais elevadas (nickelodeons eram qualificados pelos conservadores
como lugares de moral duvidosa frequentados por um público perigoso e
indecente) e das autoridades como J. Edgar Hoover, diretor do Bureau of
Investigation que considerava tais filmes politicamente radicais e
antiamericanos em uma época onde os conflitos trabalhistas e repressão policial
recrudesciam.
A ascensão de
Hollywood como indústria a partir de 1920, o impacto da Revolução Bolchevique
na Rússia e 1917 e o movimento anticomunista nos EUA (onde novos filmes
passaram, por exemplo, a identificar sindicalistas como comunistas estupradores
de jovens indefesas), a padronização das salas de exibição como luxuosos
palácios para as classes médias e o domínio das narrativas organizadas em torno
de “cross-class fantasies” domesticaram a imagem e a fúria desses primeiros
tempos, reduzindo o acontecimento das sessões de cinema em entretenimento
padronizado e controlado pelo Código Hays de restrição temática e moral.
Portanto, o
detalhista levantamento de Ross sobre os primeiros anos do cinema norte-americano
nos oferece uma primeira aproximação entre cinema e acontecimento. A atmosfera
reinante nas antigas salas de projeção, o filme como um evento que disparava o
fenômeno da interação, reconhecimento de si mesmo e participação. Para o
pesquisador, esses filmes radicais foram muito pouco bem sucedidos como
instrumentos de propaganda ou de conscientização ideológico-política. Seu
principal valor está menos na esfera racional do que nos aspectos da
experiência estética (festa, participação, interatividade etc.), isto é, em um
valor incorpóreo, singular que permeava o “aqui e agora” desses filmes que os
tornavam eventos que produziam acontecimentos.
Declarações de
observadores da época citados por Ross dizendo que “sinto que eles [os
espectadores] estão recebendo algo de fora da vida”[2]
ou “quando você assiste a um filme, você fica tão exausto que quando chega em
casa dorme como uma brisa”[3],
relatando a energia e eletricidade coletiva no evento fílmico, comprovam que o
cinema era muito mais do que entretenimento, mas um acontecimento que, de
alguma forma, quebrava a sucessão temporal cotidiana.
Escapar da realidade
Os nickelodeons populares substituídos por luxuosos cinemas para um público passivo e resignado |
“Existe uma instituição mais democrática que o cinema? Lá
estão ricos e pobres, jovens e velhos, mulheres e crianças reunindo-se
diariamente aos milhões em todo o país para rirem e chorarem juntos”, disse em
1921 o deputado socialista Samuel Orr. Era a confirmação do sucesso das
narrativas “cross-class fantasies” onde as temáticas políticas e classistas
foram substituídas por filmes onde estavam presentes a harmonia das classes,
envolvimentos românticos interclasses e a possibilidade de ascensão não mais
através do problemático mundo da produção, mas através do consumo. Privilégio
às ações individuais e conformismo mais do que mudança e ações coletivas.
Do primeiro cinema ficou apenas o desejo de quebrar a
tediosa rotina diária de trabalho dentro de um lugar onde as fantasias assumiam
o comando e tudo podia acontecer. Só que, agora, em silêncio, todos mudos, lado
a lado em luxuosos palácios em que se converteram os cinemas.
Essa passividade e silêncio do espectador convivendo em
aparente harmonia com o desejo de quebra da rotina por obra de algo que venha
“de fora da vida” cria uma situação contraditória que poderíamos conceituar
como de duplo vínculo.
Retirando as diversas camadas ou racionalizações sobre os
motivos que levam pessoas a passarem duas horas em um cinema (renovação
cultural, ter assunto para conversas, diversão etc.), o desejo pela quebra da
rotina como motivação de última instância está demonstrado em diversas
pesquisas. Por exemplo, em pesquisa realizada pela Reuters e Ipsos em 2010 com
24 mil adultos em 23 países revelou que 42% tendem a ir ao cinema com maior
frequência possível para “escapar da realidade”, isto é, duas em cada cinco
pessoas admitiram o desejo da “quebra da rotina”.[4]
Para além das interpretações mais superficiais ou moralistas
da expressão “escapar da realidade” (como mero “escapismo”, “alienação”,
“futilidade” ou “diversão”), estaria por trás dessa expressão o desejo do
espectador em buscar um evento que produza um acontecimento, mesmo que
transitório: a suspensão da ordem, aqui compreendida em um primeiro momento
como quebra da suspensão temporal dos eventos do dia-a-dia.
Poderíamos associar a situação contraditória da passividade
e silêncio do espectador e a busca no cinema de algo que esteja “fora da vida”
com esse desejo de efêmera “quebra da rotina” sucedida pelo retorno ao
cotidiano?
Impulso por transcendência
Talvez Theodor Adorno tenha sido o primeiro a pressentir
isso que estamos aqui conceituando como duplo
vínculo. Em primeiro lugar associado ao impulso por transcendência imanente
ao próprio objeto artístico.
Quando
Adorno apontava para a alteridade e transcendência contidas na arte, ele
aproximava-se da temática central da Teologia Negativa: a busca do
“inteiramente outro”, do “plenamente diferente”, do “diferente por excelência”,
ou seja, aquilo que está além da representação. Adorno pensava o conceito de
transcendência não no sentido religioso como epifania ou experiência mística de
fato, de uma forma positiva. Afinal, para Adorno as
obras de arte são, antes de tudo, artefatos, algo fabricado pelo espírito
humano e não uma experiência místico-religiosa.
Mas,
por outro lado, como obra do espírito, a arte tendencialmente quer ultrapassar
a si mesma, ir além da sua estrutura, do seu medium, do seu ambiente
perceptivo.
O cinema como possibilidade de transcendência |
Isso
acaba criando uma tensão da arte com a sociedade e do próprio espírito com o
mundo. Para Adorno, essa tensão era a negação do Todo (social, político,
econômico etc.) e o vislumbre de algo inteiramente outro por meio de uma
experiência mínima, única, precária. A “metafísica em queda” proposta por
Adorno na “Dialética Negativa” é essa busca das experiências fugazes,
singulares que apontam para um “transmundo”.
Em segundo lugar, o duplo vínculo presente na própria
recepção do objeto artístico como, por exemplo, no rádio e na música popular:
“Toda a esfera de diversão comercial barata reflete esse duplo desejo. Ela induz o relaxamento porque é padronizada e pré-digerida. Sendo padronizada e pré-digerida serve, na psicologia familiar das massas, para poupar-lhes o esforço dessa participação (mesmo de ouvir e observar), sem o qual não pode haver receptividade à arte. Por outro lado, os estímulos que ela providencia permitem uma escapadela da monotonia do trabalho mecanizado”[5]
Escapar à
monotonia e poupar esforços são movimentos incompatíveis. Como afirma Adorno, a
indústria cultural lida com um problema insolúvel: ao mesmo tempo oferecer
produtos novos e estimulantes que façam o receptor escapar da rotina e, simultaneamente,
tornar essa novidade padronizada e familiar para relaxar e poupar esforços.
Nesta corda bamba equilibra-se a indústria cultural ao ter que criar um
entretenimento que mantenha a ordem institucional e, ao mesmo tempo, ofereça a
esperança de rompê-la.
Para Adorno, isso
significa que a noção de entretenimento como mera distração, escapismo ou
alienação deve ser questionada. Há uma dimensão muito mais complexa que deve
ser entendida à luz das mudanças estruturais da esfera de lazer proporcionadas
pela forma-mercadoria. Para além da interpretação dominante que enfoca o
pensamento de Adorno como pessimista, ele nos fornece importantes subsídios
dentro da sua “teologia negativa”: a existência de elementos potencialmente
transcendentes no interior das formas culturais comerciais.
Quebra e reconstrução da ordem
Aluno de Adorno,
Dieter Prokop vai aplicar em análises fílmicas do chamado “produto cultural de
monopólio” essa abordagem frankfurtiana. Prokop vai analisar a repetição da
“fantasia-clichê” de “questionamento e reconstrução da ordem”:
“Nos produtos de monopólio domina o esquema de questionamento e reconstrução da ordem. Os valores vigentes são desrespeitados, atacados e novamente restaurados. É um jogo necessário para a fantasia, pois se repete todas as vezes na estrutura do produto e nas expectativas; é uma tentativa de tornar-se consciente do que custa o desvio das normas. No primeiro plano estão os papéis sexuais e da família e a questão de quão socialmente legítima e possível é a conquista individual do poder”[6]
Frequentemente os
filmes de monopólio apresentam o esquema abstrato (ou seja, um esquema
aplicável a qualquer gênero) de dramas que narram desvios e acomodações: o
questionamento da autoridade e sua feliz re-implantação. Analisando séries
televisivas dos anos 70 como Columbo
e Kojak, Prokop vai encontrar o jogo
de caráter sado-masoquista da rebelião contra a figura do pai onde o seu poder
é questionado e ao mesmo tempo admirado para acarretar a própria submissão ao
mundo e às normas. O espectador identifica-se com o policial brutal, golpeador
para por em cena, de forma mais livre, o prazer pela punição de todo e qualquer
desvio às normas.
Diante desse
movimento pendular entre “tédio” e “fascinação” (entre a necessidade industrial
do padrão e a necessidade dos receptores pela novidade), Prokop fala de uma
necessidade de "harmonia" por parte da psicologia dos espectadores,
uma situação onde fascinação e tédio não são mais excludentes ou problemáticos,
mas onde o tédio já está dentro da fascinação:
"O tédio que surge aqui não é somente o 'estar entediado', como ocorre quando se é obrigado a participar de algo que não deseja. É um tédio dentro da fascinação ‑ e na moderação. (...) Por outro lado os telespectadores não querem se entediar. Anseia‑se por uma harmonia difusa, que é, por assim dizer, arranjada carinhosamente para o receptor. Deseja‑se encostar na poltrona e ser alimentado com imagens e sons. Neste clima fica‑se disposto a se identificar com as coisas mais estúpidas só para satisfazer a essa necessidade. O sujeito fica fixado no ver, ouvir e ler sem que lhe possam ser permitidos excessos voyeurísticos, desfrutes. A 'quebra' logo precisa ser novamente neutralizada. Ela não pode incomodar a rotina. Uma necessidade por harmonia pode ser satisfeita pelos meios de comunicação"[7]
Columbo: o jogo sadomasoquista de rebelião e resignação |
Quebras de ritmo
trazidas por elementos estéticos ou de conteúdos inovadores devem ser
neutralizados pelo clichê. Prokop, portanto, ressalta a necessidade psicológica
por harmonia através de imagens e sons, harmonia que induz ao relaxamento e
novas energias para enfrentar a rotina do trabalho mecanizado do dia seguinte.
Portanto, em
Adorno como em Prokop encontramos mais alguns elementos para a nossa
aproximação entre Cinema e Acontecimento: a interdição do acontecimento por
meio de um jogo de duplo vínculo onde o espectador jamais ganha.
Duplo vínculo e
esquizofrenia
Também podemos encontrar elementos desse duplo vínculo em
Jason Horsley no seu livro “The Secret Live of Movies – Schizophrenic and
Shamanic Journeys in American Cinema” descreve a história do que ele define
como “cinema esquizo”: uma dualidade entre momentos em que Hollywood permitiu a
produção de filmes “esquizofrenicamente perturbadores e subversivos” e filmes
“recuperativos”, verdadeiros neurolépticos onde paranoia e psicose das
narrativas fílmicas são submetidos aos limites racionalizantes do mercado.
Horsley faz uma distinção entre o “cinema esquizo” (marcado
por narrativas paranoicas e protagonistas psiquicamente instáveis e marcados
pela revolta e cinismo) e o traço esquizoide presente no próprio dispositivo,
linguagem e recepção cinematográfica.
Para Horsley o florescimento do cinema como indústria nos
EUA somente foi possível pela própria natureza esquizo do dispositivo que veio
de encontro a uma sociedade marcado pela paranoia, desde a transmissão
radiofônica de “Guerra dos Mundos” em 1938 que levou ao pânico milhões de
ouvintes na Costa Leste que acreditaram estar sob ataque de invasores
marcianos. Esse traço esquizo do dispositivo estaria presente na passividade
(no sentido cinemático da passividade corporal em relação à atividade mental) e
a suspensão da descrença produzida pelas artimanhas do roteiro e pelo “realismo
cinematográfico” (narrativa clássica) da edição e montagem.
Além da característica da passividade, a paranoia em
relação a ameaça do Outro é um dos traços constitutivos da condição esquizofrênica.
Partindo das considerações de Freud em “O Mal Estar da Cultura” e tomando a
esquizofrenia como um sintoma de uma relação patológica com o Outro (Sociedade,
Cultura, Cotidiano etc.) Horsley vai estabelecer esse movimento pendular entre
o cinema esquizo onde o Outro é identificado com alienígenas, monstros, femme fatales e a própria sociedade
doentia e corrupta (temática cujo auge foi nos anos 1970 em filmes como “Um
Estranho no Ninho”, “Taxi Driver”, “Sem Destino”, “Perdidos na Noite” etc.) e o
“cinema recuperativo” onde o mal estar em relação ao Outro é reduzido a uma
questão de assepsia e controle: extermínio e violência sadística e
exibicionista.
Um exemplo desse “cinema recuperativo” teria sido o subgênero dos anos 1980 “desconstruindo o yuppie”:
filmes como “Depois de Horas”, “Procura-se
Susan Desesperadamente”, “Totalmente Selvagem”, “Férias Frustradas”, “Antes Só
do Que Mal Acompanhado”, “Crazy People” etc., são filmes onde um protagonista
certinho, careta e financeiramente bem sucedido tem a sua rotina quebrada por
uma figura feminina ou sequência descontrolada de eventos que o desorienta e o
desconstrói.
Horsley
nos descreve um diagnóstico da sociedade norte-americana a partir da dualidade
entre os filmes “esquizos” e “recuperativos” da seguinte maneira: de um lado, a
condição esquizofrênica de viver em sociedade cuja estrutura nos impõe a
passividade e dissociação entre o ego e os múltiplos papéis do cotidiano; e do
outro, uma relação particular que os filmes recuperativos criam um processo de
aceleração dessa passividade e dissociação ao vermos a projeção fílmica da
realidade e de nós mesmos nos tornando imunes das consequências.
O
pesquisador descreve basicamente três momentos em que Hollywood permitiu a
produção dos filmes esquizos: no filme noir das décadas de 1930-40 (onde surgiram
os três modos de representação do mal estar contemporâneo na figura de três
protagonistas arquetípicos – “o viajante”, “o detetive” e “o estrangeiro” - sobre isso veja links abaixo), nos
anti-heróis revoltados, desequilibrados e cínicos dos anos 1970 (de “Sem
Destino” a “Scarface”) e no último revival
nas décadas 1990-2000 representado pelo súbito interesse de
produtores de Hollywood por escritores gnósticos como Philip K. Dick e Cornac
McCarthy (respectivamente O Homem Duplo e A Estrada), roteiristas
como Charlie Kauffman (Quero ser John Malkovitch e Brilho Eterno de Uma
Mente Sem Lembranças) com profundos temas, simbologias e iconografias
gnósticas e diretores como David Lynch (Inner Empire e Mulholland Drive)
ou Scorsese (Ilha do Medo).
A visão
de Horsley do cinema como forma de diagnóstico de um mal estar social nos
oferece outra contribuição para o tema Cinema e Acontecimento ao suscitar a
seguinte questão: por ser um cinema cujas narrativas exploram a paranoia,
estados alterados de consciência e a denúncia da falsidade das estruturas
sociais, a recepção dos filmes esquizos poderiam produzir acontecimento? Poderiam esses filmes, em contraste com o “cinema
recuperativo”, arrancar o espectador da passividade e criar não tanto reflexão
ou conscientização (eventos racionais), mas choque, mal estar ou qualquer forma
incorpórea de evento que transcenda o indivíduo do cotidiano ou, pelo menos,
quebre a sequência temporal do dia-a-dia?
Para
iniciarmos uma reflexão dessa natureza precisamos em primeiro lugar esclarecer
um pouco mais os conceitos de “evento” e “acontecimento”.
NOTAS
[2]
IDEM, p. 20
[3] IDEM, p. 24
[4]
Disponível em http://www.ipsos-na.com/news-polls/reuters-polls/
(acessado em 03/10/2012).
[5]
ADORNO, Theodor, “Sobre Música Popular”, In: COHN, Gabriel (org) Theodor W. Adorno, Coleção Grandes
Cientistas Sociais, São Paulo: Ática,1986, p. 136.
[6]
PROKOP, Dieter, “Fascinação e Tédio na Comunicação: produtos de monopólio e
consciência”, In: MARCONDES FILHO, Ciro (org.) Dieter Prokop, Coleção Grandes
Cientistas Sociais, São Paulo: Ática, 1896, p. 178.
[7] Ibid, p. 154-155.
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