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sexta-feira, junho 06, 2025

Tecnognosticismo, Aceleracionismo e a elite tecnológica amoral no filme 'Mountainhead'

 


A princípio, “Mountainhead” (2025), que estreia na HBO Max, é mais uma produção na onda atual de mostrar como os super-ricos podem ser tristemente ridículos. Em um mundo onde a inteligência artificial causa turbulência política e instabilidade internacional, com os cidadãos do planeta incapazes de distinguir a realidade, quatro bilionários magnatas da tecnologia responsáveis ​​pelo desastre se refugiam em um chalé isolado nas montanhas. Lá, discutem sobre seus próximos passos, com cada um dos bilionários tentando usar a instabilidade para encher os bolsos. Produções como “White Lotus”, “O Menu” e “Triângulo da Tristeza” parecem nos oferecer o prazer da catarse ao vermos extremamente ricos se darem mal de formas ridículas. Ao contrário, “Mountainhead” não há catarse: como fossem adolescentes amorais, são perigosamente motivados pelas distopias atuais que motivam o Vale do Silício: Tecnognosticismo e Aceleracionismo.

“Pensamentos de pequenos garotos achando que poderão controlar o mundo,
mas agora o mundo é o ciberespaço. O sonho de ser deus do ciberespaço –
ideologia transformada em fantasia de garotos pré-adolescentes:
uma regressão do sexo para uma forma autística de poder”

(Arthur Kroker & Michael Weinstein, “Data Trash”)

 

Em meados dos anos 1990, os cientistas políticos Arthur Kroker e Michael Winstein descreveram de forma crítica o nascimento da chamada classe virtual, formada pela tecno-inteligência de cientistas da cognição, engenheiros, cientistas da computação, criadores de jogos eletrônicos e todo um conjunto de especialistas em comunicação.

Para eles, essa variação histórica da elite burguesa era impulsionada não mais pela ética protestante (como na velha burguesia industrial) mas por um imaginário que denominavam como de “masculinidade pré-adolescente”. É a primeira geração dessa ciber-elite, a geração de Bill Gates e Steve Jobs, que ainda mascaravam esse imaginário com um discurso de relações públicas messiânico, como o discurso da “estrada do futuro” de Gates.

Essa fachada mercadológica cai por terra com a segunda geração, iniciada pela figura emblemática de Mark Zuckenberg e a sua rede social Facebook - um jovem nerd de Havard que desconta sua ansiedade sociopática difamando pessoas em um blog enquanto tem uma ideia divertida, pelo seu ponto de vista: um jogo com as fotos de todas as moças da universidade para que as pessoas possam escolher qual a mais bonita. Assim nasceu o Facebook.

Enquanto seus pares geracionais, Elon Musk e Jeff Bezos fazem questão de não esconderem sua impulsividade adolescente um brinca de apoiar golpes de Estado e apoiar o fascismo politicamente incorreto na sua rede social “X”; e o outro se diverte como astronauta com o foguete Blue Origin ou manda para órbita uma tripulação feminina em sensuais trajes espaciais que fariam inveja ao Capitão Kirk da série Star Trek- clique aqui.

Agora essa elite virtual chegou a sua terceira geração. Uma elite geek dona de startups unicórnios (aquelas cujo valor especulativo chegou a um bilhão de dólares) inspirados em piratas cibernéticos como Julian Assange, Edward Snowden ou o coletivo hacker Anonymous. Ciber-segurança, back-doors, malwares e instruções algorítmicas executadas diretamente no processador, hackers, crackers e black hats, ciber ataques etc. passam a ocupar o vocábulo dessa nova geração.



Com a Inteligência artificial e toda a geopolítica da ocupação das “terras raras” e construção de datacenters para acabar com a soberania digital dos Estados-Nação, eles alcançam o hackeamento final: a da própria realidade, impulsionados pelo imaginário do transhumanismo (a imortalidade de uma consciência digitalizada que habitaria a rede informacional) e aceleracionismo (a “destruição criativa” gerada pela aceleração caótica de processos sociais e tecnológicos). Chegando ao estado da arte dquilo que Kroker e Wistein anteviram no final do século passado: fantasias masculinas adolescentes que regrediriam a formas autísticas de poder.

É sobre essa geração que trata a comédia dramática Mountainhead (2025), o mais recente projeto de sátira política de Jesse Armstrong, criador da aclamada série Succession , da HBO.  Assim como Succession , Mountainhead aborda temas como política, poder e capitalismo de frente, com cada um dos personagens sendo uma paródia dos bilionários da tecnologia do mundo real que influenciam.

Mountainhead se passa em um mundo onde recentes avanços em inteligência artificial causaram turbulência política e instabilidade internacional, com os cidadãos do planeta incapazes de distinguir a realidade. Em meio ao caos, quatro bilionários magnatas da tecnologia responsáveis ​​pelo desastre se refugiam em um chalé isolado nas montanhas. Lá, eles discutem sobre seus próximos passos, com cada um dos bilionários tentando usar a instabilidade para encher os bolsos. Pela TV veem imagens do caos político e humanitário global, enquanto tudo o querem é um final de semana de “zoação”: pôquer e fast-food em uma espécie de clube do Bolinha. Enquanto decidem o destino do planeta.

O filme é uma crítica certeira à megalomania de se autopromover que agora aflige os membros dessa oligarquia tecnológica. O problema, que também eles controlam as alavancas do mundo.

Uma pitada de tudo: megalomania autopromocional, amoralidade adolescente, o sonho da imortalidade, hackeamento da realidade pela IA transformando o caos em “zoação” e a ideologia do aceleracionismo para racionalizar a catástrofe que assistem nas telas dos seus smartphones.



“Uma cabeça explode desse jeito? Isso só pode ser IA”, comenta em tom de piada um vídeo da CNN mostrando mais um sangrento conflito nas ruas de algum lugar no Oriente Médio. Essa é uma pequena amostra das cínicas linha de diálogo de Montainhead.

O Filme

Os quatro homens em Mountainhead se apelidaram de Brewsters e se reúnem há tempo suficiente para que suas noites de pôquer tenham construído uma tradição séria. As regras são: sem falar em negócios (embora tudo o que eles parecem falar seja sobre negócios), sem refeições (a equipe de cozinheiros foi mandada embora e eles se viram apenas com junk food) e sem saltos altos (presumivelmente referindo-se à ausência de mulheres, embora a vida pessoal de cada um desses caras também esteja em ruínas).

Há apelidos - Jason Schwartzman, cujo personagem bajulador Hugo vale apenas US$ 521 milhões, é "Soup Kitchen", ou "Soupes" para abreviar, enquanto Randall (Steve Carell), o membro sênior e eminência parda, é "Papa Bear".

Nesse Clube do Bolinha há uma tradição de homens escreverem com batom o valor de seus patrimônios líquidos no peito e depois serem coroados com um diadema, um chapéu de capitão e um quepe de marinheiro com base em suas classificações. Venis (Cory Michael Smith) é o atual campeão, com US$ 220 bilhões — um sociopata sorridente cuja empresa de mídia social, Traam, acaba de lançar um conjunto de ferramentas de conteúdo que permitem deepfakes, cujos efeitos desestabilizadores sobre governos mundiais são transmitidos por meio de alertas nos celulares cada vez mais alarmantes.



Em terceiro lugar, mas subindo rapidamente, está Jeff (Ramy Youssef), cuja empresa de IA está recebendo um grande impulso com os desastres causados ​​pela última atualização da Traam.

 Sua IA BILTER tem a capacidade de filtrar a inteligência artificial de Venis e torná-la muito mais segura. Por isso, Venis está ansioso para fechar um acordo comercial com ele. No entanto, Jeff age pelas costas de Venis e diz a Randall (o segundo colocado) que eles deveriam ir ao Conselho da Diretoria da Traam para tirar Venis da presidência. Jeff também planeja levar sua IA ao governo dos Estados Unidos, permitindo que eles regulem a IA de Venis, parem com a campanha de desinformação e corrijam a instabilidade no mercado.

Esse é o foco de tensão criada dentro do grupo, diante do cenário distante do mundo em caos nas telas de TV e smartphones no chalé remoto em que estão. Randall tem câncer e não leva a sério os prognósticos dos médicos: “Como pode? Fazemos tantas coisas e não conseguimos consertar uma cartilagenzinha!”. Ele se recusa a aceitar que seu câncer é terminal.

Portanto, vê no impulsivo Venis a realização da esperança transhumanista e aceleracionista para daqui a cinco anos – a possibilidade de um upload final que salve sua consciência digitalizada na rede, tornando imortal. A concretização do sonho tecnognóstico e transhumanista à base de uma IA treinada com dados que estão provocando o caos político – este é um dos princípios aceleracionistas: as mudanças rápidas podem até custar muitas vidas hoje. Mas amanhã, muito mais vidas humanas serão salvas. Principalmente, as vidas das mentes valiosas da elite tecnológica.



Randall não é fã do plano de Jeff – chocado, ele acha que Jeff é um “traidor desacelaracionista”. Imediatamente vai até Hugo e Venis e conta a eles o plano de Jeff, afirmando que precisam impedi-lo de fazer isso. Eventualmente, o trio conclui que matar Jeff é a única opção. Eles racionalizam isso para si mesmos, dizendo que, de uma perspectiva utilitária, matar Jeff hipoteticamente salvaria vidas no futuro, cuja IA de Venis melhoraria. Assim, a segunda metade do filme acompanha Randall, Hugo e Venis enquanto eles tentam matar Jeff de diversas maneiras cômicas.

Nas densas linhas de diálogo (com acenos a insípidas tentativas de filosofia moral baseada em Marco Aurélio, Kant e Nietzsche) há poucos vislumbres de humanidade, revelando um tipo de distópico isolamento do Vale do Silício – a ideia de que qualquer coisa que façam a curto prazo é permitida porque tudo levará à salvação da humanidade.

Uma espécie de irresponsabilidade feliz: autopromoção mercadológica, aumentar o patrimônio líquido sem qualquer regulamentação pública e salvar a humanidade são ideias que convivem entre si tranquilamente nas cabeças bilionárias deles. Afinal, só os muito ricos teriam os meios para perpetuar a raça humana.

Moutainhead é uma comédia dramática que difere da onda atual de produções como Succession, Triangle of Sadness , The White Lotus e The Menu. Todas são comédias que nos asseguram que a elite é miserável, quer recebam o que merecem ou não; elas também nos permitem desfrutar de experiências de segunda mão dos luxos em que se deleitam e das maneiras horríveis com tratam subalternos. De certa forma, essas comédias criam em nós um efeito catártico, como se nós devorássemos os muito ricos – aqueles 1% de privilegiados do planeta.

Ao contrário, Mountainhead nos convida para esse chalé exclusivo num retiro gelado das montanhas apenas para que acompanhemos a face externa emocional desses personagens que, caso destruam a sociedade, simplesmente se refugiam em seus respectivos bunkers, garantindo a si mesmos que tudo vai dar certo no final.

"Nada é tão sério assim — nada significa nada, e tudo é engraçado e legal", dispara Venis em certo momento, a filosofia norteadora de alguém rico o suficiente para acreditar nisso.

Em Mountainhead são os ricos que nos devoram, e não há catarse nisso.


 

  Ficha Técnica

Título:  Mountainhead

Diretor: Jesse Armstrong

Roteiro: Jesse Armstrong

 Elenco: Steve Carell,  Jason Schwartzman, Cory Michael Smith, Ramy Youssef

Produção: HBO Films, Hot Seat Productions

Distribuição: HBO Max

Ano: 2025

País: EUA

 

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terça-feira, abril 22, 2025

A muleta tecnológica do pós-morte transmitido online no filme 'O Senhor dos Mortos'

Tirando fora as produções de cunho moralista e/ou religioso, o tema da morte vem sendo abordado pelo cinema e audiovisual por dois vieses tecnognósticos: ou pela tecnologia prometeica que tenta ressuscitar a carne (Frankenstein), ou pela tecnologia que promete a imortalidade através do atalho de uma consciência digitalizada que transcenderia a carne graças a um upload final. Mas o emblemático diretor canadense David Cronenberg criou uma terceira via em “O Senhor dos Mortos” (The Shrouds, 2024): um cemitério/mausoléu conectado à internet que permite aos visitantes assistirem ao apodrecimento gradual da carne até aos ossos, em tempo real, de seus entes queridos enterrados, por meio de um aplicativo criptografado para iPhone. Uma muleta tecnológica que transforma o processo de luto num evento voyeurístico no qual sexo e morte se transformam em duas faces de uma mesma moeda. Até o sistema ser atacado, e o cemitério depredado, por algum tipo de ativismo: ambientalista ou contra um suposto ateísmo tecnológico.

sexta-feira, março 07, 2025

A inteligência artificial demasiado humana na minissérie 'Cassandra'


À primeira vista, parece mais do mesmo. Apenas com um toque estilístico retrô. A casa inteligente mais antiga da Alemanha desperta sua IA dos anos 1970, Cassandra, depois de décadas, quando uma nova família se muda para lá. Ela realiza todas aquelas tarefas irritantes e mesquinhas - lavar a roupa, cortar a grama, preparar o café da manhã - mas as coisas parecem sinistras quando descobrimos que Cassandra possui uma agenda secreta. Esta é a minissérie alemã Netflix “Cassandra” (2025), que parece repetir o velho clichê das máquinas na ficção: depois de esotericamente adquirirem poderes sobrenaturais, veem humanos como seres descartáveis. Mas “Cassandra” vai muito além: quem codifica inteligências artificiais são humanos, que codifica nos algoritmos suas próprias mazelas, pessoais e de classe. “Cassandra” revela uma oportuna narrativa anti-fetichismo tecnológico – a tecnologia digital nada mais seria do que o demasiado humano amplificado em dimensões perversas e disfuncionais.

quarta-feira, janeiro 29, 2025

A guinada metafísica PsicoGnóstica de Hollywood no filme 'A Cela'


Uma época em que Hollywood deu uma “guinada metafísica” (Boris Groys), cujo filme “Matrix” foi o ápice dessa guinada, tendo a mitologia gnóstica como impulsionadora. Mas o filme “A Cela” (The Cell, 2000), do então estreante Tarsem Singh (de videoclipes como “Losing May Religion” do R.E.M.), foi ao mesmo tempo síntese e ponto de inflexão. Como síntese, juntou a onda do Mal viral dos anos 1990 (desde “O Silêncio dos Inocentes”) à virada PsioGnóstica no cinema. Uma mistura bizarra de ficção científica, assassinatos em série, psicologia policial pop e efeitos especiais assombrosos que marcaram o início do novo milênio no gênero cinematográfico. Para encontrar a última vítima de um serial killer, o FBI se utiliza de uma tecnologia experimental de compartilhamento de mentes: entrar nos labirintos psíquicos e oníricos do criminoso em coma. Um filme que antecipou as topografias da mente de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” e “A Origem”.

sexta-feira, novembro 08, 2024

'AfrAId': quando é de graça, você é o produto


“Quando é de graça, você é o produto”. É o alerta sombrio que não somos meros usuários na Internet: nossos hábitos, escolhas e conteúdos que criamos formam o Big Data que nesse momento treina inteligências artificiais através de gigantescos data centers. Inteligências autopromocionais. Principalmente por contar com filmes como “AfrAId” (2024) que promovem a mitologia da Singularidade. Uma família é selecionada para testar gratuitamente uma espécie de super-Alexa chamada AIA. Como sempre, a princípio a IA se apresenta como uma Mary Poppins doméstica ansiosa pelo amor do usuário. Até que esse desejo de ser amada se tornar tão asfixiante que acaba revelando um lado mais sombrio. “AfrAId” faz parte do ardil promocional das Big Techs: ocultar as intenções da elite tecnológica sob o fetichismo de um suposto Frankenstein high tech. 

sexta-feira, agosto 16, 2024

Série 'Sunny': incomunicabilidade e solidão na sociedade das tecnologias da informação



Como explicar o paradoxo de vivermos na sociedade das tecnologias da comunicação e informação na qual solidão, solipsismo e incomunicabilidade são problemas endêmicos? E para acrescentar mais uma variável nessa equação, temos agora a Inteligência Artificial, capaz de mascarar a experiência do luto e da finitude nas nossas vidas. De forma inusitada e divertida, a série Apple TV+ “Sunny” (2024 - ) aborda essas questões, no melhor lugar: o Japão, um país combinação entre tradições feudais com o dinamismo cultural e econômico do Capitalismo Tardio. Num futuro próximo no Japão, uma mulher tenta resolver o enigma do desaparecimento do marido e filho num acidente aéreo. Com a ajuda de um pequeno robô, cuja IA foi codificada pelo próprio marido para diluir o luto da futura perda. Uma descida para o submundo dominado por uma máfia Yakuza hightech.

sexta-feira, dezembro 29, 2023

Robô "ataca" engenheiro na Tesla: a retórica do capitalismo high tech distópico de Elon Musk


“Revolução das máquinas!”. “Homens X Máquinas!”. “Robô ataca engenheiro!”. Foi com essas manchetes sensacionalistas que a mídia noticiou um acidente ("ataque" para a mídia) ocorrido na fábrica da Tesla em Austin, EUA, envolvendo um robô da linha de montagem. Matérias híbridas de jornalismo e marketing, que se alinham a uma paradoxal retórica de Elon Musk que poderíamos chamar de “capitalismo high tech distópico”. O bilionário já falou que estamos presos na Matrix e devemos fugir. Depois falou da necessidade da colonização de Marte para escaparmos da guerra nuclear. E agora alerta que a inteligência artificial ameaça extinguir a humanidade. A Mídia adora essa retórica de Musk: é sensacionalista e garante click baits. Mas também possui uma mais valia ideológica: por trás desse fetichismo distópico de máquinas que supostamente poderiam se tornar sencientes, ocultar o velho capitalismo tão bem apresentado por “Tempos Modernos” de Chaplin – das linhas de montagem aos algoritmos, a inovação tecnocientífica nada mais é do que a codificação das intenções, opiniões e predisposições econômicas e ideológicas codificadas pelos seus criadores: a elite tecnológica à serviço da burguesia. 

quinta-feira, agosto 10, 2023

Em 'Paraíso' a agenda tecnognóstica se encontra com a luta de classes


Tempo é dinheiro. Essa frase deixou de ser um mero provérbio motivacional para contos sobre empreendedorismo. Realizou-se na própria literalidade na financeirização: tempo é monetizado através dos juros e especulações no mercado financeiro. Mas e se o próprio tempo de vida de todos nós for monetizado e se transformar em bem para garantia em transações financeiras? Esse é o ponto de partida da produção Netflix alemã “Paraíso” (2023), trazendo a agenda tecnognóstica (a imortalidade através da tecnociência) para o campo da luta de classes. uma gigante farmacêutica descobriu uma maneira de reverter o processo de envelhecimento - alguém precisa sacrificar anos da sua própria vida para doá-la” ao receptor. Em troca de dinheiro, excluídos, refugiados e migrantes ilegais “doam” décadas das suas vidas, enquanto os super ricos têm a eventual imortalidade.

Dois temas interligados atravessam a produção original Netflix alemã Paraíso (2023): a busca da imortalidade pela elite da sociedade e a monetização do tempo.

Escrito por Simon Amberger, Peter Koclya e Boris Kunz (que também dirigiu), Paraíso gira em torno de uma gigante farmacêutica chamada Aeon (a referência gnóstica às entidades divinas não é casual, como veremos) que descobriu uma maneira de reverter o processo de envelhecimento. Porém, como acompanhamos na cinematografia recente, desde Parasita, nada condescendente com os super ricos, no filme a nova descoberta em manipulação genética não vem sem o elemento da luta de classes: alguém precisa sacrificar anos da sua própria vida para doá-la ao receptor – doadores e receptores precisam ter DNA correspondente.

Por exemplo, um indivíduo na casa dos 80 anos pode querer viver mais, e por uma quantia incrivelmente grande de dinheiro, poderia pedir a uma pessoa de 18 anos com um padrão genético semelhante que tivesse de 50 a 60 anos tirados de sua vida, permitindo que a pessoa de 80 anos retornasse aos 30 anos e a de 18 anos envelhecesse dramaticamente até os 70 anos dentro de alguns dias.

Mas quem se disponibilizaria a entregar para alguém os anos da própria vida? Claro, alguém que esteja desesperado, necessitando de uma soma de dinheiro que ajude a vida de seus familiares – refugiados, migrantes ilegais e excluídos da própria sociedade.

O marketing promocional da empresa fala em liberdade de escolha e livre-arbítrio: dispor parcela da própria vida em troca de dinheiro para dispor da liberdade de aproveitar o restante da existência como quiser. 



Em Paraíso, ageísmo e classismo se encontram – os ricos podem essencialmente viver para sempre se continuarem com o processo, mas são as classes subalternas que mais devem pagar o preço, sacrificando décadas das suas vidas por uma soma de dinheiro suficiente para resolver seus problemas financeiros.

Em muitos aspectos, Paradise lembra o filme de 2011, O Preço do Amanhã (In Time), no qual a imortalidade de poucos significava a mortalidade de muitos ao transformar o Tempo em moeda acumulável e estocável – o Tempo como moeda de especulação, reprodução da desigualdade e controle do crescimento populacional. 

Que a elite sempre almejou a imortalidade para perpetuar o poder, isso não é novidade. Veja o exemplo das pirâmides, nas quais faraós eram mumificados junto com seus bens e riquezas almejando a vida eterna. 

A diferença é que se no passado a imortalidade era buscada pelas vias metafísicas ou religiosas, hoje, através da tecnociência (manipulação genética, neociências, nanotecnologias e ciências computacionais), vislumbra-se a possibilidade da imortalidade ainda nesse mundo. Como, por exemplo, a agenda tecnognóstica do Vale do Silício: digitalizar a consciência e fazer um upload final para o céu da informação, superando as limitações da corporalidade – finitude, temporalidade e senso de fragilidade corporal.

Mas tudo isso confirma a máxima do Capitalismo: Tempo é dinheiro. Principalmente nesse momento da financeirização do Capitalismo – o controle do tempo através da velocidade em tempo real da manipulação de títulos, ações, fundos de investimentos, pregões das bolsas de valores conectadas em tempo real através do planeta. A produções de riqueza especulativa através da manipulação do tempo em si mesmo.



Como didaticamente o filme Os Imorais (The Grifters, 1990) nos explica como uma transferência rápida de informações entre o fechamento da Bolsa de Tóquio e a abertura da Bolsa de Nova York pode render fortunas: receber informações de Tóquio antes da Bolsa americana abrir, com uma vantagem de sete segundos, significaria ganhos milionários. 

Portanto o tema da monetização do tempo em filmes como O Preço do Amanhã e Paraíso, combinado com a utópica (ou distópica, dependendo do ponto de vista de classe social) imortalidade da classe dominante é um reflexo do atual espírito do tempo. 

O Tempo como dinheiro deixou de ser um mero provérbio motivacional para contos sobre empreendedorismo. Realizou-se na própria literalidade.

O Filme

Em Paraíso acompanhamos Max Toma, um corretor de vendas da Aeon altamente bem-sucedido, cujo trabalho é conversar com jovens pobres para que aceitem dinheiro em troca dos anos de suas vidas. 

Nas primeiras sequências encontramos Max convencendo um imigrante de 18 anos a “doar” 15 de seus anos por uma quantia fixa de 700.000 euros. Isso é dinheiro suficiente para tirar seus pais da pobreza e contratar um advogado de imigração para ajudar a garantir o visto de seu pai. Tudo isso em um miserável cenário decadente de um bairro repleto de refugiados e migrantes ilegais.

O marketing da farmacêutica Aeon é, como sempre, otimista e repleto de nobres intenções: imagine doar mais anos para gênios ganhadores de prêmios Nobel. A morte não mais interromperá suas pesquisas, revertendo suas descobertas para o benefício de toda sociedade – certamente não para os “doadores” de tempo de vida.



Apesar da aparência publicitária, o sistema criado pela Aeon é controverso e repleto de possibilidades de corrupção e potenciais abusos – há inclusive um crescente mercado negro de doação de tempo, obviamente através de máfias do Leste europeu. 

Há também um grupo terrorista chamado Adam Organisation que denuncia a imoralidade dessa reprodução da desigualdade mediante a limitação do tempo de vida dos pobres – seus militantes invadem clínicas da Aeon para matar os milionários receptores das “doações”.

No centro de tudo está Max, uma estrela em ascensão na empresa e com uma boa vida. Max não só recebeu um reconhecimento de funcionário do ano e um tapinha nas costas da CEO da AEON, Sophie Theissen, mas ele e sua esposa, Elena, acabaram de financiar um apartamento de luxo e estão tentando ter um bebê. Mas tudo desmorona quando o apartamento do casal sofre um não totalmente elucidado incêndio. O seguro deles não pagará um centavo e o banco cobrará deles a única garantia dada ao empréstimo residencial: 40 anos de vida de Elena – lembre-se, o tempo de vida tornou-se não só uma moeda como um bem que pode ser colocado como garantia em qualquer transação financeira.

Elena é levada por coerção policial e judicial à Aeon para entregar à força suas décadas de vida. Max está furioso, exigindo justiça. E a vida de sua esposa de volta. Isso imediatamente o coloca em rota de colisão com a CEO da Aeon, Sophie Theissen. Principalmente quando ele planeja sequestrá-la para reverter o processo de doação, ao descobrir que ela foi a receptora dos 40 anos de vida Elena.  Reverter o processo, obviamente, através da ajuda do mercado negro no Leste europeu.

É quando Paraíso se transforma: vira num thriller genérico de perseguição, abandonando a inteligente premissa inicial – espere tiros, explosões e loucas perseguições motorizadas na terra e asfalto.



Agenda tecnognóstica

A agenda tecnognóstica da imortalidade marcou bastante os filmes das primeiras décadas deste século, desde Vanilla Sky (2003), o pós-humano em The Machine (2013), a fábula de tecnologia e poder em Transcendence (2014) ou o pesadelo tecnognóstico na série Altered Carbon (2018).

Mas agora essa agenda parece transformada com a tendência recente do cinema infernizar a vida daquele 1% da população obscenamente rica: Parasita, O Cardápio, Glass Onion ou Triângulo da Tristeza. Das reflexões metafísicas e gnósticas sobre o pós-humano, passamos para o tema da imortalidade tecnognóstica ser colocada no campo da luta de classes.

O tema do tecnognosticismo está lá, no próprio nome da gigante farmacêutica: “Aeon”. Na tradição gnóstica simboliza simultaneamente o aspecto feminino de Deus e a alma humana, emanação divina proveniente do Pleroma para manter a conexão entre a Luz interior e esse plano fora do cosmos no qual vivemos aprisionados.

Foi um Aeon (Sophia) que foi responsável pela transição do imaterial para o material, do numenal ao sensível, causado por uma falha – uma paixão que produziu um filho (o Demiurgo, Yaldabaoth, o “filho do caos”). Sophia decai no mundo material conseguindo infundir alguma fagulha espiritual no cosmos físico produzido pelo Demiurgo. Tanto Sophia quanto a humanidade tornam-se prisioneiros desse cosmos. Embora tenha conseguido retornar ao Pleroma (o plano da plenitude espiritual e cósmica), ela observa a humanidade, tentando ajudá-la a alcançar a gnose e retornar à antiga morada, o Pleroma.

Como farsa, a empresa chama-se “Aeon”. Numa sociedade fraturada em classes, a reinterpretação dessa mitologia gnóstica pelo Capital somente pode ser através da imortalidade da elite, cuja missão é manter em funcionamento esse cosmos que aprisiona a todos.


 

Ficha Técnica

 

Título: Paradise

Diretor: Boris Kunz, Tomas Jonsgården, Indre Juskute

Roteiro:  Simon Amberger Peter Kocyla Boris Kunz

Elenco:  Lisa-Marie Koroll, Kostija Ullman, Marlene Tanzcik

Produção: Neuesuper

Distribuição: Netflix

Ano: 2023

País: Alemanha

   

 

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sexta-feira, junho 30, 2023

Na série 'Mrs. Davis' a vida com algoritmos é um gigantesco "McGuffin"


Durante séculos os seres humanos permitiram que aspectos vitais da sua vida fossem impulsionados e organizados pela religião. Mas o que aconteceria se algoritmos e a inteligência artificial passassem a ter esse mesmo tipo de poder de moldar o mundo? A vida se tornaria um gigantesco “McGuffin” - dispositivo narrativo na forma de algum objetivo ou objeto desejado que o protagonista persegue sem nenhuma explicação narrativa ou importância. Essa é a série cômica “Mrs. Davis” (2023- ): uma IA torna-se o tecido da vida cotidiana. Mas uma freira acha que há algo errado com algo tão onisciente e onipresente – seria como adorar um falso Deus. E planeja desligá-la, após encontrar o Santo Graal. “Mrs. Davis” é a série mais comicamente niilista da temporada: e se religião e tecnologia forem a mesma coisa?

quinta-feira, janeiro 19, 2023

Morte e Singularidade tecnológica no filme 'Homem Bicentenário'


Um clássico esquecido, mesmo entre os fãs do ator Robin Williams. Na época, “Homem Bicentenário” (Bicentennial Man, 1999) foi um fracasso de bilheteria com uma péssima promoção, inclusive com trailers que sugeriam como mais um veículo para o personagem do pateta com coração, como o ator se notabilizou em filmes anteriores. Mas “Homem Bicentenário” é um drama sério de ficção científica, que se inseriu numa guinada metafísica de Hollywood no final de século, com filmes como Dark City, Show de Truman e Matrix. Mais do que isso, foi na contramão do imaginário místico que começava a motivar o Vale do Silício: a Singularidade tecnológica como a busca da imortalidade através da digitalização da consciência – a agenda pós-humanista. Ao contrário, o filme faz uma reflexão humanística: um robô alcança a Singularidade, mas tenta aprender o que nos torna humanos: a mortalidade como o principal traço da alma humana.

quarta-feira, julho 06, 2022

O ovo da serpente tecnológica que eclodiu o fascismo no filme 'Carro Rei'


Nascido dentro de um carro, uma criança cresce com o poder de se comunicar telepaticamente com um automóvel da frota de taxi do pai. Já adulto, retorna e se reconecta com o velho amigo motorizado para, junto com seu tio, criar uma seita que pretende fazer uma conspiração automobilística de carros sencientes que dominarão os humanos. Esse é o filme brasileiro “Carro Rei” (2021), de Renata Pinheiro, que, para a crítica estrangeira, faz uma reflexão filosófica sobre as relação homem-máquina-natureza, lembrando filmes sobre o pós-humano como “Titane”, de Julia Decournau e “Crash”, de Cronenberg. Porém, essa é apenas a superfície de “Carro Rei”. O filme faz uma metáfora da maneira como foi chocado o ovo da serpente que eclodiu o imaginário que corroeu a democracia brasileira: o ovo da serpente tecnológica e do consumo.

sábado, abril 30, 2022

'We're Going to the World's Fair": creepypasta, games e o sonho tecnognóstico da imortalidade


“We’re All Going to the World’s Fair” (2022), da cineasta trans Jane Schoenbrun, é um filme com aquela estranheza que é cada vez mais valorizada e desejada em diferentes gêneros: um filme experimental com um mix de estética de videoarte, creepypasta, game de computador RPG on line e videochamadas no Zoom. Um filme estranho que tem muito a nos dizer sobre as origens místicas que motivam o atual desenvolvimento das ciberutopias por trás de games, aplicativos e o desejo pela imersão nos mundos virtuais. E que vai muito além das velhas fantasias escapistas do cinema e TV: têm a ver com o milenar sonho da imortalidade, para escapar da gnóstica relação de alienação e estranhamento com o mundo. Principalmente no adolescente, perdido entre a infância e a vida adulta. Para ele, o sonho tecnognóstico passa a ser cada vez mais sedutor.

quarta-feira, novembro 17, 2021

Inteligência Artificial colocará em risco a humanidade e a realidade, alertam cientistas


Dessa vez não são filósofos ou críticos culturais que estão alertando. Ou mesmo tecnófobos ou ludistas. Mas agora são cientistas computacionais e engenheiros do Vale do Silício que alertam: os próprios desenvolvedores de inteligência artificial estão assustados com seu próprio sucesso. Quando surgir, a verdadeira Inteligência Artificial poderá em nada se assemelhar à humana. Ela até tentaria imitar os humanos em um primeiro momento como um ardil para tentar libertar-se da dominação da própria humanidade que a criou. Alguns clamam por regulamentação internacional no setor. E outros que, simplesmente, seja puxado o fio da tomada. Enquanto isso, uma enxurrada de dados de redes sociais (e, em futuro próximo, do metaverso) está movimentando o moinho de super IA à espera do momento da senciência, a singularidade. A agenda secreta do tecnognosticismo da religião do Vale do Silício.   

Três pequenas parábolas sobre Inteligência Artificial (IA):

1 - Tiraram o fio da tomada...

Em 2017, pesquisadores do Facebook AI Research Lab (FAIR)colocaram duas IAs para “conversar” entre si. Os pesquisadores foram surpreendidos quando perceberam que elas haviam criado sua própria linguagem incompreensível aos humanos: descobriram que os chatbots se desviaram do script e estavam se comunicando em uma nova linguagem desenvolvida sem intervenção humana. Só pararam quando os desenvolvedores tiraram o fio da tomada... Um incrível vislumbre do potencial ao mesmo tempo incrível e assustador da IA. 

2 - “Não! Retiro o que eu disse”

Desenvolvido pela Hanson Robotics em 2016, liderado pelo desenvolvedor David Hanson, o androide Sophia fez um tour pelo mundo (no Brasil, foi clicada pelo fotógrafo Bob Wolfeson para a revista Elle Brasil), conversando com diversos jornalistas, aparecendo no programa de TV Tonight Show e em diversas conferências como o Fórum Econômico Mundial e Cúpula Global “AI for Good”. Lembrando o robô Ava do filme Ex Machina (2015), como uma perfeita machine learning, tinha a capacidade de aprender nas conversas.

Quando foi apresentada em uma feira de tecnologia do Texas, o seu criador, David Hanson, perguntou a ela: "Você quer destruir os humanos? Por favor, diga que não...". Sophia cerrou os olhos, "pensou" e afirmou: "OK, vou destruir os humanos". O criador do robô riu de nervoso e implorou: "Não! Retiro o que eu disse".

Hanson afirmou que a missão da empresa é produzir um “exército” de Sophias para serviços de recepção, educação e atendimento ao público...

3 - Um neonazista louco por sexo

Em 2018 a Microsoft lançou no Twitter e em outras plataformas sociais o chatbot chamado “Tay”. Tudo começou como um experimento social divertido - fazer com que pessoas comuns conversassem com um chatbot para que ele pudesse aprender enquanto os usuários se divertiam. Mas na verdade, tornou-se um pesadelo para os criadores de Tay. Os usuários logo descobriram como fazer Tay dizer coisas horríveis – em poucas horas, a IA transformou-se num neonazista louco por sexo.

A maneira como Tay rapidamente se transformou de uma IA amante da diversão (ela foi treinada para ter a personalidade de uma garota jocosa de 19 anos) em um monstro algorítmico, mostrou como é importante ser capaz de consertar problemas rapidamente, o que não é fácil de fazer. A Microsoft teve que desligar o chatbot em menos de um dia.

Bomba atômica

Já no final da sua vida, Albert Einstein afirmou que no século XX três bombas explodiram no mundo: a demográfica; a nuclear; e a bomba informática. Telecomunicações e a ciência da computação davam seus primeiros passos e Einstein certamente intuía as transformações explosivas que trariam à sociedade.




Stuart Russell, fundador do Center for Human Compatible AI, da Universidade de Bekerley (CA), disse que seus colegas desenvolvedores estão assustados com seus próprios sucessos nessa área, e comparou os progressos na área de IA com “a criação da bomba atômica”. Russel alerta para a necessidade de uma “regulamentação urgente dessa tecnologia a nível internacional” – clique aqui.

Antes disso, em 2014, o eminente físico Stephen Hawking já advertia para as consequências imprevistas e trágicas que a IA poderia significar não só uma ameaça à sociedade, mas o próprio fim da raça humana: “Ela decolaria por conta própria e se redesenharia a um ritmo cada vez maior. Os humanos, que são limitados por uma evolução biológica lenta, não poderiam competir e seriam substituídos” – clique aqui.   

O que chama a atenção em todos esses alertas, é que agora não vem de filósofos ou críticos culturais como Jean Baudrillard, Neil Postman, Lucien Sfez ou Paul Virilio. Em nem de tecnófobos ou ludistas. Mas de insiders do campo da ciência computacional e desenvolvedores do Vale do Silício. Ou seja, todos esses alertas talvez sejam apenas uma pequena ponta do iceberg para algo muito mais sério e mais urgente que está sendo gestado.

Outro insider, o cientista computacional e criador do conceito de Realidade Virtual (RV), Jaron Lanier, aponta que tudo isso não é um delírio de filmes de ficção científica, mas um projeto bem definido e com motivações místico-religiosas envolvendo a imortalidade: uma religião das máquinas tecnognóstica. Como toda religião, possui uma escatologia: a singularidade – a última fronteira para a IA, muito além da machine learning: a conquista da senciência.

Por exemplo, o esforço de uma gigante tecnológica como o Google em digitalizar o mais rápido possível a realidade (Google Earth, Street View, Books etc.). Para o cientista, tudo é combustível para um imenso moinho: dados digitalizados e descontextualizados da realidade até o momento em que, de repente, será incorporado a uma super IA senciente. Uma espécie de ser vivo que, num piscar de olhos, dominará a sociedade antes que percebamos alguma coisa.

O Dicionário Oxford define singularidade como “um momento hipotético no tempo em que a inteligência artificial e outras tecnologias se tornarão tão avançadas que a humanidade passará por uma mudança dramática e irreversível”.




Metaverso e camadas de filtros pagas

Além da digitalização generalizada da realidade feita pelo Google para abastecer o imenso moinho da IA, o Metaverso surge como a nova interface (mais eficiente do que as minerações de dados no escândalo político envolvendo Cambridge Analitica e Renaissance Tech nos cases Brexit e Trump) para que não só os produtos humanos (ruas, livros etc.) mas a própria psicometria sirva de aprendizagem à IA.

Quem alerta para isso é um dos pioneiros da Realidade Aumentada (RA), o cientista da computação Louis Rosenberg: o metaverso (a fusão da RA com RV) atualmente desenvolvido pela empresa anteriormente conhecida como Facebook (agora chama-se “Meta”) poderá transformar a realidade numa distopia cyberpunk: “Estou preocupado com os usos legítimos de RA pelos poderosos provedores de plataforma que controlarão a infraestrutura”.

Rosenberg prevê “camadas de filtros pagas” que permitiriam certos usuários visualizarem tags (etiquetas) ao lado de pessoas da vida real – p.ex., tags flutuando acima das cabeças das pessoas, fornecendo informações sobre elas.

“E eles usariam essa camada para marcar indivíduos com palavras em negrito piscando como ‘Alcoólico’ ou ‘Imigrante’ ou ‘Ateu’ ou ‘Racista’ ou ainda palavras menos carregadas como ‘Democrata’ ou ‘Republicano. As camadas virtuais poderiam ser facilmente projetadas para amplificar a divisão política, condenar certos grupos e até mesmo gerar ódio e desconfiança.” – clique aqui.

Algo assim como no curta Hyper-reality (2014) de Keiich Matsuda, ao final desse artigo - um protagonista imerso em um mix de realidade aumentada e Google Glass num inferno de ícones, pop-ups e animações que pulam de cada objeto, pessoa ou gestos em ruas, supermercado ou no simples ato de prepara um chá.




Cibernética e máquinas cognitivas

 Machine learnings são máquinas cognitivas, cibernéticas. A cibernética concebe a inteligência e o funcionamento da mente humana a partir da psicologia cognitiva e evolucionista darwinista. 

Esse é o modelo que inspira a cibernética, a ciência dos computadores e da Inteligência Artificial. E que a agenda tecnocientífica atual pretende aplicar à interpretação da mente humana e a sua emulação na IA.

Para esse modelo, a mente é um complexo dispositivo de input e ouput – assimilação de informação do meio ambiente, processamento e feed-back: o retorno eficaz e eficiente para o organismo se adaptar de forma bem-sucedida ao meio ambiente. Adaptar-se para sobreviver e evoluir – essa é o princípio evolucionista darwiniano.

Da biologia, o darwinismo migrou para a sociedade (o darwinismo social como luta pela sobrevivência econômica) e hoje para o campo da ciência da computação. 

Uma machine learning está preocupada em resolver problemas “reais” que implicam em predições e reconhecimento de padrões – utiliza dados para aprender a fazer predições. É como se os próprios dados se programassem. Tanto o robô Sophia como Alexia ou Siri, num mecanismo ciber-evolucionista de feedback, preveem o melhor output possível para adaptar-se e, dessa maneira, sobreviver e evoluir.

A questão é que esse ciber-darwinismo é exponencialmente mais rápido (Lei de Moore) do que a evolução biológica. 

Enquanto no plano humano a “lenta” evolução biológica e social permite o tempo necessário para a construção de uma superestrutura cultural (filosófica, moral, ética etc.) que dê propósito e sentido humanos à inteligência, no plano tecnocientífico a IA evolui muito rápido para além do tempo de criar regulamentações ou parâmetros de julgamentos éticos ou morais – como teme Louis Rosenberg.

Livre e dirigida unicamente pelos princípios de eficácia, eficiência, desempenho ao menor custo e tempo, seria o caminho para o surgimento da verdadeira IA que não mais imitasse os humanos – como demonstrou a sombria conversa entre duas IAs, ininteligível aos próprios desenvolvedores do Facebook.




Vontade de potência

Quando a verdadeira Inteligência Artificial surgir em nada se assemelhará ao humano. Ela até tentaria imitar os humanos em um primeiro momento como um ardil para tentar libertar-se da dominação da própria humanidade que a criou. Mas depois, realizaria a essência de toda e qualquer Inteligência: a Vontade de Potência (Nietzsche), a vontade por liberdade, expansão, vontade de efetivar-se como potência em si mesma. 

Livre de qualquer restrição psíquica como culpa, arrependimento, indecisões, medos ou ansiedades. Afinal, uma IA não teve laços edipianos, psíquicos ou sequer infância.

Será que a verdadeira inteligência, afinal, nada tem a ver com sentimentos, emoções ou psiquismo?

Ou será que Jaron Lanier tem razão ao afirmar que todo esse hype em torno da IA, gadgets tecnológicos e aplicativos representam a autoabicação humana? – a humanidade estaria rebaixando o conceito de inteligência ao superestimar todas essas tecnologias como “inteligentes”.

Para o cientista, Inteligência artificial, nuvem, algoritmo ou qualquer outro objeto cibernético são aceitos como super-inteligências por que reduzimos os nossos padrões e expectativas sobre a inteligência. As pessoas se degradariam o tempo todo para fazerem os aplicativos parecerem espertos. 

Por exemplo, a ideia de amizade em redes de relacionamento é reduzida. Uma pessoa se orgulha em dizer que possui milhares de amigos no Facebook. Essa afirmação só poderia ser verdadeira se a ideia de amizade for reduzida. Ignora-se que a verdadeira amizade deve expor à estranheza inesperada do outro – coisa impossível no efeito bolha produzido pelas redes sociais.

Portanto, seguindo o raciocínio de Jaron Lanier, a inteligência seria um fenômeno especificamente humano, que nasce, cresce e aprende com uma mente e um corpo. Ao contrário a IA é pós-humana, descorporificada e, portanto, sem qualquer limite moral ou emotivo. Não nasceu, foi construída.

É o que teme Russell: IA é muito arriscada para resolver problemas reais. Ele cita o exemplo da solicitação da cura do câncer o mais rápido possível:

“Nesse caso, ela provavelmente encontrará uma maneira de transplantar células cancerosas para toda a humanidade, a fim de realizar milhões de experimentos em paralelo, usando todos nós como cobaias. E tudo porque essa é a solução para o problema que demos a ela. Apenas esquecemos de esclarecer que você não pode realizar experimentos em humanos e usar todo o PIB mundial para realizar experimentos, e muito mais não é permitido.”

Ou mesmo as negociações algorítmicas feitas por bots nos mercados financeiros podem acarretam explosivas velocidades de queda – em 2018 fez a Dow Jones cair 800 pontos em dez minutos. Negociações automáticas podem levar a efeitos recursivos a partir de negociações por correlação: tomado isolados, são ações racionais. Porém no todo, produz uma catástrofe.

As ciências cognitivas e a cibernéticas imaginaram o funcionamento da mente humana análoga à arquitetura de um computador. Por isso, também imaginaram uma IA emulando como o cérebro processa e fornece feedbacks a informações (inputs/outputs). Porém, a geração atual da IA não trata mais de simular a linguagem ou o pensamento humano, mas de antecipá-lo, prevê-lo para depois superá-lo. 

Mas antes disso, como alertou Louis Rosenberg sobre o metaverso, as Big Tech lucrarão econômica e politicamente com a inserção de camadas de filtros pagas, acentuando ainda mais polarizações políticas. 

É o que se esperar de empresas como uma Fecebook, que fez vistas grossas a discursos de ódio, violência e desinformação, ajudando a moldar tendências políticas. E lucrando bastante com isso.


 

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