Desde o Bates Motel do vilão Norman bates no filme "Psicose" de Hitchcock, os hotéis renderam uma longa filmografia do terror ao drama e humor negro – lugares misteriosos, decadentes, habitado por fantasmas, assassinos, golpistas etc. Isso porque os hotéis parecem espaços inerentemente estranhos: um lugar que podemos chamar de lar por um tempo limitado. Mas, mesmo assim, compartilhamos nossa experiência com pessoas que nunca conheceremos. “Mr. K” (2024, disponível na Apple TV), produção europeia dirigida por Talluah Hazekamp Schwab, dá continuidade a esse imaginário com uma interessante combinação entre referências literárias a Kafka e a antiga mitologia gnóstica. A jornada labiríntica e surreal de seu protagonista, um mágico aprisionado em um hotel bizarro e inescapável, serve como uma poderosa alegoria gnóstica. Através de sua atmosfera kafkiana e de seus temas de aprisionamento, busca por conhecimento e a natureza ilusória da realidade, o filme espelha os princípios fundamentais do Gnosticismo.
Hotéis são inerentemente estranhos. São espaços em que a exposição
pública e a vida privada estão muito próximas. Porque são domicílios
temporários em um momento em que estamos a passeio ou a negócios. Um lugar que
podemos chamar de lar por um tempo limitado, junto com amigos ou familiares.
Mas, mesmo assim, compartilhamos nossa experiência com pessoas que nunca
conheceremos.
Isso talvez explique por que vemos tantos filmes sobre hotéis
misteriosos, decadentes, seja habitado por fantasmas, assassinos, pequenos
escroques ou golpistas. Nesses lugares em que nunca conheceremos o outro, só
podem despertar em nós estranheza e suspeita. Por fim, foi exatamente essa a
origem da crônica policial e a literatura de mistérios com detetives e
suspeitos.
Por mais que o marketing e a publicidade transformem resorts,
hotéis, pousadas, flat-apart hotel etc. em extensões de nossas casas.
Mas e se os hotéis forem mesmo não só uma extensão das nossas
casas, mas da própria existência? Um microcosmo não só da sociedade, mas
inclusive do próprio tecido da realidade?
Essa é a proposta do filme Mr. K (2024), dirigido por Talluah
Hazekamp Schwab, que não só faz essa analogia (a estrutura hoteleira como a
própria estrutura burocrática da sociedade) como a aproxima de amálgama de referências
literárias a Franz Kafka combinadas com uma poderosa alegoria da condição
humana conforme imaginada pela antiga mitologia gnóstica.
Estrelado por Crispin Glover, transcende o mero suspense
psicológico para se aprofundar em uma rica alegoria do simbolismo existencial e
espiritual. A jornada labiríntica e surreal de seu protagonista, um mágico
aprisionado em um hotel bizarro e inescapável, serve como uma poderosa alegoria
gnóstica. Através de sua atmosfera kafkiana e de seus temas de aprisionamento,
busca por conhecimento e a natureza ilusória da realidade, o filme espelha os
princípios fundamentais do Gnosticismo.
Desde seu título até o argumento central, o longa-metragem
constrói uma atmosfera de desorientação, angústia e absurdo que ecoa
diretamente as obras mais emblemáticas do autor tcheco, como "O
Processo" e "O Castelo". A jornada do protagonista Mr. K é uma
descida a um labirinto burocrático e existencial do qual não há escapatória
lógica, tornando o filme uma explícita manifestação do que se convencionou
chamar de "kafkiano".
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A referência mais imediata e intencional reside no próprio nome do
protagonista, "Mr. K". Este é um aceno direto a Josef K., o
personagem principal de "O Processo", e a K., o agrimensor de "O
Castelo". Ambos os personagens de Kafka são indivíduos comuns subitamente
confrontados por sistemas opacos, ilógicos e impenetráveis. Assim como os
protagonistas de Kafka, Mr. K do filme é um homem arrancado de sua normalidade
— um mágico viajante — e aprisionado em uma realidade com regras próprias e
inescrutáveis.
E o cenário de tudo isso é um
hotel grandioso e decadente, que funciona como a materialização do castelo ou
do tribunal kafkiano.
Assim como em Kafka, o filme Mr. K transforma o labiríntico
hotel em um microcosmo da própria condição humana gnóstica: As tentativas de
Mr. K de encontrar a saída são frustradas por corredores que se reconfiguram,
portas que não levam a lugar nenhum e uma arquitetura que desafia a razão. Essa
estrutura labiríntica e em constante mutação simboliza a natureza da burocracia
e das estruturas de poder na obra de Kafka: um sistema projetado não para
servir, mas para confundir, desgastar e subjugar o indivíduo.
Mr. K materializa essa prisão cósmica em
um enorme hotel em decadente estilo vitoriano. O protagonista, o mágico Sr. K,
chega como um hóspede transitório, mas logo descobre que as saídas são
ilusórias e os corredores se reconfiguram, prendendo-o em um pesadelo sem fim.
O hotel, com suas regras arbitrárias e habitantes passivos que aceitam sua
condição como normal, representa o mundo material gnóstico – um sistema
opressivo e sem sentido que mantém as almas cativas. Os funcionários do hotel,
com sua autoridade inexplicável e sua manutenção do status quo, podem ser
vistos como os Arcontes, os servos do Demiurgo que governam e guardam a prisão
terrena.
Mr. K é uma produção europeia (Noruega,
Bélgica e Países Baixos). O que é uma coisa notável em termos de produção de
filmes gnósticos. Isso porque tradicionalmente diretores e produtores europeus preferem
desenvolver temáticas em torno daquilo que poderíamos chamar de “demasiado
humano”: narrativas que versam sobre impasses éticos, morais ou dúvidas
existenciais sobre “o sentido da vida”; e as discussões em torno da natureza
humana.
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Ao contrário, os filmes gnósticos se desviam das discussões sobre
a natureza humana para se concentrar no absurdo da realidade como um constructo
artificial para aprisionar o protagonista – que, no final, representa a própria
condição existencial humana.
Por isso, os filmes gnósticos europeus são produções menos
numerosas. Podemos enumerar algumas, como O Homem Que Incomoda (Noruega,
2012), Cosmodrama (França, 2015), Matar a Dios (Espanha, 2017), a
série alemã Dark (2017-2020) entre outros.
Se bem que nos últimos anos vêm crescendo a produção de argumentos
gnósticos na cinematografia europeia. Talvez, pelo recrudescimento da Guerra
Fria 2.0 da OTAN contra a Rússia com a guerra na Ucrânia.
O Filme
“Cada ser humano é um universo dentro de si, flutuando na
escuridão eterna, sem rumo, solitário... tão solitário. Ou talvez seja só eu.”
Rapidamente descobrimos que estas são as palavras de um mágico
viajante, o "Sr. K " (Crispin Glover). Ele realiza números
de mágica vintage em clubes antiquados, lotados de clientes ocupados demais com
suas refeições e conversas para prestar atenção à sua maravilhosa arte.
Depois de arrumar suas malas surradas, ele deixa aquele café
sombrio e se encontra em frente a uma decadente propriedade vitoriana – um enorme
e velho hotel decadente. Sr .K imagina ser um local para descansar a cabeça por
uma noite. Ele tem um show em um evento agendado para a manhã do dia seguinte.
Uma vez lá dentro, vemos que este outrora grandioso hotel agora
nada mais é do que uma elegância desbotada.
Uma brusca gerente permanece inexpressiva na Recepção, enquanto
seus olhos, um deles de vidro, inspecionam o mágico com desconfiança. Ela o
conduz rapidamente por uma escada em espiral até seu quarto. As paredes são
todas verde-escuras e o papel de parede desbotado, descascando bastante.
Pode-se imaginar que este seja um estabelecimento irmão do
decadente Hotel Earle, do filme Barton Fink dos irmãos Coen. Quando ele
encontra pessoas escondidas dentro de seu quarto, elas saem sem dizer uma
palavra e ele as dispensa com um dar de ombros confuso. Ruídos estranhos emanam
das paredes enquanto ele mergulha em um sono inquieto.
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No dia seguinte, vestido com seu terno preto impecável, ele arruma
sua triste bagagem e sai para fechar sua conta na Recepção. No entanto, o que
antes parecia um simples corredor, agora é um labirinto de corredores sem fim. Crianças
sujas correm de um lado para o outro, passando rapidamente entre as portas
antes de roubarem sua bagagem. Uma banda de metais, daquelas em estilo circense,
que parece sair diretamente das paredes, marcha sem parar pelos corredores,
empurrando-o cada vez mais para dentro deste mundo caótico.
Por fim, ele encontra duas senhoras idosas, vestidas com vestidos
combinando de cetim azul-bebê e renda. As mulheres alegam ser francesas, mas
curiosamente têm sotaque britânico. Elas dizem que não saem há anos porque têm
tudo o que precisam ali mesmo.
Por fim, ele tropeça na cozinha, onde involuntariamente se torna
um operário de linha. Lá, ele faz amizade com um homem chamado Anto, cuja única
ambição na vida é um dia se tornar um misturador de ovos na cozinha.
Sem nem tentar, o Sr. K rapidamente sobe na hierarquia da cozinha,
perdendo seu amigo ao longo do caminho.
Por fim, é claro, tudo desmorona quando ele descobre o segredo
oculto do hotel e tenta desesperadamente convencer primeiro o chef principal,
depois os funcionários da cozinha e, por fim, todos os outros hóspedes presos a
trabalharem juntos para encontrar uma saída. À medida que a insanidade da
situação se intensifica, o Sr. K fica cada vez mais desesperado, isolado e
desconfiado daqueles ao seu redor.
A angústia de Mr. K é alimentada pela lógica absurda que
rege o hotel e seus habitantes. Os funcionários e os outros hóspedes agem com
uma passividade desconcertante, aceitando sua condição como perfeitamente
normal. Eles seguem rituais sem sentido e respondem às tentativas desesperadas
de fuga de Mr. K com indiferença ou com respostas burocráticas que apenas
aprofundam seu aprisionamento.
Há algum tipo de autoridade invisível e onipresente, cujas leis
são arbitrárias e cuja culpa de quem pense em se rebelar é presumida, mas nunca
explicada.
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A ironia gnóstica
O filme guarda uma ironia curiosa: enquanto o Sr. K estava no
mundo “real” fazendo seus números de ilusionismo, ninguém da plateia prestava a
atenção nele. Estavam mais interessados com seus afazeres do mundo real: a
comida, a bebida, as conversas etc.
Quando o protagonista é capturado por aquele hotel-prisão, temos a
situação inversa: ele tenta denunciar a ilusão (a situação absurda em que todos
naturalizam no cotidiano) tentando mostrar a realidade, a saída. Mas ninguém
lhe dá atenção.
Sua profissão de mágico, um manipulador da realidade e do
controle, torna-se ironicamente inútil dentro de um sistema que ele não
consegue nem começar a compreender. Ele deixa de ser um artista para se tornar
apenas mais uma peça na engrenagem inexplicável do hotel, uma jornada de
anulação pessoal que reflete a desumanização do indivíduo perante sistemas
totalizantes.
Além das referências literárias a Kafka, os principais tropos do
Gnosticismo estão em Mr. K. O Sr. K, como protagonista, encarna a figura
do buscador da gnosis. Sua profissão como mágico é particularmente
simbólica. A magia, em seu cerne, é a arte de manipular a realidade e revelar o
que está oculto. No entanto, dentro do hotel, sua mágica é ineficaz, uma
metáfora para a futilidade da tentativa de aplicar a lógica e o conhecimento do
mundo exterior a uma realidade fundamentalmente falha. Sua busca incessante por
uma saída, seu mapeamento obsessivo dos corredores em constante mudança,
representa a busca da alma pela verdade em um mundo projetado para confundir e
enganar.
Os outros hóspedes do hotel representam a maioria da humanidade na
visão gnóstica: aqueles que estão "adormecidos", inconscientes de sua
prisão. Eles se adaptaram às regras absurdas do hotel, encontrando conforto na
rotina e na ignorância. A indiferença deles ao sofrimento do Sr. K e à sua
busca pela liberdade destaca a dificuldade da jornada gnóstica, que muitas
vezes é um caminho solitário.
O final do filme, embora aberto a interpretações, reforça a
leitura gnóstica.
Sem revelar spoilers, a conclusão não oferece uma fuga fácil ou
uma resolução convencional. Em vez disso, sugere uma transformação na percepção
do Sr. K.
A verdadeira libertação, no pensamento gnóstico, não é
necessariamente uma fuga física, mas uma transcendência espiritual, uma
compreensão que liberta a alma da ignorância, mesmo que o corpo permaneça no
mundo material. A jornada do Sr. K, portanto, pode culminar não em encontrar
uma porta para o mundo exterior, mas em alcançar um estado de consciência que o
eleva acima da lógica opressiva do hotel.
Ficha Técnica |
Título: Mr.
K |
Diretor: Tallulah Hazekamp Schwab |
Roteiro: Tallulah Hazekamp Schwab |
Elenco: Crispin
Glover, Sunnyi Melles, Fionnula Flanagan |
Produção: Lemming
Film, The Film Kitchen |
Distribuição: Doppelganger Releasing |
Ano: 2024 |
País: Noruega, Bélgica, Países
Baixos |