Crianças são
imprevisíveis, principalmente no que pensam e falam. Suas impressões e tiradas
são muitas vezes surpreendentemente cortantes pela sinceridade e concisão.
Ideias que para os adultos já são tão evidentes em si mesmas que passam batidas
e sem exigência de reflexão, para uma criança que as conhece pela primeira vez
muitas vezes são motivos de estranhamento. Uma delas é a ideia de “Deus”. Outro
dia, meu filho Gael demonstrou toda sua estranheza: “O Deus é meu inimigo!”,
disparou. O que está por trás dessa afirmação de uma criança de quatro anos em
um universo lúdico povoado de super-heróis como Homem Aranha e Ben 10, seus
preferidos?
Um dia Gael virou para minha esposa e falou com convicção: “O Deus é
meu inimigo!”. “Mas o que Ele te fez?”, perguntou Tatiane pega de surpresa com uma
afirmação tão dura. “Todos têm medo do Deus. Eu só tenho medo dos meus inimigos
e vilões. Então, o Deus é meu inimigo”, concluiu em um evidente silogismo aristotélico.
A aproximação dos termos “inimigos” e “vilões” torna claro que Gael não se
referia a inimigos pessoais, mas os vilões dos super-heróis com os quais ele se
identifica. Um herói teme seus inimigos (o início da sabedoria dos
super-heróis) para depois encontrar o ponto fraco e vencê-los.
O que me surpreendeu foi a sua concepção de Deus como uma
entidade punitiva e grave que impõem respeito através do medo. Gael não estuda
em uma escola religiosa, mas pedagogicamente crítica, construtivista e laica.
Certamente tal concepção não foi passada diretamente em aulas de religião,
catecismo ou mesmo Filosofia. Se ele não recebeu essa concepção de Deus de
forma doutrinária ou religiosa, só pode ter apreendido indiretamente dentro do
contínuo cultural no qual estamos imersos.
O interessante no silogismo de Gael é de um lado a
identificação com os super-heróis e a forma que eles os confronta com Deus em
seu raciocínio. Gael quer pensar pela lógica dos super-heróis, onde Deus, que
causa temor, só pode ser seu inimigo.
Deus no contínuo cultural
O inferno: mais facil de se apreender intelectualmente do que a definição difusa e abstrata de Deus |
Para destrinchar o duro raciocínio sobre Deus feito por Gael,
temos que começar tentando entender de onde ele tirou essa percepção sobre Ele,
em uma época onde as religiões e as representações midiáticas aparentemente
aproximam-se das concepcções como o amor, compaixão e perdão – a visão sobre
Deus que Jesus trouxe em suas mensagens que estão descritas nos evangelhos do
Novo Testamento bíblico. Jesus teria trazido essa nova dimensão de Deus,
abandonando o “olho por olho, dente por dente” do Velho Testamento, de uma
divindade intolerante e punitiva.
Karen Armstrong no seu livro Uma História de Deus, citando James Joyce que dizia que estava
cansado de ouvir falar nos sermões sobre o fogo do inferno, sempre achava na
infância que essas ideias eram mais poderosas do que a de Deus: fogo e inferno
eram mais facilmente apreendidas intelectualmente, enquanto Deus sempre foi uma
entidade difusa e abstrata. “O que é Deus? É o Espírito Supremo, o Único que
existe por Si Mesmo e infinito em suas perfeições. Não surpreende que isso
pouco significava para mim”, raciocina a autora.
Armstrong descreve seus estudos ao se tornar noviça em uma
ordem religiosa onde se dedicou à apologética, teologia, às Escrituras e
história da Igreja. Para ela, “Deus entrava muito pouco nessas coisas. Pareciam
que se concentravam mais em detalhes secundários e nos aspectos mais
periféricos da religião”.
De palpável a religião parece apresentar dois aspectos: as
instituições com suas normas, estrutura verticalizada e organização e o senso
de “numinoso” como define o historiador das religiões Rudolf Otto (A Ideia do Sagrado, 1917) como um
impulso paradoxal do ser humano – orgiástico e selvagem e ao mesmo tempo a
humildade e o assombro diante da presença de forças misteriosas a todo aspecto
da vida. Em outras palavras, o impulso pela transcendência, de superar a si
mesmo e aos limites que confinam a existência humana.
Não demoraria para que esse anseio por transcendência entrasse
em choque com a religião institucionalizada. Quando Jesus explicitou isso ao
dizer aos seus discípulos que jamais seria o detentor único dos seus poderes
(qualquer um seria se tivesse “fé”), isto é, ao dizer que ter “fé” não era
adotar uma teologia correta, mas cultivar uma atitude interior de entrega a
Deus entrou em choque com o fervoroso monoteísmo dos rabinos.
A partir daí até a institucionalização da Igreja Cristã em
II DC, esse impulso transcendente potencialmente contrário a qualquer
institucionalização terrena, é racionalizado e aprisionado nos dogmas e na
oposição “ortodoxia” versus “heresia”. Não é à toa que a “heresia” dos
gnósticos (conjunto de seitas sincréticas surgidas no início a Era Cristã)
compreende esse núcleo místico da fé cristã e se opõe ao Deus Demiurgo da
Igreja, como um Deus intolerante e vingativo, assim como seus mandatários
terrenos que implacavelmente perseguirão os heréticos.
Deus no contínuo cultural midiático |
Portanto, nesse contínuo cultural (produtos midiáticos,
literatura, contos infantis etc.) certamente encontram-se dispersos esses dois
traços da necessidade religiosa humana: de um lado a ortodoxia de um Deus
punitivo e autoritário em cada final moralista de um conto infantil, em cada
produto cultural midiático onde quem quebra a ordem ou desobedece é duramente
punido pelo destino e assim por diante; e, do outro, o impulso “numinoso” por
transcendência manifestado pela revolta de Gael contra esse Deus “inimigo” – os
gnósticos, por exemplo, o chamariam de “Demiurgo”.
Heróis e Super-heróis
Homem Aranha, Ben 10 e toda uma galeria de super-heróis
atuais descendem de um movimento pendular do mito do herói entre a dimensão
trágica e épica. Nas
suas dimensões épicas, o herói (para os gregos, aquele que vive numa posição
intermediária entre os deuses e os homens, em geral filho de um deus e uma
mortal – Hércules, Perseu) reúne atributos que transcendem as condições do
homem comum: fé, coragem, determinação, renúncia (martírio), paciência etc. Um
herói tipicamente guiado por ideais nobres (liberdade, fraternidade,
sacrifício, moral, paz) com atributos necessários para superar problemas de
dimensões épicas.
Já o herói trágico é aquele que encontra o infortúnio
por um erro de julgamento. Vivendo entre o crime e o castigo, descobre que o a
sua queda foi o resultado de suas próprias ações, e não por causa de
acontecimentos aleatórios. Suas decisões são confrontadas com uma ordem
superior e deve enfrentar os castigos dos deuses pela sua rebeldia contra
desígnios cósmicos.
Na
modernidade a tragédia chega a debilidade pela importância dada cada vez mais à
subjetividade, sobretudo no seu aspecto moral. Na cultura moderna a
subjetividade é cada vez mais reflexiva (o Romantismo literário, a Psicanálise,
o Existencialismo etc.) enfraquecendo, dessa forma, a experiência trágica: o
herói não se confronta mais contra uma ordem divina ou transcendente.
Indo
mais além, no caso de Kafka, a própria existência é levada ao absurdo cósmico.
Não há mais crime, castigo ou luta prometéica, mas, agora, um herói perplexo
que se move num universo imperfeito, corrompido, caótico e aleatório. A paranoia
domina a subjetividade do herói, porém uma subjetividade de natureza especial,
gnóstica: a suspeita de que a realidade é falsa.
Como
afirma Christopher Knowles em seu livro Our
Gods Wear Spandex os modernos arquétipos dos super-heróis descendem
diretamente de um mix de Teosofia do século XIX de Madame Blavatsky com a ideia
dos “mestres ascensionados” (“mahatmas”), seres humanos comuns que passaram por
uma série de transformações espirituais ou iniciações. Nos quadrinhos, essa
iluminação do herói é de origem alienígena (Ben 10) ou um subproduto da Ciência
que possibilita a ascensão (o “envenenamento” através da Ciência em
Homem-Aranha e Hulk).
Knowles
argumenta que a série de arquétipos dos super-heróis (“mágicos” – Capitão Marvel
e Lanterna Verde; “messias” – Homem-Aranha e Capitão América; “amazonas” –
Mulher Maravilha; e “golens” ou “anti-heróis – Batman e Wolverine) alinha-se a
essa revolta contra um universo caótico e imperfeito, cuja iluminação só pode
vir de fora dessa dimensão, mais transcendente. Os inimigos dos super-heróis
seriam os guardiões desse cosmos corrompido no qual todos nós estaríamos
prisioneiros.
Colocado
nessa perspectiva, começamos a compreender a afirmação “O Deus é o meu inimigo”
de Gael. Imerso no universo ficcional dos super-heróis que descendem
diretamente desse impulso “numinoso” por transcendência, esses novos heróis épicos
parecem desafiar o Deus institucionalizado das religiões. Talvez na infância se
manifeste de forma mais clara e sincera esse impulso gnóstico por
transcendência que, mais tarde, será combatido e contido nos contos
moralizantes “infantis” (na verdade, feitos pelos adultos) ou nos próprios
super-heróis convertidos em formas mercantis onde a profusão de gadgets (videogames, máscaras,
fantasias, filmes etc.) fazem finalmente a criança esquecer como tudo isso
começou.
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