Escalar uma "montanha
mágica" nos Pirineus para encontrar a fortaleza dos heréticos Cátaros do século
XII. O problema é que, para eles, toda a suposta beleza dos céus e da Terra era
“obra de um demônio”. Mas para um turista esotérico isso não importa: a jornada
descrita pelo famoso escritor de best sellers esotéricos Paulo Coelho confirma
os principais mitos dessa agenda “new age” cujo imaginário criou um subgênero
na indústria do turismo. Os mitos dessa jornada: Os “Sinais”, O “Todo”, Os “Lugares
Especiais” e O “Antigo”.
Em uma das minhas visitas à cidade de Santos (meus pais
moram lá) me detive diante de uma banca de jornal e parei na primeira
página do jornal “A Tribuna de Santos”. Era domingo, dia em que o jornal vem
com o suplemento “ATrevista”, uma revista de variedades culturais, culinárias e
dicas de compras. Temas bem amenos para um típico domingo santista ensolarado e
quente. Folheando a revista, perdido entre receitas culinárias e páginas
publicitárias, encontro uma coluna do famoso escritor de best sellers esotéricos Paulo Coelho intitulado “Montanha Mágica”
(clique aqui para ler).
O texto começa com uma típica descrição turística sobre “uma
das as mais belas regiões do mundo”, Languedoc nos Pirineus e Sudoeste da
França. “Mas foi nesse lugar magnífico que nasceu a
primeira grande “heresia” europeia: o catarismo. Muitos livros foram escritos
sobre o tema, entretanto, é possível resumir a filosofia cátara numa simples
frase: o universo foi criado pelo demônio. Toda esta beleza aparente é uma obra
diabólica.” Uauuu! Que tema para um domingo de sol e praia!
Para quem não
sabe, os Cátaros foram os responsáveis pelo reaparecimento do Gnosticismo na
Europa no século XII, esparramados pelo Sul da França, Languedoc, Catalunha e
norte da Itália. Foi um movimento cristão considerado herético pela Igreja, com
forte paralelo com os gnósticos do princípio da era cristã, mais precisamente
com o dualismo de Mani (viveu no Irã no século III) que sustentava que o cosmos
seria dividido por dois poderes opostos: o Bem e o Mal, o verdadeiro Deus e o
Demiurgo, uma divindade decaída e enlouquecida com o próprio poder que nos
aprisiona em um universo físico corrompido.
Além dessa
concepção ontológica do Mal, eram ascéticos, vegetarianos e celibatários:
procriação e prazeres seriam fontes do mal por produzir mais “matéria”. E para
completar, eram tenazes críticos da Igreja, segundo eles, corrompida por estar
ocupada com os deveres da caridade e empenhada na venda de indulgências em
cruzadas para libertar Jerusalém e saquear Constantinopla. Eram contrários ao
culto a santos e relíquias, considerados “idolatrias”.
Essa heresia
despertou a ira do papa Inocêncio III que lançou contra eles uma campanha
militar (a Cruzada Albigense), oferecendo com recompensa a terra dos hereges. O
genocídio dos cátaros durou meio século. A instrução era matar tudo que se
mexesse e reduzir as casas a cinzas. Essa violência da Cruzada Albigense,
infame até para os padrões da época, ficou famosa pois por sua causa
oficializou-se a Inquisição.
O gnosticismo
maniqueu dos cátaros impactou por séculos o cenário cultural. Voltaire dedicou
um capítulo de seu “Essai sur lós moeurs et l’esprit dês nations” ao massacre
dos cátaros. Percebemos ecos do catarismo nas críticas do poeta William Blake
ao cosmos descrito por Isaac Newton, organizado e parecido com um relógio. “Mas
a Natureza é obra do Demônio”, dizia Blake.
Catarismo no século XX
E ainda
encontramos no filósofo franco-romeno Emil Cioran (1911-1995) um “catarismo
ateu”, um “misticismo sem absoluto” ao aproximar-se da concepção cósmica e
ontológica do Mal. Ou ainda na revolução epistemológica e ontológica do
pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007): primeiro ao abandonar a dialética marxista e
privilegiar o dualismo e, segundo, ao compreender que a realidade do mundo
desde o início ter sido seduzida pela ilusão e a impossibilidade da Razão e da
linguagem compreender a verdade da realidade.
Mas tudo isso é
pesado demais para um domingo de sol e para um artigo distribuído para diversos
veículos impressos e digitais para seções de cultura e variedades. A partir
daí, Paulo Coelho explica que nesse lugar específico, a fortaleza de Montségur,
houve em 1244 um prolongado cerco que resultou na morte na fogueira de 250
“perfeitos” (como se autodenominavam os cátaros), homens, mulheres e crianças.
Em seguida, o autor faz uma descrição do belo local (a gigantesca rocha sobre a
qual se encontra a fortaleza) e das estranhas coincidências que seriam “sinais”
indicando a necessidade de aceitar o desafio de escalar uma montanha envolta em
neblina à noite. “Tudo pareceu se encaixar”, escreve Coelho, ao retornar ao
hotel e encontrar uma única lanterna existente no local para a escalada
noturna.
Cioran: o "catarimo ateu" |
Finalmente, ele e
mais dois personagens escalam a montanha, cruzam as nuvens e chegam ao topo sob
um céu cheio de estrelas e com lua cheia, para em seguida disparar: “Entramos, contemplamos as
ruínas. Os cátaros contemplavam este mesmo céu e, mesmo assim, achavam que
todas estas estrelas eram obras do demônio. Jamais compreenderei os cátaros
(...)”.
Tudo realmente se
“encaixou”. Na verdade o escritor Paulo Coelho usou os cátaros como um álibi
para um típico texto sobre “turismo esotérico”, um subproduto da ideologia do
turismo que transforma em mercadoria a promessa de que encontraremos a
“aventura”, o “original”, o “único”, o “intocado”, o “elementar” na viagem que
promete a quebra da nossa cinzenta rotina (veja ENZENSBERG, Hans Magnus, “Uma
Teoria do Turismo”, In: Com Raiva e
Paciência, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985).
Paulo Coelho faz
a exaltação do olhar turístico para vales, montanhas, rios, céu e estrelas e,
por isso, acha incompreensível os cátaros acharem que tudo isso seja obra do
“demônio”.
O artigo
“Montanha Mágica” é exemplar ao apresentar didaticamente os mitos que compõem aideologia
dessa modalidade contemporânea de “turismo esotérico” e, de resto, os mitos que
estruturam a própria ideologia da chamada “New Age” – a “Nova Era”. Vamos
relacionar alguns desses mitos:
Mito 1: Os Sinais
O termo “sinais”
seria a secularização daquilo que os neo-pentencostais chamam de “milagres”.
Milagres estariam por todas as partes, no atacado, demonstrando a presença de
Deus. Somente que nessas igrejas a coisa é mais “dura”: para merecê-los é
necessária retidão moral e de costumes – além, claro, da oferta do dízimo.
No turismo
esotérico seria mais “soft”: tudo depende da sensibilidade, autoconhecimento,
insight etc. Os sinais viriam de coincidências significativas (baseado na
concepção junguiana de sincronicidade), tais como as relatadas por Paulo
Coelho. “Sinais são os sinais”, afirma ele. Mas aqui temos um mito a partir de
uma forçação de barra: das coincidências significativas ou sincronicidades de
Jung (a existência de uma ordem a-causal ligada ao arquétipos ou imagens do
inconsciente, ou seja, a coincidência entre o estado psíquico e acontecimentos
externos) vermos a conversão em “sinais”. Dessa vez não mais de uma providência
divina, mas de um ordenamento cósmico ou manifestação de uma “realidade
quântica” – uma expressão fetiche e pouco compreendida. O universo conspiraria
sempre a favor dos turistas esotéricos.
Mito 2: o Todo
É uma decorrência
do Mito 1: a compreensão da intencionalidade desses sinais seria um momento
sagrado, quase uma epifania: a compreensão intuitiva do Todo. Dentro desse mito
estão as velhas questões clichês cuja resposta seria apenas encontrada no
“Todo” depois de descobrir o enigma dos “sinais”: de onde viemos? Quem somos nós? Para onde vamos? Qual o
propósito da nossa existência?... e assim por diante.
Mas o ponto de chegada é
o mesmo: pérolas motivacionais especialmente elaboradas para o mundo
corporativo e de vendas (no final, os grandes consumidores destes tipos de
textos e vídeos para motivar equipes de vendas, gerencias e chefias), noções
filosóficas e científicas fragmentadas e arbitrariamente associadas aos temas
de auto-ajuda etc. A essência desse mito é a seguinte: o indivíduo é limitado por
não conseguir se conectar com o “Ser Abstrato Puro”, com a “Consciência
Abstrata Pura”, com o “Ser Transpersonal Único”. A consciência seria limitada
por ser “um subproduto do Espírito quando entra na Matéria”. As velhas
dualidades teológicas são atualizadas, até chegar a liquidação total do
indivíduo: a secularização do pecado. Essa limitação do Espírito confinado na
Matéria propicia a limitação da percepção e do pensamento, preso que está a
esquemas viciosos (melancolia, depressão, tristeza e “negatividades” em geral).
Esquemas que produzem fracasso, derrota etc.
A
verdade está no Todo e jamais no indivíduo, persistentemente limitado e em
queda numa nova forma de pecado: a do desconhecimento da “Consciência Abstrata
Pura”. Seu pecado é o da ignorância da qual o turista esotérico que fugir por
meio de roteiros de vigens enriquecedores.
Mito 3: Lugares Especiais
Existiriam
lugares especiais no planeta que nos inspirariam ou criariam condições para
compreendermos os “Sinais” enviados pelo “Todo”. Escaladas de montanhas
mágicas, caminhadas por rotas repletas de mosteiros ou igrejas, exploração de
cavernas com forças elementais, visitas a cidades que seriam vórtices ou
aberturas energéticas do planeta etc. Assim como o surgimento do alpinismo na
indústria do turismo desde 1787, como nos descreve Enzensberger, personificaria
a ideologia romântica do “elementar”, do “intocado”.
O valor desses lugares
torna-se fetiche cuja única singularidade abstrata reside na dificuldade em
alcançá-los.
Mito 4: O Antigo
O turista
esotérico viaja em busca de algum conhecimento, saber, tradição perdido na
antiguidade ou corrompido ou esquecido pela civilização materialista,
consumista e hipertecnológica. O antigo deve ter uma sabedoria necessariamente
superior a da atualidade. Ela viaja em busca da chave, de uma relíquia que
necessariamente se transformará em um suvenir de valor fetichista. Desconhece
que toda a sabedoria da humanidade é recorrente, transmitida por uma linha
condutora subterrânea cujos conteúdos ou arquétipos retornam sempre sob nova
roupagem de época. Como a própria história da sabedoria gnóstica demonstra:
Mani no século III, os Cátaros no século XII, William Blake no século XVIII e
no século XX os exemplos de Cioran e Baudrillard em vertentes filosóficas bem diversas.
O Antigo é como
um paraíso idílico perdido cujo ticket do turista é o portal que o levará aos
saberes secretos. Paradoxalmente, quando uma civilização antiga apresenta uma
tecnologia ou sabedoria verdadeiramente diversa e mais avançada do que a nossa
(como a precisão matemática apresentada pela pirâmides egípcias), recai a
suspeita da impossibilidade disso na antiguidade: recorre-se, então, a
visitantes extraterrestres que teriam compartilhado conosco a ciência e até o
DNA.
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