segunda-feira, novembro 19, 2012

A angústia da existência no filme "eXistenZ"

Se Basilides (um dos primeiros professores gnósticos em Alexandria, Egito, no século II da Era Cristã) fizesse um filme, certamente teria sido “eXinstenZ” (1999). Um filme onde o canadense David Cronenberg leva a relação entre o homem e a tecnologia ao limite do niilismo, do vazio e da angústia. Não tanto pelo fato das fronteiras entre real/virtual e verdade/ilusão desaparecerem em um sofisticado jogo virtual. Mas pela forma como um jogo transforma-se em fetiche erótico e religioso pelo marketing de uma poderosa corporação, impedindo a transcendência espiritual: de que a própria existência transforme-se em eXistenZ.

  Basilides nutria uma radical desconfiança em relação à linguagem porque a verdade sobre Deus estaria além do conhecimento humano: a linguagem não conseguiria apreender a plenitude e o eterno porque nela o homem torna-se obcecado em apreender as qualidades do devir nomeando-as através de conceitos e palavras estáticas uma realidade que é difusa, fluída, relativa. Preso nessa intransitividade entre os sistemas simbólicos e Deus, o homem se tornaria prisioneiro dos próprios conceitos e palavras, não conseguindo ouvir, dentro de si, a reminiscência do Uno, do Pleroma, da plenitude original que o uniria a Deus.

      Na modernidade essa angústia gnóstica é secularizada principalmente pela Filosofia existencialista, por exemplo, em Heidegger: o conceito de “Deus” é transformado em “Ser” e a angústia humana está na impossibilidade de apreendê-lo em seu sentido por meio de expressões ou enunciações. A impossibilidade da apreensão ôntica do Ser joga o ser humano na existência: o “ser-aí”, “o ser-no-mundo” ou o “ser-para-a-morte”.

     “eXistenZ” de Cronenberg transpõe essa angústia tanto gnóstica como existencialista para a discussão tecnológica: poderá o desenvolvimento tecnológico em sua interface final (a biotecnologia onde corpos e máquinas se integram por meio da informação) finalmente resolver essa angústia de séculos de religião e filosofia? A virtualização tecnológica por meio de jogos cada vez mais realistas baseados na interatividade e imersão dos jogadores poderá traduzir a verdadeira natureza do Ser como jogo onde as ações dos participantes é regida pelo princípio da aleatoriedade?


      O filme começa no interior de uma igreja rural onde sobre um palco um focus group está reunido para testar o novo jogo de realidade virtual chamado “eXistenZ” da Antenna Corporation. O designer do jogo é a famosa Allegra Geller (Jennifer Jason Leigh). Há um clima de ansiedade e tensão não só pela presença de uma famosa personalidade como pela segurança do evento ameaçado tanto pela espionagem das empresas concorrentes, mas também pela ação de terroristas da “Reality Underground”, grupo político contrário à virtualização da realidade pelas tecnologias. Allegra tem um segurança pessoal, Ted Pikul (Jude Law) que escaneia cada um dos participantes do evento em busca de possíveis armas ocultas.

      Allegra segura o seu console do jogo contendo o eXistenZ, um artefato feito de tecidos e órgãos vivos que parece respirar e responder aos toques do usuário. Dele saem cordões semelhantes a umbilicais que se conectam ao corpo dos outros jogadores por meio de bioportas - orifícios localizados na base da espinha. 

     O jogo é iniciado e todos parecem entrar em transe ao imergirem no mundo virtual do jogo. De repente surge um homem que rapidamente monta uma arma a partir de ossos envoltos de pedaços de carne e gordura animal, aproxima-se do palco onde estão os jogadores e aponta a arma para Allegra gritando: “Morte à diaba” e dispara contra a designer e o console vivo. O caos se instaura, um oficial da Antenna mata o atirador e Pikul ajuda Allegra a sair da cena. Fogem, carregando o console também ferido. Eles terão que fugir dos terroristas da “Reality Underground” e entrar no mundo virtual de eXistenZ para saber se o jogo foi danificado e curá-lo.

      Nesta sequência inicial são apresentados ao espectador todos os temas que Cronenberg pretende explorar no filme: a perda das fronteiras entre o artificial/natural e biológico/mecânico; o colapso das diferenças entre real/virtual; as corporações como Demiurgos; e o fascínio fetichista (erótico e religioso) pelos gadgets tecnológicos.

eXistenZ e a grande negação


      A partir desse ponto, o filme eXistenZ parece ser uma grande negação de qualquer certeza ao espectador: o orgânico e o mecânico, o natural e o artificial são tão inseparáveis (computadores respiram, adoecem e se curam) que fica difícil para espectadores e personagens do filme determinar de que ponto de vista as ações estão ocorrendo: da realidade ou do jogo? Se os objetos são ao mesmo tempo naturais ou fabricados (“tudo o que existe parece que já foi outra coisa um dia”) como alguém pode discernir o que uma coisa realmente é? E mesmo que em algum momento alguém possa diferenciar, isso poderá ser negado pela aniquilação de alguma outra diferença: real/virtual, etc.

     Nada é o que parece ser: uma igreja no campo é um encontro de designer de jogos de uma poderosa corporação, cada suposta volta à realidade pode ser mais uma fase do jogo eXistenZ. Órgãos, máquinas, bioportas, igrejas, corporações, atiradores... tudo é nada. Assistimos a um filme à espera de uma narrativa, mas parece que assistimos a eventos aleatórios de um jogo de computador onde os personagens não sabem as regras e nem o propósito do jogo. Allegra fala a Pikul, aturdido com o ambiente virtual: “Você deve jogar e não resistir ao seu personagem. Só assim saberá o propósito do jogo!”.

    Cronenberg aborda o tema gnóstico basilidiano por excelência: a suspensão. eXistenZ é existência: Allegra e Pikul devem apenas aceitar a ambiguidade através da suspensão de sentido. Eles parecem fazer parte de um misterioso script que está sempre em processo e mudando, dirigido por algum diretor ausente. Eles devem acreditar que jogar é a única coisa, é a própria realidade.

        No século II Basilides propunha como alternativa aos pares opostos que a linguagem e a consciência criam como ilusões ou armadilhas (real/ilusão, verdade/mentira etc.) um singular estado de consciência: o silêncio, o estado de suspensão, o esvaziamento da mente (diz-se que os discípulos de Basilides, como ritual de iniciação, eram obrigados a permanecer dois anos em silêncio...) como forma de transcendência, um “tertium quid” que unifiquem essas qualidades que foram perdidas em nossa existência inautêntica.

     Pois Cronenberg procura esse mesmo caminho através da tecnologia. Seguindo a influência de outro canadense, Marshall McLuhann, que defendia que as tecnologias seriam como extensões dos sentidos humanos, Cronenberg pretende que os produtos tecnológicos “retornem para casa”, para o próprio corpo, através do hibridismo das “bioportas”. Fusão maquínica-eletrônica-biológica que suspenda todos os sentidos, oposições e negações. Dessa forma a tecnologia transcende a mera funcionalidade ou utilidade para entrar no jogo e na imersão.

      Diante da angústia e niilismo humanos que não conseguem apreender “Deus” ou o “Ser” por meio da linguagem, Razão e seus produtos (ciência e tecnologia), Basilides e Cronenberg propõem a suspensão de todos os sentidos através de um jogo sem fim. Isso é também a existência: apenas jogue o jogo como uma espécie de mantra cujo automatismo esvazia a mente nos desobrigando de qualquer preocupação com os dilemas desse mundo.

Fascínio fetichista erótico e religioso


    Mas há também um tema recorrente na obra de Cronenberg que perpassa filmes como “Videodrome” (1983), “Crash” (2004) e “eXistenZ” (1999): o fascínio fetichista pelos gadgets tecnológicos. Todos os outros designers têm uma idolatria religiosa pela fama de Allegra Geller (não é à toa que o focus group realiza-se em uma igreja – e alguns chegam até a beijar os pés de Allegra em devoção); a introdução dos cordões umbilicais do jogo nas bioportas e a excitação dos usuários possui um evidente fascínio erótico-fetichista; os usuários ao entrarem no jogo são representados por avatares mais atraentes e fascinantes do que seus correspondentes na vida real (Allegra e Pikul, de tímidos e assexuados nerds digitais, transformam-se respectivamente em mulher fatal e em um sedutor espião).

     Tanto em Basilides como em Cronenberg religião e fetichismo são os obstáculos para a gnose e transcendência. A idolatria fetichista promete uma falsa união ao objeto adorado: a absorção da carne pela tela de TV em “Videodrome”, as relações sexuais no meio de acidentes automobilísticos em “Crash” e a cópula erótica das bioportas no jogo “eXistenZ” denunciam que por trás do fascínio fetichista escondem-se demiurgos e corporações que pretendem manter o humano prisioneiro pelo vício e dependência ao objeto comercializado.

        Cronenberg pretende que eXistenZ seja mais do que um jogo, superando a oposição entre a “Reality Underground” e a Antenna Corporation, Realidade versus Ilusão: o jogo deve ser a própria existência para suspender todos os sentidos que nos prendem a esse mundo.

Ficha técnica:

  • Título: eXistenZ
  • Diretor: David Cronenberg
  • Roteiro: David Cronenberg
  • Elenco: Jude Law, Jennifer Jason Leigh, Ian Holm, Willem Dafoe
  • Produção: Alliance Atlantis Communication, Canadian Television Fund
  • Distribuição: Buena Vista Home Entertainment
  • Ano: 1999
  • País: Canadá, Reino Unido


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