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quinta-feira, fevereiro 15, 2024

Arte, capitalismo e crime em um microcosmo gnóstico no filme 'Dentro'

Willem Dafoe é um ladrão especializado em roubo de obras de arte milionárias que fica acidentalmente preso em uma cobertura high tech em Manhattan. Trancafiado e incomunicável com o mundo exterior, ironicamente está preso com os milhões de dólares de um colecionador de artes. Arte que se tornou supérflua na sua luta por água e comida numa situação ironicamente cruel. “Dentro” (Inside, 2023, disponível na Amazon Prime Video) é uma cínica e irônica reflexão sobre arte, capitalismo e crime, mas principalmente sobre como a dimensão estética pode ser inspiradora na fuga de uma cobertura que vira um microcosmo da condição humana. Principalmente depois de o ladrão encontrar uma edição do “Casamento do Céu e do Inferno” de William Blake, o filme ganha...

sexta-feira, janeiro 26, 2024

Um manifesto ciborgue e a reconfiguração do feminismo em 'Pobres Criaturas'

Yorgos Lanthimos, o diretor líder daquilo que os cinéfilos chamam de “onda estranha grega”, mais uma vez em “Pobres Criaturas” (Poor Things, 2023, com onze indicações ao Oscar) lança mão da estranheza. Com um tema obsessivo na sua obra, desde “Dente Canino” (2009): personagens totalmente incongruentes entre si no qual violência, amor, culpa, erotismo, misticismo e horror se misturam em espaços claustrofóbicos ou famílias que se transformam em prisões. Dessa vez, Lanthimos foca sua lente estranha nas questões de identidade e gênero numa espécie de releitura feminista do Frankenstein de Mary Shelley, adaptando o livro “Poor Things” de Alasdair Gray. Livro que certamente se inspirou no “Manifesto Ciborgue” que reconfigurou o feminismo ao se apropriar...

sábado, janeiro 13, 2024

Canibalismo e horror cósmico em 'A Sociedade da Neve'

A história dos sobreviventes dos Andes (o acidente aéreo de 1972 com dezesseis sobreviventes entre 45 pessoas a bordo) já foi contada e recontada na literatura e cinema – sempre com o toque sensacionalista do canibalismo. Mas em “A Sociedade da Neve” (2023), do diretor espanhol J.A. Bayona, a questão do canibalismo é colocada num cenário mais amplo: o do horror metafísico ou cósmico, com forte traço gnóstico. Os planos grandiosos dos Andes os infinitos campos de neve contrastando com fragilidade dos sobreviventes diante da escala do cenário acentuam a absoluta indiferença da Natureza diante da presença humana. Ali não há Deus, propósitos divinos, sentido ou sequer destino. Apenas a fúria dos elementos. Diante da “morte de Deus” resta o pós-humano:...

quarta-feira, janeiro 03, 2024

Memórias em ruínas no filme 'Retratos Fantasmas'

As ruínas nos fascinam. Desde o início da arqueologia moderna, influenciou a sensibilidade artística criando um imaginário associado a memórias, fantasmas e desaparecimento até chegar, no século XX, ao “princípio das ruínas” como propaganda e estética política nazista: ruínas como inspirações para as gerações futuras. Kleber Mendonça Filho consegue representar esse imaginário em “Retratos Fantasmas” (2023) através de uma jornada pessoal e sociopolítica pelas memórias trazidas pelas ruínas urbanas: da casa vizinha ao edifício em que mora aos cinemas de rua abandonados do Centro do Recife. Como a modernidade cria incessantemente ruínas. E como nos relacionamos com elas através das memórias. Além de as ruínas apontarem para o futuro quando salas...

sábado, novembro 30, 2019

A tecnologia toma o lugar do sobrenatural no gótico norte-americano em "The Room"

O gênero Gótico tem suas origens no Velho Mundo europeu com seus castelos e masmorras de sociedades que desapareceram. Já o gótico norte-americano é um interessante subgênero originado numa sociedade puritana que produziu ficções em torno de culpa, pecado original, abominações humanas decorrentes da miscigenação racial, incesto etc. E ainda mais interessante quando um filme desse subgênero é escrito e dirigido por um olhar europeu. Esse é o filme franco-belga “The Room” (2019): cansado de viver em Nova York, um jovem casal muda-se para um casarão vitoriano no interior de New Hampshire. Lá encontrarão não o sobrenatural, mas o horror produzido por uma misteriosa tecnologia por trás das paredes daquele casarão, capaz de materializar qualquer...

domingo, junho 03, 2018

Curta da semana: "The Cut-Ups" - o filme que fez pesoas fugirem desorientadas do cinema

Esse curta metragem é para cinéfilos aventureiros e corajosos. Numa parceria entre o escritor norte-americano “beatnik” William Burroughs e o distribuidor de filmes de terror B Anthony Balch, o curta “The Cut-Ups” (1966) foi exibido por duas semanas em Londres naquele ano, causando uma “desorientação de sentidos” na plateia pega de surpresa. Pessoas corriam da sala de projeção largando seus pertences, com sensações de náusea, nojo e desorientação. Burroughs conhecia a técnica dadaísta do “cut-up” (recorte) de justaposição aleatória de recortes. Então, o escritor resolveu aplicar em outras mídias como fitas de áudio e cinema. Para ele,  a técnica (muito usada depois por compositores do rock como David Bowie) ajudaria a nos libertarmos...

quarta-feira, maio 17, 2017

A obsessão pela felicidade: em defesa da melancolia

Neste momento a sociedade reúne todo um arsenal médico-terapêutico-psicológico-farmacêutico para extirpar o mal que atormenta milhares de almas: a melancolia e a depressão. O professor de literatura inglesa da Wake Forest University Erik Wilson vê na obsessão pela busca da felicidade na atual sociedade de consumo como uma desconsideração medrosa do valor da tristeza: a agitação da alma que se transforma no impulso vital de toda cultura próspera. Se o Prozac existisse desde séculos atrás, certamente não veríamos hoje muitas obras primas nos campos da literatura, pintura e ciências. Esse é o tema do recente livro de Wilson “Against Happiness: in praise of melanchol...

terça-feira, abril 19, 2016

Em Observação: "Zoom" (2015) - a metalinguagem até as últimas consequências

Um filme inspirado nas imagens recursivas e metalinguísticas do artista plástico M.C.Escher. São três histórias interligadas onde o desenrolar de uma determina o destino de outra como fossem narrativas dentro de outras narrativas, produzindo uma circularidade infinita. É o filme “Zoom”, uma co-produção Brasil/Canadá dirigida por Pedro Morelli. Recursividade e metalinguagem são temas do filme gnóstico – são formas linguísticas de desvelar a ilusão e mostrar o multifacetamento da realidade ao serem exploradas até as últimas consequências. Mas também são recursos perigosos onde o filme pode se transformar em mero exercício vazio de estilo. É o que o “Cinegnose” vai conferi...

sexta-feira, fevereiro 26, 2016

Curta da Semana: "Em" - o Tempo que nos separa

O curta “Em” (2013), do coletivo de cinema paraense “Quadro A Quadro”, leva às últimas consequências o significado dessa preposição: a intensidade do amor e do prazer se sucedem nos breves instantes da vida de um casal, mas o Tempo irá corroer até tudo extinguir, dividindo-os assim como a faca que corta o pão. Livremente inspirado na poética do paraense Max Martins, o curta consegue, através da linguagem audiovisual, expressar um tema tão abstrato: como o Tempo manifesta-se dentro de nós. Como introjetamos em nós essa falha cósmica - destruição, dissipação, morte, entropi...

domingo, agosto 02, 2015

Amor e paradoxos quânticos no filme "Em Algum Lugar do Passado"

Por que um filme tão odiado pela crítica especializada na sua época como “Em Algum Lugar do Passado” (Somewhere in Time, 1980) em pouco tempo tornou-se um novo clássico e um fenômeno cult? Diferente de outros filmes sobre viagem no tempo com forte ênfase social, “Em Algum Lugar do Passado” é uma tragédia amorosa, melodramática sob a trilha onipresente de Rachmaninoff. Porém, há algo mais pulsando por trás de camadas e camadas de romantismo hollywoodiano: o primeiro filme a aproximar o tema do amor aos paradoxos quânticos do tempo, assim como hoje fazem filmes como “Interestelar” de Nolan ou “Amantes Eternos” de Jarmusc...

sábado, fevereiro 28, 2015

Morsas e ostras mataram John Lennon?

A música mais enigmática dos Beatles aparece no maior fracasso comercial do grupo, o filme “Magical Mystery Tour” de 1967, hoje reavaliado como obra de arte ao nível do humor do grupo Monty Python ou do surrealismo de Buñuel. Inspirado no poema “A Morsa e o Carpinteiro” de Lewis Carroll, a música “I’m The Walrus” composta por John Lennon apresenta uma letra sombria, obscura e misteriosa com referências a genocídios, drogas e jovens que seriam seduzidos por uma “Morsa” que estaria levando-os para a destruição – no poema de Carroll aparecem “jovens ostras” . Será que a música foi alguma espécie de acerto de contas de Lennon com a culpa e o remorso de saber ter feito parte de uma gigantesca estratégia de engenharia social por trás da cultura...

sexta-feira, outubro 31, 2014

Em "Amantes Eternos" a melancolia dos vampiros denuncia a decadência dos vivos

Conhecido pelos seus protagonistas que vivem sempre à margem da sociedade, arrebatados pelo vazio existencial e, por isso, capazes de um olhar mais crítico e verdadeiro, o diretor Jim Jarmusch (“Estranhos no Paraíso”, “Down By Law”, “Dead Man”, “Flores Partidas”) agora acrescenta os vampiros a sua galeria de anti-heróis. Em “Amantes Eternos” (Only Lovers Left Alive, 2013) Jarmusch questiona como seria viver eternamente em um mundo de seres mortais. Como seres que atravessaram séculos por todas as cenas culturais, científicas e artísticas poderiam viver num mundo que parece ter esquecido de tudo que de mais importante a História ofereceu (como, por exemplo, o trágico destino das ideias do cientista Nikola Tesla), e vê no You Tube a sua única...

sábado, outubro 11, 2014

"Jogo de Cena" embaralha cartas da ficção e do real

Câmeras de vigilância, celulares através dos quais performamos constantes selfies, telas de computador, de TVs e de cinema, imagens dos indivíduos captas pelas câmeras de vitrines nos shoppings e exibidas para os próprios consumidores etc. Estamos cercados de dispositivos visuais que acabaram criando uma espécie de saber inconsciente audiovisual: criamos nossas próprias auto-mis-en-scènes. Sabemos criar personas através do cinema e fotografia, de tal maneira que ficção e História, ilusão e realismo acabaram se fundindo na modernidade. Esse é o tema latente no documentário “Jogo de Cena”(2007) de Eduardo Coutinho: anônimos contam suas histórias, enquanto atores tentam reencenar essas narrativas anônimas. Quem é ator e quem é anônimo, quem...

sábado, outubro 04, 2014

"O Doador de Memórias" e a terceira onda do Gnosticismo Pop no cinema

Com o filme “O Doador de Memórias” (The Giver, 2014) Hollywood acrescenta mais uma produção a uma série de filmes sobre mundos distópicos dominados por estados policiais totalitários. Essas produções vem retomando símbolos e narrativas gnósticas, mas dessa vez em uma nova fórmula:  um mix de Gnosticismo com “1984” de Orwell e “Admirável Mundo Novo” de Huxley. Essa terceira onda de Gnosticismo pop no cinema, assim como nas ondas anteriores, está relacionada com alterações nos paradigmas tecnológicos. Na atualidade, o projeto da Internet das Coisas e a nanotecnologia, criando possibilidades de geolocalização e controle total da privacidade. A obsessão atual de Hollywood por essas distopias faz surgir teorias conspiratórias como a chamada...

quarta-feira, julho 02, 2014

"Agnosia" revela formas alternativas da mente no cinema

O filme espanhol “Agnosia” de Eugenio Mira e “A Origem” de Christopher Nolan foram lançados no mesmo ano de 2010. São dois filmes com versões diferentes para o mesmo tema: um thriller de espionagem industrial que envolve a invasão da mente de alguém para extraírem um segredo que envolve interesses corporativos. Um exercício de análise comparativa entre os dois filmes revela diferentes formas de representar a mente humana: se na Europa a Psicanálise e a psicologia da percepção possuem prestígio no meio artístico e intelectual, nos EUA a mente não é pensada como uma máquina desejante, mas informática onde dados são deletados ou inseridos. Enquanto “Agnosia” é um conto gótico inspirado em psicanálise, “A Origem” é o inconsciente traduzido pelas...

sábado, março 29, 2014

A filosofia do ressentimento em "Um Homem com Duas Vidas"

Um olhar tragicômico sobre o ressentimento. Com uma complexa narrativa repleta de flash backs onde memórias e fantasias se misturam (marca registrada do belga Jaco Van Dormael, diretor do filme “Sr Ninguém” de 2009), “Um Homem Com Duas Vidas” (Toto Le Héros, 1991) conta a história de Thomas, um homem que acredita que a sua vida foi roubada e, com a ajuda de um agente secreto imaginário chamado Toto, pretende vingar-se. Embora a constelação de afetos que formam o ressentimento (raiva, inveja, amargura e vingança) seja tratada pelo filme de forma leve e cômica, a complexidade narrativa que funde o passado com o presente levanta uma questão central: o esquecimento. Freud e Nietzsche deram respostas diferentes: para o pai da psicanálise o esquecimento...

quarta-feira, novembro 20, 2013

O espectro da Patafísica no show midiático do mensalão

Para que serviu o show midiático da prisão dos "mensaleiros" cuidadosamente roteirizado pelo STF e a mídia se todos os lados do espectro político interpretam o episódio a seu favor? Talvez a verdadeira função do show tenha sido imaginária, como um verdadeiro “potlatch” político: um espetáculo irônico de destruição e desperdício de recursos públicos, cujo processo de julgamento do mensalão supostamente queria combater através de uma exemplar demonstração moralizante. Tal qual a instituição primitiva do “potlatch”, um show oferecido como dádiva em pleno feriado como demonstração de poder inútil e fetichista. Espetáculo de desperdício de riqueza como forma mítica de sedução e fascínio.  Se isso for verdade, testemunhamos um evento político...

sexta-feira, novembro 08, 2013

Rei do Camarote e Huck "Gigante": bombas semióticas no front da guerrilha dos memes

Uma semana depois do contra-ataque involuntário às bombas semióticas do Enem feito por um estudante que simulou ser um candidato atrasado, veio a reação: uma nova bomba semiótica, dessa vez em um novo front, ainda mais letal por atingir dessa vez a percepção e a memória, instâncias pré-linguísticas. O vídeo do “Rei do Camarote” transformou-se em novo meme que explode em uma guerrilha memética cujo ponto de partida foi o filme publicitário “Gigante” protagonizado pelo apresentador Luciano Huck: memes intencionalmente elaborados para tornar o contínuo midiático ainda mais tenso e pesado. A proximidade do final do ano e a lembrança que também nos aproximamos da Copa do Mundo e eleições presidenciais, está tornando cada vez mais pesada a...

quarta-feira, agosto 28, 2013

O demônio é um anjo caído em "O Advogado do Diabo"

Apesar de flertar com temas místicos e espirituais não ortodoxos, Hollywood ainda precisa manter as convenções dos gêneros cinematográficos. Um dos exemplos dessa dualidade vivida pelo cinema comercial é o filme “O Advogado do Diabo” (Devil’s Advocate, 1997) onde o diretor Taylor Hackford tenta inserir uma visão mais matizada e ambígua da figura do Diabo em meio aos tradicionais clichês satânicos reforçados por efeitos de computação gráfica. Através da inesquecível performance de Al Pacino, o filme nos apresenta uma sutil visão do Diabo como uma figura prometeica, um anjo caído e condenado pelo Criador por ter apresentado ao homem o fruto do conhecimento. O ano é 1997. Na segunda metade dessa década Hollywood vive uma espécie de guinada...

sábado, fevereiro 09, 2013

O mito da segunda chance no filme "Perdido Entre Dois Mundos"

Uma comédia leve e despretensiosa. Não fosse o filme francês “Perdido entre Dois Mundos” (Les Deux Mondes, 2007) estar inserido em uma recente recorrência de filmes que desenvolvem o tema da “segunda chance”, passaria despercebido. Mas não é o caso.  A cinematografia recente vem intensificando a exploração do tema em que se narra a possibilidade de o protagonista ter uma segunda chance (seja através do  deslocamento no tempo ou migrando para mundos alternativos) para se redimir de erros do passado ou do presente. Nesses filmes a fuga para outras dimensões não é mera fantasia escapista para atender aos sonhos dos espectadores. Pretendem ser “inspiradores e motivacionais” para convidar os espectadores à necessidade de transformações íntimas,...

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