Em meio à influência
do cartesianismo de Le Corbusier e Bauhaus no Palácio do Itamarati, Oscar
Niemeyer inseriu a sensualidade e força ascendente de uma escadaria interior
que reinventou a vanguarda. O riff de piano sincopado, quase sinistro, de “Take
a Five” acompanhado por uma misteriosa linha de saxofone que flutuava sobre o
ritmo 5/4 igualmente foi outra reinvenção, dessa vez de Dave Brubeck no Jazz. A
morte desses dois artistas no mesmo dia tem um significado altamente simbólico,
sincromístico: não foi apenas a morte de dois grandes expoentes nas suas
respectivas áreas de atividade – arquitetura e música – mas o desfecho ao mesmo
tempo de uma era e da utopia que sustentou todo o movimento modernista do
século XX: a “obra de arte total”, a utopia romântica de que a arte abandonasse
o estéril esteticismo e fosse capaz de fazer uma síntese entre o artístico e o
social.
Leveza e elegância. Assim pode
ser definida a arte tanto de Niemeyer quanto de Brubeck, menos por uma suposta
“poesia do concreto” ou pelo “jazz branco” como alardeiam os obituários
midiáticos e muito mais pelo excelente paradoxo que eles representaram: diferente
das vanguardas artísticas tradicionalmente agressivas e arrogantes, eles
conseguiram conciliar a invenção dentro da tradição. Niemeyer inseriu a curva,
sensualidade e imaginação no cartesianismo das linhas retas e angulosas de Le
Corbusier e Mies Van Der Rohe, enquanto Brubeck inseriu métricas inspiradas em
músicos de rua da Turquia (quando da excrusão com o seu Quarteto naquele país na década de 1950) no jazz tradicional do tempo 3/4 ou 4/4, métricas características da valsa.
Como típicos artistas
representantes do ideário modernista, viam nas suas artes muito mais do que um
diletante esteticismo, mas buscavam a obra de arte total capaz de integrar arte
e vida, estética e sociedade.
A Arte Total
A trajetória do conceito de
“arte total” é difícil e sinuosa, pois no século XX acabou se misturando a
concepções totalitárias como a do nacional-socialismo dos nazis no período
entre guerras – a integração da estética e política por meio da propaganda. A
ideia elementar da obra de arte total já se configurou na ópera wagneriana numa
tentativa de superação da diferença entre a estética e a existência real como
uma crítica dos valores alienantes da revolução industrial. Wagner via a ópera
como um espetáculo integrador de todas as artes e, nelas, a própria história da
civilização.
Bauhaus: a esperança civilizatória no concreto e no vidro. |
Desde Schiller, Schinkel e Hegel
a modernidade de baseou nessa utopia romântica de que a educação estética
desempenharia um papel civilizador: música, poesia, ópera e, mais tarde, a
arquitetura e o urbanismo, seriam espetáculos integradores e de reconciliação
entre arte e vida, configurando soluções e conciliando conflitos sociais.
As experiências revolucionárias
das vanguardas modernistas de Ruskin à Bauhaus surgiram sob o teor
espiritualista dos expressionistas, das suas visões sobre o ocaso da
civilização tão bem representado em obras como “O Grito” de Munch. Por exemplo,
Le Corbusier chamava a atenção para os perigos de um colapso que a evolução
desenfreada e caótica do industrialismo nos conduziria fatalmente e Gropius nos
anos 30 definia as metrópoles como infernos de asfalto e cimento. Cineastas
como Fritz Lang estilizaram filmicamente visões angustiantes de magalópoles
apocalípticas como no filme “Metrópolis” de 1928.
Na arquitetura, Gropius e Le
Corbusier viam no formalismo cartesiano do concreto e na transparência do vidro
a esperança civilizatória de que a arte se integrasse ao cotidiano: estruturas
vazadas, grandes fachadas em vidro como formas de integração da estrutura com o
entorno, a utilização de pilots a fim de liberar espaço sob os edifícios e
permitir integração social, etc.
Uma civilização brasileira
Niemeyer vai absorver tudo isso
e integrar à ideologia política do Comunismo, ideal já latente nas vanguardas
artísticas do século XX: integrar um edifício com o entorno através do
paisagismo e com outras artes plásticas através de azulejos decorados, murais e
esculturas não era apenas “arte” ou “arquitetura”, era um projeto revolucionário de
socializar a estética, educar a percepção das massas pela poesia.
Através de Juscelino Kubitscheck,
Niemeyer viu nos projetos da Pampulha e Brasília a realização utópica desse
projeto modernista e civilizatório – no cartesianismo europeu do concreto e
vidro ele inseriu a curva fazendo dialogar a vanguarda com a tradição do
barroco colonial brasileiro, o espírito conquistador dos bandeirantes (uma
civilização industrial representada por Brasíllia enxertada repentinamente no
sertão selvagem) mesclado com o ideal socializante das transparências dos
palácios abertos para grandes áreas destinadas à concentração popular.
Igreja da Pampulha: o projeto de uma civilização brasileira abortada pelo golpe militar de 1964. |
Niemeyer viu o início da
construção de uma verdadeira civilização brasileira quando a “esquisitice” de
Brasília aos poucos começa a ser incorporada ao imaginário popular na MPB e no
cinema (Brasília como o símbolo da terra das oportunidades e do progresso
nacionalista em filmes como "Um Candango na Belacap" - 1961 ou "Samba em Brasília" - 1960), até tudo ser abortado pelo golpe militar de 1964 e o país ser
invadido pela arquitetura pós-moderna norte-americana trazendo o colapso da
utopia da “arte total” modernista.
Prédios “inteligentes”
transformam-se em “bunkers” que não mais dialogam com o entorno com suas
fachadas espelhadas ou em fumê, construções vedadas e mantidas por sistemas de
ventilação central totalmente separadas do ambiente externo. Ou edificações se
transformam em verdadeiros pastiches arquitetônicos como, por exemplo,
neoclássicos misturados com esquadrias de alumínio e vidros espelhados cujas
entradas são estilizações dos tímpanos de catedrais.
A arte como princípio
organizador é substituída pela mídia – prédios informatizados (ou
“inteligentes”) se isolam através de fachadas que se assemelham a gigantescos video-walls, a transparência do vidro substituída
pela metáfora da tela midiática.
Reinvenção do Jazz
Enquanto Niemeyer procurava
reinventar as vanguardas, Brubeck reinventava o jazz ao paradoxalmente combinar
a sua formação erudita (ou quase, já que ele se recusava a ler partituras) com
a busca de estranhos ritmos sincopados.
Numa época em que o jazz e o
blues utilizavam o padrão de tempo 4/4 ou 3/4 da valsa, o álbum “Time Out” do
Dave Brubeck Quartet de 1959 apresentou estranhos beats exóticos como o 5/4 na “Take Five” ou em 9/8 em “Blue Rondo a
La Turk”. Essas assinaturas em tempos estranhamente sincopados para a época
abriu a porta para ritmos mais agressivos no jazz e além. Quando roqueiros
progressivos proclamaram a influência do jazz (como integrantes de bandas como
Yes e Van Der Graaf Generator na década de 1970) certamente pensavam em Dave
Brubeck.
O álbum “Time Out” foi mais um
exemplo da arte total integrada ao espírito de época, cuja concepção da capa
refletia essa sintonia: a arte abstrata de vanguarda de Neil Fujita expressava
a década onde no cinema começavam a despontar os anti-heróis cínicos e
desajustados como nos filmes “Juventude Transviada” (Rebel Without a Cause”,
1955 com James Dean) e no “O Selvagem” (The Wild One, 1953 com Marlon Brando); e
na literatura Tenesse Willians e Truman Capote com “Um Bonde Chamado Desejo” e
“À Sangue Frio” (cuja capa da edição de 1966 foi de Fujita) mostravam que havia
algo errado por trás da aparência da sociedade de consumo norte-americana.
A exemplo de Niemeyer, Brubeck
com leveza e elegância inseria um elemento transgressivo (o tempo sincopado) em
uma tradição musical, expressando um cenário sócio-cultural que dava início a
crítica e contestação que marcariam as próximas décadas.
O riff de piano sincopado, quase sinistro, de “Take a Five” acompanhado
por uma misteriosa linha de saxofone que flutuava sobre o ritmo 5/4 foi talvez
um desses últimos momentos em que a arte tornou-se total. Mais do que mero
entretenimento conformado à nossa rotina, expressou um espírito
desestabilizador e crítico.
Certamente, um vídeo sobre a
construção de Brasília ao som de “Take Five” seria a melhor homenagem desse
último sopro de vitalidade modernista.