Se Basilides (um dos primeiros professores
gnósticos em Alexandria, Egito, no século II da Era Cristã) fizesse um filme,
certamente teria sido “eXinstenZ” (1999). Um filme onde o canadense David
Cronenberg leva a relação entre o homem e a tecnologia ao limite do niilismo, do
vazio e da angústia. Não tanto pelo fato das fronteiras entre real/virtual e
verdade/ilusão desaparecerem em um sofisticado jogo virtual. Mas pela forma
como um jogo transforma-se em fetiche erótico e religioso pelo marketing de uma
poderosa corporação, impedindo a transcendência espiritual: de que a própria
existência transforme-se em eXistenZ.
Basilides nutria uma radical desconfiança em relação à linguagem porque a verdade sobre Deus estaria além do
conhecimento humano: a linguagem não conseguiria apreender a
plenitude e o eterno porque nela o
homem torna-se obcecado em apreender as qualidades do devir nomeando-as através
de conceitos e palavras estáticas uma realidade que é difusa, fluída, relativa. Preso
nessa intransitividade entre os sistemas simbólicos e Deus, o homem se tornaria
prisioneiro dos próprios conceitos e palavras, não conseguindo ouvir, dentro de
si, a reminiscência do Uno, do Pleroma, da plenitude original que o uniria a
Deus.
Na
modernidade essa angústia gnóstica é secularizada principalmente pela Filosofia
existencialista, por exemplo, em Heidegger: o conceito de “Deus” é transformado
em “Ser” e a angústia humana está na impossibilidade de apreendê-lo em seu
sentido por meio de expressões ou enunciações. A impossibilidade da apreensão
ôntica do Ser joga o ser humano na existência: o “ser-aí”, “o ser-no-mundo” ou
o “ser-para-a-morte”.
“eXistenZ” de Cronenberg transpõe essa angústia tanto
gnóstica como existencialista para a discussão tecnológica: poderá o
desenvolvimento tecnológico em sua interface final (a biotecnologia onde corpos
e máquinas se integram por meio da informação) finalmente resolver essa
angústia de séculos de religião e filosofia? A virtualização tecnológica por
meio de jogos cada vez mais realistas baseados na interatividade e imersão dos
jogadores poderá traduzir a verdadeira natureza do Ser como jogo onde as ações
dos participantes é regida pelo princípio da aleatoriedade?
O filme começa no interior de uma igreja rural onde sobre um
palco um focus group está reunido para
testar o novo jogo de realidade virtual chamado “eXistenZ” da Antenna
Corporation. O designer do jogo é a famosa Allegra Geller (Jennifer Jason
Leigh). Há um clima de ansiedade e tensão não só pela presença de uma famosa
personalidade como pela segurança do evento ameaçado tanto pela espionagem das
empresas concorrentes, mas também pela ação de terroristas da “Reality
Underground”, grupo político contrário à virtualização da realidade pelas
tecnologias. Allegra tem um segurança pessoal, Ted Pikul (Jude Law) que
escaneia cada um dos participantes do evento em busca de possíveis armas
ocultas.
Allegra segura o seu console do jogo contendo o eXistenZ, um
artefato feito de tecidos e órgãos vivos que parece respirar e responder aos
toques do usuário. Dele saem cordões semelhantes a umbilicais que se conectam
ao corpo dos outros jogadores por meio de bioportas - orifícios localizados na
base da espinha.
O jogo é iniciado e todos parecem entrar em transe ao
imergirem no mundo virtual do jogo. De repente surge um homem que rapidamente
monta uma arma a partir de ossos envoltos de pedaços de carne e gordura animal,
aproxima-se do palco onde estão os jogadores e aponta a arma para Allegra
gritando: “Morte à diaba” e dispara contra a designer e o console vivo. O caos
se instaura, um oficial da Antenna mata o atirador e Pikul ajuda Allegra a sair
da cena. Fogem, carregando o console também ferido. Eles terão que fugir dos
terroristas da “Reality Underground” e entrar no mundo virtual de eXistenZ para
saber se o jogo foi danificado e curá-lo.
Nesta sequência inicial são apresentados ao espectador todos
os temas que Cronenberg pretende explorar no filme: a perda das fronteiras
entre o artificial/natural e biológico/mecânico; o colapso das diferenças entre
real/virtual; as corporações como Demiurgos; e o fascínio fetichista (erótico e
religioso) pelos gadgets tecnológicos.
eXistenZ e a grande negação
A partir desse ponto, o filme eXistenZ parece ser uma grande
negação de qualquer certeza ao espectador: o orgânico e o mecânico, o natural e
o artificial são tão inseparáveis (computadores respiram, adoecem e se curam)
que fica difícil para espectadores e personagens do filme determinar de que
ponto de vista as ações estão ocorrendo: da realidade ou do jogo? Se os objetos
são ao mesmo tempo naturais ou fabricados (“tudo o que existe parece que já foi
outra coisa um dia”) como alguém pode discernir o que uma coisa realmente é? E
mesmo que em algum momento alguém possa diferenciar, isso poderá ser negado
pela aniquilação de alguma outra diferença: real/virtual, etc.
Nada é o que parece ser: uma igreja no campo é um encontro
de designer de jogos de uma poderosa corporação, cada suposta volta à realidade
pode ser mais uma fase do jogo eXistenZ. Órgãos, máquinas, bioportas, igrejas,
corporações, atiradores... tudo é nada. Assistimos a um filme à espera de uma
narrativa, mas parece que assistimos a eventos aleatórios de um jogo de
computador onde os personagens não sabem as regras e nem o propósito do jogo.
Allegra fala a Pikul, aturdido com o ambiente virtual: “Você deve jogar e não
resistir ao seu personagem. Só assim saberá o propósito do jogo!”.
Cronenberg aborda o tema gnóstico basilidiano por
excelência: a suspensão. eXistenZ é existência: Allegra e Pikul devem apenas
aceitar a ambiguidade através da suspensão de sentido. Eles parecem fazer parte
de um misterioso script que está sempre em processo e mudando, dirigido por
algum diretor ausente. Eles devem acreditar que jogar é a única coisa, é a
própria realidade.
No século II Basilides propunha como alternativa aos pares
opostos que a linguagem e a consciência criam como ilusões ou armadilhas
(real/ilusão, verdade/mentira etc.) um singular estado de consciência: o
silêncio, o estado de suspensão, o esvaziamento da mente (diz-se que os
discípulos de Basilides, como ritual de iniciação, eram obrigados a permanecer
dois anos em silêncio...) como forma de transcendência, um “tertium quid” que
unifiquem essas qualidades que foram perdidas em nossa existência inautêntica.
Pois Cronenberg procura esse mesmo caminho através da
tecnologia. Seguindo a influência de outro canadense, Marshall McLuhann, que
defendia que as tecnologias seriam como extensões dos sentidos humanos,
Cronenberg pretende que os produtos tecnológicos “retornem para casa”, para o
próprio corpo, através do hibridismo das “bioportas”. Fusão
maquínica-eletrônica-biológica que suspenda todos os sentidos, oposições e
negações. Dessa forma a tecnologia transcende a mera funcionalidade ou
utilidade para entrar no jogo e na imersão.
Diante da angústia e niilismo humanos que não conseguem
apreender “Deus” ou o “Ser” por meio da linguagem, Razão e seus produtos
(ciência e tecnologia), Basilides e Cronenberg propõem a suspensão de todos os
sentidos através de um jogo sem fim. Isso é também a existência: apenas jogue o
jogo como uma espécie de mantra cujo automatismo esvazia a mente nos
desobrigando de qualquer preocupação com os dilemas desse mundo.
Fascínio fetichista erótico e religioso
Mas há também um tema recorrente na obra de Cronenberg que
perpassa filmes como “Videodrome” (1983), “Crash” (2004) e “eXistenZ” (1999): o fascínio fetichista
pelos gadgets tecnológicos. Todos os
outros designers têm uma idolatria religiosa pela fama de Allegra Geller (não é
à toa que o focus group realiza-se em
uma igreja – e alguns chegam até a beijar os pés de Allegra em devoção); a
introdução dos cordões umbilicais do jogo nas bioportas e a excitação dos
usuários possui um evidente fascínio erótico-fetichista; os usuários ao
entrarem no jogo são representados por avatares mais atraentes e fascinantes do
que seus correspondentes na vida real (Allegra e Pikul, de tímidos e assexuados
nerds digitais, transformam-se respectivamente em mulher fatal e em um sedutor
espião).
Tanto em Basilides como em Cronenberg religião e fetichismo
são os obstáculos para a gnose e transcendência. A idolatria fetichista promete
uma falsa união ao objeto adorado: a absorção da carne pela tela de TV em
“Videodrome”, as relações sexuais no meio de acidentes automobilísticos em
“Crash” e a cópula erótica das bioportas no jogo “eXistenZ” denunciam que por
trás do fascínio fetichista escondem-se demiurgos e corporações que pretendem
manter o humano prisioneiro pelo vício e dependência ao objeto comercializado.
Cronenberg pretende que eXistenZ seja mais do que um jogo,
superando a oposição entre a “Reality Underground” e a Antenna Corporation,
Realidade versus Ilusão: o jogo deve ser a própria existência para suspender
todos os sentidos que nos prendem a esse mundo.
Ficha técnica:
- Título: eXistenZ
- Diretor: David Cronenberg
- Roteiro: David Cronenberg
- Elenco: Jude Law, Jennifer Jason Leigh, Ian Holm, Willem Dafoe
- Produção: Alliance Atlantis Communication, Canadian Television Fund
- Distribuição: Buena Vista Home Entertainment
- Ano: 1999
- País: Canadá, Reino Unido
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