Quando o
envelhecimento e a morte deixam de ser simbolicamente incorporados na cultura
por meio de religiões e filosofias, o discurso midiático parece insistentemente
querer demonstrar que a velhice não existe, que é tudo uma questão de atitude
psicológica. Gerontologia, geriatria, engenharia genética e todo um aparato
tecno-científico é atualmente mobilizado para, associado à mídia, apresentar
sensacionais “lições de vida” e “superações”: idosos em praticas e comportamentos
análogos ao dos jovens criando não apenas uma aversão aos processos naturais de
envelhecimento mas, principalmente, a crise da função dos idosos como “elo
geracional”: a transmissão de sabedoria e conhecimento acumulados em uma
existência.
Já se tornou um lugar comum nas “notícias
diversas” (amenidades que em geral encerram os últimos blocos de telejornais) as
chamadas “lições de vida” que idosos nos ensinariam: um senhor de 70 anos que
pratica maratonas; uma senhora que aos 75 anos retoma a sala de aula para
concluir o ensino médio pensando na universidade e nova carreira profissional;
outro senhor de 65 anos diz orgulhar-se por aventurar-se no “mundo das
atividades físicas”: “faço
atividades físicas com força na academia para
fortalecer a musculatura e garantir que tão cedo eu não vou ter que ‘pendurar
as chuteiras’”, brinca.
Assim como aquela polêmica campanha
publicitária de um banco que afirmava que “nem parece banco”, a visão midiática
da terceira idade parece ser essa: “nem parece velho”. O discurso midiático
parece insistentemente querer demonstrar que a velhice não existe, que é uma
questão de atitude psicológica. Em nome de lições sobre “qualidade de vida”
vemos imagens de idosos parecidos com jovens ou querendo provar que são fisicamente
capazes, tanto quanto eles.
Por isso, a ciência vai mobilizar uma serie
de saberes especializados (geriatria, gerontologia, engenharia genética,
tanatologia, criônica etc.) para travar uma verdadeira luta para aliviar ou
abolir os estragos do tempo.
Em culturas tradicionais onde a velhice e
a morte eram simbolicamente incorporados no dia-a-dia, os idosos sempre foram “elos
geracionais” como transmissores de um saber acumulado, conhecimento e
sabedoria. Colocados em posição de destaque na sociedade, o natural declínio
físico era compensado pela sabedoria, amor e trabalho unidos em uma preocupação
com a posteridade na tentativa de equipar os mais jovens para levar adiante as
tarefas dos mais velhos.
Hoje toda a indústria da informação e
entretenimento faz o caminho inverso: não apenas a velhice é negada por “lições
de vida” e todo um aparato terapêutico renovado a cada dia pela indústria
farmacêutica como a própria função de “elo geracional” é esquecida: eles nada
têm a dizer para as câmeras, a não ser negar a si mesmos numa tentativa a todo
custo de aparentar uma atitude positiva e ficar parecidos com os mais jovens.
Eles foram até elevados à categoria
etnográfica no mercado: são agora os “Young Seniors”, ávidos por consumo de
gadgets que os tornem jovens. O que há por trás dessa aversão não só dos
processos de envelhecimento como, principalmente, do esquecimento da função de
elo geracional dos mais velhos?
O envelhecimento na cultura do narcisismo
Desde que a General Motors inventou a
obsolescência planejada na década de 1920, o “velho” passou a ser um entrave
para a reposição acelerada de produtos no mercado e a maximização dos lucros.
Toda a indústria da moda e publicidade vai ao longo das décadas posteriores
glamorizar o “novo” e a “novidade” como moralmente bons, prazerosos e
estimulantes. O ápice dessa verdadeira engenharia de opinião pública foi a
construção da cultura pop e jovem nas décadas de 1950-60. “Não confie em
ninguém com mais de 30”, dizia o desafiante lema jovem da contracultura: os “mais
velhos” (pais e autoridades) passaram a ser encarados como “quadrados”,
ultrapassados e intrinsecamente conservadores.
Se isso foi positivo em um momento
histórico como revolução e crítica, por outro lado seus líderes não perceberam
a ambiguidade dessa nova cultura: seria a base imaginária (ao lado do crédito)
de toda a descartabilidade e hedonismo necessários para a aceleração da
sociedade de consumo.
A família patriarcal é rapidamente
substituída pela família nuclear reduzida aos pais e poucos filhos. Os idosos
são varridos para debaixo do tapete social através da aposentadoria e
isolamento em asilos. Essa é a fase, por assim dizer, “dura” do relacionamento
do capitalismo com os seus “restos”: lixo, produtos velhos, desempregados e
idosos.
"Young Seniors": o novo nicho de consumismo |
O impacto demográfico do aumento da
expectativa de vida (associado à melhoria da qualidade de vida urbana) cria repercussões
econômicas negativas no sistema previdenciário, mas, por outro lado, chama a atenção
pelo potencial de consumo da chamada terceira idade. Dessa maneira, os idosos
vão ser incorporados à ideologia politicamente correta da reciclagem universal:
os restos do capitalismo não serão mais escondidos, mas agora reciclados como
novas comodities para o mercado: lixo (pela reciclagem ecológica), desempregados
(pela educação para o empreendedorismo ou empregabilidade) e os idosos (pelo
discurso terapêutico dos “Young Seniors”).
Pesquisadores como Christopher Lasch e
Richard Sennett chamam a atenção para esse esvaziamento do elo geracional dos
idosos por essas transformações trazidas pelas soluções médicas e sociais.
Lasch acredita que o medo em relação à
velhice não se deve tanto à cultura da juventude, mas à perda do interesse dos
homens pela vida terrena após a sua morte pela ascensão de uma personalidade
narcísica.
“Por ter o narcisista tão poucos recursos interiores, ele olha para os outros para validar seu senso de eu. Precisa ser admirado por sua beleza, encanto, celebridade ou poder – atributos que geralmente declinam com o tempo. Incapaz de alcançar sublimações satisfatórias nas formas de amor e trabalho, ele percebe que terá pouco para sustentá-lo quando a juventude passar” (LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo, R. de Janeiro, Imago, 1983,p. 254-55).
O sofrimento
central da velhice (o fato de que vivemos vicariamente em nossos filhos ou em
gerações futuras) perde suas formas sublimatórias religiosas ou filosóficas
como o amor, a sabedoria e o conhecimento, formas que nos faziam se reconciliar
com a nossa própria substituição.
O envelhecimento e o declínio do homem público
"O Retrato de Dorian Gray" de Oscar Wilde: o horror dândi à velhice contra a hipocrisia da sociedade |
Para Lasch
nossa sociedade perdeu o valor real da sabedoria acumulada por uma existência.
A chamada “sociedade da informação” manteve o caráter instrumental do
conhecimento onde, de acordo com a mudança tecnológica, torna-se obsoleto e
frequentemente intransferível. Dessa maneira a geração mais velha nada terá a
ensinar a mais jovem, a não ser as “lições de vida” midiáticas onde
obsessivamente pessoas mais velhas tentam equiparar-se aos mais jovens.
Sennett associa a crise do valor da
velhice ao próprio declínio histórico do homem público. A hipertrofia das
mídias e o culto às idiossincrasias das celebridades políticas ou artísticas cria
o esvaziamento da vida pública pela percepção narcísica de que a exposição do “interior”
é uma realidade absoluta. Ocorre uma estetização geral da esfera pública por
uma percepção performática das relações sociais dominadas pelos princípios de
impacto, sedução e encantamento do outro (veja SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público, São Paulo:
Companhia das Letras, 1987).
Culturalmente esse movimento se reflete na
negação da idade e no esforço pela longevidade que espera abolir a própria
velhice.
Aqui somos forçados a estabelecer a diferença
entre o culto à juventude dândi de Oscar Wilde em “O Retrato de Dorian Gray” e
a negação da velhice da cultura midiática atual. Em Wilde vemos uma revolta metafísica
em relação à morte que ceifará toda a sabedoria e experiência que serão
perdidos em uma sociedade hipócrita. É a mesma revolta metafísica do replicante
Roy no filme “Caçador de Andróides” (Blade Runner, 1982) que, condenado a viver
apenas quatro anos, busca desesperadamente seu criador por mais vida para que
tudo o que ele viu e conheceu não se percam “como lágrimas na chuva”.
Na atualidade experiência e sabedoria são
menos ensinamentos a ser passados para uma geração futura do que uma histérica
lição de vida performática: a de ser um velho de “cabeça jovem em um corpo são”,
cujo único conselho é o de fazer “young seniors” transformarem-se em ávidos
consumidores de mercadorias terapêuticas que ajudem a negar a si mesmos como
testemunhas vivas do tempo e de uma sabedoria que se perdeu.