sexta-feira, outubro 19, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
“Uma estrela
digitalizada! Sabe o que isso significa? Vamos entrar em uma nova dimensão: nossa capacidade de criar
uma fraude ultrapassou nossa capacidade de detectá-la” Depois de escrever o
roteiro de “Show de Truman” Andrew Niccol escreveu, dirigiu e produziu “S1m0ne”
(2002) para aprofundar ainda mais a questão lançada no filme anterior. Se em “Show
de Truman” tínhamos um mundo falso criado para aprisionar uma pessoa, em
“S1m0ne” Niccol fez o inverso: a criação de uma pessoa falsa para enganar e
seduzir todo o mundo.
Andrew Niccol
demonstra uma afinidade com temáticas relacionadas aos impactos sociais das
mídias e novas tecnologias. Antes, escreveu os roteiros de “Gattaca” (1997) e “Show
de Truman” (1998), filmes que, respectivamente, discutiam a ética e o impacto
humano na manipulação genética e a hipertrofia do gênero televisivo reality
show. Uma olhar para o impacto da tecnologia através de simbolismos
cabalísticos, alquímicos e gnósticos. Dessa forma, Niccol pertence a uma
geração de roteiristas e diretores que, a partir da década de 1990, participam
de uma espécie de guinada metafísica de Hollywood já discutida em postagem
anterior (veja links abaixo): Darren Aronofsky (“Pi” – 1998 e “Fonte da Vida” –
2006), Charlie Kaufman – “Quero Ser John Malkovich” – 1999 e “Brilho Eterno de
Uma Mente Sem Lembranças” – 2003) entre outros.
Em “S1m0ne” Niccol
faz uma irônica projeção do futuro do cinema com as tecnologias digitais onde a
virtualização poderia chegar às raias da fraude e também uma forma mística de
transcendência espiritual para escapar da “irracional fidelidade à carne”, como
declara o protagonista em uma das linhas de diálogo do filme.
Toda a narrativa
passa dentro de um grande estúdio hollywoodiano mostrando as problemáticas
relações que fazem parte do showbizz, principalmente as idiossincrasias e
chiliques de uma impagável estrela interpretada por Winona Ryder e a vítima, um
diretor chamado Victor Taranksy (Al Pacino). Victor é um diretor decadente após
sucessivos fiascos mercadológicos às vésperas de ser demitido pela própria
ex-esposa Elaine (Catherine Keener), executiva do estúdio. Tudo parece perdido
até aparecer um fã lunático que teria a solução: um código de programação capaz
de gerar a protagonista perfeita da sua próxima produção, uma atriz virtual
obediente ao diretor e sem os problemas estrelismos e rebeldia. Vetores no
lugar de seres humanos, pois “a carne é fraca”, como afirma o fã maluco de
Taranksy que está à beira da morte devido a um tumor em um dos olhos desenvolvido
por ficar horas diante do monitor de computador.
O código é o
programa “Simulation One”, de onde Taranksy se inspirará para criar o nome
“Simone”a partir de uma contração do nome do software. Demitido do estúdio, com
a casa hipotecada e perseguido por credores Taranksy termina seu último filme
que resulta num sucesso, graças ao estranho magnetismo de Simone. Ela foi
elaborada digitalmente a partir de um repertório contido no programa das
grandes atrizes e femmes fatales do
cinema: a voz da jovem Jane Fonda, o corpo de Sofia Loren, a graciosidade de
Grace Kelly, o rosto de Audrey Hepburn e o olhar fatal de Lauren Bacall.
O público e o
estúdio querem saber quem é Simone. Taranksy fará o impossível para manter o
segredo sobre a virtualidade da atriz principal – Simone sofreria de agorafobia
que a faria viver reclusa, longe de contatos sociais. Mas aos poucos o feitiço
volta-se contra o feiticeiro: o fascínio do público pelo encanto e sensualidade
de Simone supera os próprios filmes de Taranksy, deixando o diretor em segundo
plano. O diretor literalmente fala através dela por meio de filtros de voz
carregados pelo programa. Simone torna-se estrela mundial, presente em talk
shows e até em turnês internacionais onde se “materializa” por meio de
hologramas para cantar para as multidões hipnotizadas. Tudo controlado a partir
do computador instalado em um enorme estúdio em Hollywood, secretamente
guardado por Taranksy.
Do Golem ao mito de Pigmaleão
Niccol mais uma
vez retoma o tema cabalístico do golem:
o “não formado”, a matéria disforme e imperfeita cujas fórmulas, números ou
códigos binários da computação darão a forma e a perfeição. Uma nova humanidade
longe da carne imperfeita e decaída. Truman era o bebê moldado através dos
códigos televisivos para tornar-se um modelo para inspirar milhões. Simone é a
síntese abstrata de todos os grandes ícones femininos da história do cinema que
se transformará em objeto de adoração quase religiosa por milhões.
Como em todas as
narrativas mitológicas sobe o fascínio por estátuas ou imagens que ganham vida
– desde o mito de Pigmaleão da estátua feminina que ganha vida e se casa com o próprio
escultor – em “S1m0ne” estão presentes os distúrbios resultantes da violação
das fronteiras entre o animado e o inanimado, natural e artificial, humano e
mecanismo.
Se for verdade a
afirmação de Eric Wilson em seu livro “Secret Cinema”, de que por trás de cada
ida ao cinema existe a renovada motivação do fascínio pelas formas perfeitas
dos verdadeiros Adão e Eva antes da Queda que são os astros e estrelas, Simone
é a superação disso. Explicando melhor: se o cinema sempre foi uma simulação no
sentido da interpretação dos atores, criação de realidades com recursos
ficcionais como edição e montagem e do próprio dispositivo que transforma tudo
isso em luz projetada em uma tela, com a digitalização temos o simulacro dentro
da própria simulação. “S1m0ne” é a projeção irônica de um futuro já sinalizado
em filmes como “Final Fantasy” e “Avatar” onde o simulacro substitui a própria referência
ou o real que deveria ser simulado (o ator, a cenografia, o set de filmagem, o
estúdio etc.).
Simone não é mais
uma atriz real transformada em uma simulação sedutora pelos recursos da
linguagem audiovisual. Ela é sintética, o resultado de uma colagem digital de
todas as musas, divas e femmes fatales
da história do cinema, transformadas agora em galeria de ícones em uma pasta
digital. Se desde o início íamos ao cinema por um secreto impulso de vermos
formas que transcendiam a carne decadente e feia do cotidiano, agora podemos
chegar a realização plena. Se no passado as atrizes se imortalizavam por uma
especialidade (o olhar de Bete Davis, as pernas de Marlene Dietrich, a voz de
Lauren Bacall e assim por diante), o simulacro digital junta todos os fragmentos
em uma só personagem criando o hiper-real.
Se antes essa
especialização adquiria um tom dramático-teatral que produzia um distanciamento
onde, de nossas poltronas, admirávamos (ou seja, havia ainda o real como um
horizonte referencial), hoje o look digital
promete a substituição do real pelo simulacro.
Por esse motivo o
diagnóstico sombrio de Andrew Niccol tanto em “Show de Truman” quanto em
“S1m0ne”: diante do hiper-real desaparece a distinção virtual e real, falso e
verdadeiro. Truman consegue finalmente fugir do estúdio no final e os
telespectadores simplesmente abrem o TV
Guide em busca de uma nova atração; em “S1m0ne” mesmo depois de revelada a
fraude digital, o público e os executivos do estúdio não acreditam. Pouco
importa se ela é falsa. Ela é a pura aparência, o golem que transcendeu a oposição entre ilusão e a realidade.
Filme "Tolerãncia": a construção da mulher hiper-real
“Eu sou a morte
do real!”, grita profeticamente Victor Taranksy diante de Simone na tela do
computador antevendo um tipo de cinema onde não só o referente (atores e cenografia),
mas o próprio suporte (a película) desaparecerá em imagens hiper-reais em streaming. Mas o messianismo de Taranksy
lhe trai: suas pretensões artísticas e suas mensagens críticas são eclipsadas
pelo fetiche de Simone. Para desespero do protagonista seus filmes acabam se
tornando auto-referentes, isto é, não conseguem mais comunicar nada, a não ser
o fascínio fetiche pela protagonista.
A mulher fragmentada
Um exemplo
didático do princípio dessa construção da hiper-realidade podemos encontrar em
uma passagem do filme brasileiro “Tolerância” (2000): desesperado, um fotógrafo
publicitário pede ajuda a um designer gráfico para salvar o trabalho. Após uma
árdua semana, o fotógraforepara que a modelo engordou e que a bunda está
"caída" nas fotos. Sem tempo e filme para refazer o trabalho, pede
ajuda ao designer. Numa seqüência bem didática, o personagem abre a fotografia
em questão no programa de computação gráfica photoshope, ao mesmo tempo, no canto da
tela do computador, surge um verdadeiro "clip‑art" de bundas:
uma coleção de bundas emclosede modelos que participaram de diversas campanhas
publicitárias.
O designer seleciona a que melhor encaixa no corpo da
modelo e "arrasta" com o mouse até o ponto desejado. A foto
resultante é uma mulher fruto de um verdadeiro trabalho de colagens de
fragmentos modais das fantasias do psiquismo do mercado.
Ficha Técnica
Título: S1m0ne
Diretor: Andrew
Niccol
Roteiro: Andrew
Niccol
Elenco: Al Pacino, Catherine Keener, Rachel Roberts,
Winona Ryder
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
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Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
A lista atualizada dos filmes gnósticos do Blog
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>