sexta-feira, dezembro 07, 2012

Niemeyer e Brubeck: a morte da utopia da "arte total"

Em meio à influência do cartesianismo de Le Corbusier e Bauhaus no Palácio do Itamarati, Oscar Niemeyer inseriu a sensualidade e força ascendente de uma escadaria interior que reinventou a vanguarda. O riff de piano sincopado, quase sinistro, de “Take a Five” acompanhado por uma misteriosa linha de saxofone que flutuava sobre o ritmo 5/4 igualmente foi outra reinvenção, dessa vez de Dave Brubeck no Jazz. A morte desses dois artistas no mesmo dia tem um significado altamente simbólico, sincromístico: não foi apenas a morte de dois grandes expoentes nas suas respectivas áreas de atividade – arquitetura e música – mas o desfecho ao mesmo tempo de uma era e da utopia que sustentou todo o movimento modernista do século XX: a “obra de arte total”, a utopia romântica de que a arte abandonasse o estéril esteticismo e fosse capaz de fazer uma síntese entre o artístico e o social.

Leveza e elegância. Assim pode ser definida a arte tanto de Niemeyer quanto de Brubeck, menos por uma suposta “poesia do concreto” ou pelo “jazz branco” como alardeiam os obituários midiáticos e muito mais pelo excelente paradoxo que eles representaram: diferente das vanguardas artísticas tradicionalmente agressivas e arrogantes, eles conseguiram conciliar a invenção dentro da tradição. Niemeyer inseriu a curva, sensualidade e imaginação no cartesianismo das linhas retas e angulosas de Le Corbusier e Mies Van Der Rohe, enquanto Brubeck inseriu métricas inspiradas em músicos de rua da Turquia (quando da excrusão com o seu Quarteto naquele país na década de 1950) no jazz tradicional do tempo 3/4 ou 4/4, métricas características da valsa.

Como típicos artistas representantes do ideário modernista, viam nas suas artes muito mais do que um diletante esteticismo, mas buscavam a obra de arte total capaz de integrar arte e vida, estética e sociedade.


A Arte Total


A trajetória do conceito de “arte total” é difícil e sinuosa, pois no século XX acabou se misturando a concepções totalitárias como a do nacional-socialismo dos nazis no período entre guerras – a integração da estética e política por meio da propaganda. A ideia elementar da obra de arte total já se configurou na ópera wagneriana numa tentativa de superação da diferença entre a estética e a existência real como uma crítica dos valores alienantes da revolução industrial. Wagner via a ópera como um espetáculo integrador de todas as artes e, nelas, a própria história da civilização.

Bauhaus: a esperança civilizatória
no concreto e no vidro.
Desde Schiller, Schinkel e Hegel a modernidade de baseou nessa utopia romântica de que a educação estética desempenharia um papel civilizador: música, poesia, ópera e, mais tarde, a arquitetura e o urbanismo, seriam espetáculos integradores e de reconciliação entre arte e vida, configurando soluções e conciliando conflitos sociais.

As experiências revolucionárias das vanguardas modernistas de Ruskin à Bauhaus surgiram sob o teor espiritualista dos expressionistas, das suas visões sobre o ocaso da civilização tão bem representado em obras como “O Grito” de Munch. Por exemplo, Le Corbusier chamava a atenção para os perigos de um colapso que a evolução desenfreada e caótica do industrialismo nos conduziria fatalmente e Gropius nos anos 30 definia as metrópoles como infernos de asfalto e cimento. Cineastas como Fritz Lang estilizaram filmicamente visões angustiantes de magalópoles apocalípticas como no filme “Metrópolis” de 1928.

Na arquitetura, Gropius e Le Corbusier viam no formalismo cartesiano do concreto e na transparência do vidro a esperança civilizatória de que a arte se integrasse ao cotidiano: estruturas vazadas, grandes fachadas em vidro como formas de integração da estrutura com o entorno, a utilização de pilots a fim de liberar espaço sob os edifícios e permitir integração social, etc.


Uma civilização brasileira


Niemeyer vai absorver tudo isso e integrar à ideologia política do Comunismo, ideal já latente nas vanguardas artísticas do século XX: integrar um edifício com o entorno através do paisagismo e com outras artes plásticas através de azulejos decorados, murais e esculturas não era apenas “arte” ou “arquitetura”, era um projeto revolucionário de socializar a estética, educar a percepção das massas pela poesia.

Através de Juscelino Kubitscheck, Niemeyer viu nos projetos da Pampulha e Brasília a realização utópica desse projeto modernista e civilizatório – no cartesianismo europeu do concreto e vidro ele inseriu a curva fazendo dialogar a vanguarda com a tradição do barroco colonial brasileiro, o espírito conquistador dos bandeirantes (uma civilização industrial representada por Brasíllia enxertada repentinamente no sertão selvagem) mesclado com o ideal socializante das transparências dos palácios abertos para grandes áreas destinadas à concentração popular.

Igreja da Pampulha: o projeto de
uma civilização brasileira abortada pelo
golpe militar de 1964.
Niemeyer viu o início da construção de uma verdadeira civilização brasileira quando a “esquisitice” de Brasília aos poucos começa a ser incorporada ao imaginário popular na MPB e no cinema (Brasília como o símbolo da terra das oportunidades e do progresso nacionalista em filmes como "Um Candango na Belacap" - 1961 ou "Samba em Brasília" - 1960), até tudo ser abortado pelo golpe militar de 1964 e o país ser invadido pela arquitetura pós-moderna norte-americana trazendo o colapso da utopia da “arte total” modernista.

Prédios “inteligentes” transformam-se em “bunkers” que não mais dialogam com o entorno com suas fachadas espelhadas ou em fumê, construções vedadas e mantidas por sistemas de ventilação central totalmente separadas do ambiente externo. Ou edificações se transformam em verdadeiros pastiches arquitetônicos como, por exemplo, neoclássicos misturados com esquadrias de alumínio e vidros espelhados cujas entradas são estilizações dos tímpanos de catedrais.

A arte como princípio organizador é substituída pela mídia – prédios informatizados (ou “inteligentes”) se isolam através de fachadas que se assemelham a gigantescos video-walls, a transparência do vidro substituída pela metáfora da tela midiática.

Reinvenção do Jazz


Enquanto Niemeyer procurava reinventar as vanguardas, Brubeck reinventava o jazz ao paradoxalmente combinar a sua formação erudita (ou quase, já que ele se recusava a ler partituras) com a busca de estranhos ritmos sincopados.

Numa época em que o jazz e o blues utilizavam o padrão de tempo 4/4 ou 3/4 da valsa, o álbum “Time Out” do Dave Brubeck Quartet de 1959 apresentou estranhos beats exóticos como o 5/4 na “Take Five” ou em 9/8 em “Blue Rondo a La Turk”. Essas assinaturas em tempos estranhamente sincopados para a época abriu a porta para ritmos mais agressivos no jazz e além. Quando roqueiros progressivos proclamaram a influência do jazz (como integrantes de bandas como Yes e Van Der Graaf Generator na década de 1970) certamente pensavam em Dave Brubeck.

O álbum “Time Out” foi mais um exemplo da arte total integrada ao espírito de época, cuja concepção da capa refletia essa sintonia: a arte abstrata de vanguarda de Neil Fujita expressava a década onde no cinema começavam a despontar os anti-heróis cínicos e desajustados como nos filmes “Juventude Transviada” (Rebel Without a Cause”, 1955 com James Dean) e no “O Selvagem” (The Wild One, 1953 com Marlon Brando); e na literatura Tenesse Willians e Truman Capote com “Um Bonde Chamado Desejo” e “À Sangue Frio” (cuja capa da edição de 1966 foi de Fujita) mostravam que havia algo errado por trás da aparência da sociedade de consumo norte-americana.

A exemplo de Niemeyer, Brubeck com leveza e elegância inseria um elemento transgressivo (o tempo sincopado) em uma tradição musical, expressando um cenário sócio-cultural que dava início a crítica e contestação que marcariam as próximas décadas.

O riff de piano sincopado, quase sinistro, de “Take a Five” acompanhado por uma misteriosa linha de saxofone que flutuava sobre o ritmo 5/4 foi talvez um desses últimos momentos em que a arte tornou-se total. Mais do que mero entretenimento conformado à nossa rotina, expressou um espírito desestabilizador e crítico.

Certamente, um vídeo sobre a construção de Brasília ao som de “Take Five” seria a melhor homenagem desse último sopro de vitalidade modernista.

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