sábado, novembro 10, 2012
Sintoma e verdade nos zumbis
sábado, novembro 10, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Por que pessoas
fingem-se de mortos que se arrastam pelos centros urbanos do mundo, famintas
por cérebros e sangue dos vivos? Como interpretar um flash mob como o “Zombie Walk” onde centenas de
pessoas se transformam em realísticos zumbis, há onze anos espalhando-se por diversas
capitais do mundo? Desde as lendas afro-caribenhas de pessoas que retornam do
mundo dos mortos como assustadoras sombras de si mesmas até a recorrência dos
mortos vivos no cinema, o fascínio pelos zumbis já produziu uma razoável
bibliografia de pesquisadores que chegam a vê-los como um objeto de estudo
etnográfico. Mas é inegável que os mitos e lendas dos zumbis possuem uma dupla
dimensão: de um lado são sintomas de crises sociais e, do outro, possuem um
momento de verdade ao fazer nos lembrar da condição humana nesse mundo.
O flash mob “Zombie Walk” vem nos últimos anos ganhado cada
vez mais espaço na mídia e seus participantes aprimorando cada vez mais no
realismo das maquiagens e máscaras, trôpegos arrastando suas fantasias
lentamente através de centros urbanos pelo mundo. No evento surgido em 2001 na
Califórnia e que rapidamente se espalhou pelo mundo, vemos centenas de humanos
fingindo-se de mortos que apodrecem enquanto lançam olhares e gestos ameaçadores
para os desavisados, como se quisessem comer uns aos outros. Por que queremos
fazer tais coisas? Por que os zumbis ou mortos vivos acabaram se tornando uma
fantasia cinemática tão recorrente a ponto de produzir uma razoável
bibliografia de pesquisadores que chegam a tratá-los como objeto etnográfico?
Se olharmos atentamente a história da lenda dos zumbis, suas
origens e desenvolvimento até chegar no cinema e na mídia, perceberemos que ela
claramente apresenta duas dimensões: como sintoma social (conflitos de raça e
classes) e como arquétipo, isto é, como um simbolismo do inconsciente coletivo
que se filia ao imaginário dos autômatos, fantoches e bonecos como
representação da condição humana nesse planeta.
quinta-feira, novembro 08, 2012
O espelho global no safári africano do Tocantins
quinta-feira, novembro 08, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
O projeto de um parque
temático milionário em pleno Tocantins (Out of África Brasil) promete trazer leões, rinocerontes,
antílopes, entre outros, das savanas africanas para um safári no cerrado brasileiro.
Definitivamente o Brasil se insere no imaginário da Globalização onde eventos,
geografias e culturas se desterritorializam para circular pelo mundo ao sabor
dos fluxos financeiros e midiáticos. Nesse imaginário os simulacros do “real” e
do “selvagem” parecem ter uma única função: tal qual uma transfusão de sangue,
injetar hiper-realidade em um real cujo sentido se enfraquece - o “selvagem” se
humaniza como um espelho da nossa própria desumanidade: o parque temático
selvagem torna-se mais “real” quanto mais é centrado no “show” da luta dos
predadores e presas como lição moral para a nossa “realidade”.
"Brasil e África se juntam depois de milhares de anos que uma
fissura nas placas tectônicas transformou o que hoje são dois continentes com
características tão semelhantes. Agora já podemos sentir o coração de África no
Tocantins." Essa é uma frase retirada do vídeo promocional de um projeto
de trazer para o meio do Tocantins um típico safári africano. No projeto orçado
em 350 milhões de dólares, em uma reserva de 100 mil hectares seriam colocados
mais de 400 indivíduos de espécies como leões, leopardos, elefantes e búfalos.
Em pleno cerrado brasileiro teríamos animais vivendo como nas savanas africanas
(clique aqui para ler a notícia).
É muito curiosa essa associação entre o deslocamento das placas
tectônicas que separaram os continentes por forças magnéticas do interior da
Terra e um investimento milionário que pretende reunir novamente África e
América do Sul através de um parque temático. Se no passado a deriva dos
continentes separou, agora a energia eletromagnética e espectral da indústria
do entretenimento vai unir.
Mas será que vai unir mesmo? Ou há uma semelhança irônica desses dois
fatos separados no tempo? Em outras palavras, e se no safári do Tocantins
estivermos experimentando o mesmo fenômeno de descolamento e desconexão do
passado? Continentes foram arrastados pelas forças internas do planeta; hoje
culturas e geografias são transformadas em signos pelas forças midiáticas e do
marketing para se deslocarem para pontos distantes das suas origens.
domingo, outubro 28, 2012
"Deus é meu inimigo!"
domingo, outubro 28, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Crianças são
imprevisíveis, principalmente no que pensam e falam. Suas impressões e tiradas
são muitas vezes surpreendentemente cortantes pela sinceridade e concisão.
Ideias que para os adultos já são tão evidentes em si mesmas que passam batidas
e sem exigência de reflexão, para uma criança que as conhece pela primeira vez
muitas vezes são motivos de estranhamento. Uma delas é a ideia de “Deus”. Outro
dia, meu filho Gael demonstrou toda sua estranheza: “O Deus é meu inimigo!”,
disparou. O que está por trás dessa afirmação de uma criança de quatro anos em
um universo lúdico povoado de super-heróis como Homem Aranha e Ben 10, seus
preferidos?
Um dia Gael virou para minha esposa e falou com convicção: “O Deus é
meu inimigo!”. “Mas o que Ele te fez?”, perguntou Tatiane pega de surpresa com uma
afirmação tão dura. “Todos têm medo do Deus. Eu só tenho medo dos meus inimigos
e vilões. Então, o Deus é meu inimigo”, concluiu em um evidente silogismo aristotélico.
A aproximação dos termos “inimigos” e “vilões” torna claro que Gael não se
referia a inimigos pessoais, mas os vilões dos super-heróis com os quais ele se
identifica. Um herói teme seus inimigos (o início da sabedoria dos
super-heróis) para depois encontrar o ponto fraco e vencê-los.
O que me surpreendeu foi a sua concepção de Deus como uma
entidade punitiva e grave que impõem respeito através do medo. Gael não estuda
em uma escola religiosa, mas pedagogicamente crítica, construtivista e laica.
Certamente tal concepção não foi passada diretamente em aulas de religião,
catecismo ou mesmo Filosofia. Se ele não recebeu essa concepção de Deus de
forma doutrinária ou religiosa, só pode ter apreendido indiretamente dentro do
contínuo cultural no qual estamos imersos.
quarta-feira, outubro 24, 2012
A sedução pelas imagens em "Saneamento Básico, O Filme"
quarta-feira, outubro 24, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
A burocracia da
administração das verbas públicas municipais coloca moradores de uma pequena
cidade em uma situação inusitada: a única solução para obter dinheiro para construir uma fossa séptica e resolver o problema do esgoto a céu aberto é a
produção de um vídeo ficcional sobre esse próprio problema real. A questão é que os moradores não têm a menor
noção sobre produção de um vídeo e nem o significado da palavra “ficcional”. “Saneamento
Básico, O Filme” (2007) de Jorge Furtado não só faz uma didática e divertida metalinguagem
sobre os princípios da linguagem audiovisual, mas nos oferece uma oportunidade
de reflexão sobre como a imagem tornou-se o centro da sociedade atual, como
fetiche, sedução e contaminação do real ao produzir “não-acontecimentos”.
Que vivemos na sociedade das imagens, isso é um consenso
desde Guy Debord com o seu livro “Sociedade do Espetáculo” que descreve o
espetáculo difuso como um modo capitalista de organização social que resulta em
alienação e a transformação dos homens em simples coisas por meio das
mercadorias. Desde Debord, a imagem é sempre vista através do viés do
parasitismo, isto é, como uma imensa fantasmagoria que não nos deixaria
compreender as verdadeiras necessidades humanas e espirituais.
Imagem seria ideologia, falsa-consciência, fetiche, mentira
ou manipulação.
Mas, e se distinção que subjaz neste enfoque tradicional
(imagem/referente, verdade/mentira, real/ilusório) desaparecesse na sociedade
do espetáculo contemporânea? Explicando melhor: e se graças à onipresença das
linguagens midiáticas e da criação de um “contínuo midiático atmosférico” a
imagem se confundir com a própria realidade a tal ponto que o primado das
imagens deixasse de ser apenas uma fantasmagoria, mas a própria estrutura
constitutiva da realidade? Ou seja, para o indivíduo as antigas distinções
entre ilusão e realidade pouco importariam, já que a imagem produz efeitos tão
reais quanto as demandas ontológicas do mundo real.
Complicado? Pois o filme brasileiro “Saneamento Básico, O Filme”
apresenta uma narrativa ao mesmo tempo hilária e didática sobre essa perversa
evolução da sociedade do espetáculo.
Produção da Casa de Cinema de Porto Alegre e dirigido por
Jorge Furtado, o filme nos apresenta uma narrativa que se passa numa simplória
e bucólica comunidade de imigrantes italianos no interior do Rio Grande do Sul.
Marina (Fernanda Torres) e Joaquim (Wagner Moura) lideram uma mobilização de
moradores em defesa da construção de uma fossa para abrigar o esgoto local que
corre a céu aberto.
domingo, outubro 21, 2012
O Mal pune desobedientes em "Um Olhar do Paraíso"
domingo, outubro 21, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Centrada
na estória de uma menina que foi assassinada e observa sua família e seu
assassino do “céu” (não propriamente, mas de um limbo entre a terra e o céu), a
adaptação do romance “Lovely Bones” de Alice Sebold esquece a inteligência e a
intrincada estória do livro e confina a experiência do sagrado na célebre
fantasia-clichê hollywoodiana da “quebra-da-ordem-e- retorno-a-ordem”: quem
transgride a Ordem deve ser punido! Assim é “Um Olhar do Paraíso” (Lovely Bones, 2009)
Como
já abordamos em postagens anteriores (veja links abaixo), a chamada experiência
do Sagrado tal qual compreendida pelo mainstream
midiático da atualidade consiste numa espécie de teologia secularizada: uma
experiência que seria originada na percepção ou descoberta intuitiva súbita que
o indivíduo teria de uma conexão com uma “ordem maior”, com uma totalidade
cósmica ou divina.
Descontínuo
e marcado para morrer, para o homem a Verdade não estaria na experiência individual, mas na
liquidação de qualquer perspectiva particular em nome de uma Totalidade (“Somos
todos Um”, o totalitário slogan New Age).
Nessa
perspectiva, esse Sagrado enquanto teologia secularizada, teria duas “funções”:
adaptar de forma violenta o indivíduo às totalidades sociais (ordem
corporativa, política, moral etc.) e trazer racionalização e conforto à dor e
sofrimento individuais decorrentes dessa adaptação forçada (mostrar ao
indivíduo que ele é insignificante diante dos desígnios maiores do Cosmos).
Como
no filme Juventude
Transviada (Rebel Without
a Cause, 1955) onde o personagem de James Dean (Jim Stark) olha
para as estrelas do Planetário e diz que vem sempre para lá para, ao contemplar
a imensidão do universo, perceber como seus problemas são insignificantes.
Da
mesma forma, Um Olhar do
Paraíso confina a
experiência do sagrado a sucessivas experiências de punições dos personagens
por transgressões da Ordem. E o filme segue essa fantasia-clichê de forma
surpreendentemente rígida e esquemática no melhor estilo dos filmes que
envolvem adolescentes nos gêneros terror ou thriller. Se não, vejamos.
sexta-feira, outubro 19, 2012
O futuro do cinema e do real em "S1m0ne"
sexta-feira, outubro 19, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
“Uma estrela
digitalizada! Sabe o que isso significa? Vamos entrar em uma nova dimensão: nossa capacidade de criar
uma fraude ultrapassou nossa capacidade de detectá-la” Depois de escrever o
roteiro de “Show de Truman” Andrew Niccol escreveu, dirigiu e produziu “S1m0ne”
(2002) para aprofundar ainda mais a questão lançada no filme anterior. Se em “Show
de Truman” tínhamos um mundo falso criado para aprisionar uma pessoa, em
“S1m0ne” Niccol fez o inverso: a criação de uma pessoa falsa para enganar e
seduzir todo o mundo.
Andrew Niccol
demonstra uma afinidade com temáticas relacionadas aos impactos sociais das
mídias e novas tecnologias. Antes, escreveu os roteiros de “Gattaca” (1997) e “Show
de Truman” (1998), filmes que, respectivamente, discutiam a ética e o impacto
humano na manipulação genética e a hipertrofia do gênero televisivo reality
show. Uma olhar para o impacto da tecnologia através de simbolismos
cabalísticos, alquímicos e gnósticos. Dessa forma, Niccol pertence a uma
geração de roteiristas e diretores que, a partir da década de 1990, participam
de uma espécie de guinada metafísica de Hollywood já discutida em postagem
anterior (veja links abaixo): Darren Aronofsky (“Pi” – 1998 e “Fonte da Vida” –
2006), Charlie Kaufman – “Quero Ser John Malkovich” – 1999 e “Brilho Eterno de
Uma Mente Sem Lembranças” – 2003) entre outros.
Em “S1m0ne” Niccol
faz uma irônica projeção do futuro do cinema com as tecnologias digitais onde a
virtualização poderia chegar às raias da fraude e também uma forma mística de
transcendência espiritual para escapar da “irracional fidelidade à carne”, como
declara o protagonista em uma das linhas de diálogo do filme.
domingo, outubro 14, 2012
Físicos tentam provar que vivemos na "Matrix"
domingo, outubro 14, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Cientistas da
Universidade de Bonn, Alemanha, estão levando a sério a hipótese de que o nosso
universo poderia ser uma gigantesca simulação de computador ao melhor estilo “Matrix”.
Liderados pelo físico Silas Beane, tentam encontrar a “assinatura cósmica”
dessa simulação e a natureza da nossa “visão restrita” que nos impediria de
percebermos essa virtualidade do real. Para superar essa “visão restrita”
tentam criar uma simulação de nosso universo simulado (uma espécie de
meta-simulação), o que faria lembrar não só filmes como “O Décimo Terceiro
Andar” (1999) e “Matrix” (1999), mas também a cosmologia gnóstica e o Princípio
da Correspondência do Hermetismo e Alquimia da antiguidade em Alexandria.
Alguma outra civilização teria alcançado a capacidade de
produzir computadores tão poderosos que teria desenvolvido simulações do
próprio universo em que habita. E nós poderíamos estar vivendo em uma dessas
simulações, reproduzindo a mesma trajetória que os nossos “criadores”
trilharam. Se na atualidade vemos um número crescente de usuários imersos em
mundos virtuais como “Second Life”, “SimCity” e “World of Warcraft”, isso representaria
o início dessa trajetória que nos conduziria à mesma capacidade de projetar
simulações.
Essas ideias não saíram de um roteirista de sci fi, mas do
filósofo e matemático professor da Universidade de Oxford Nick Bostrom,
sugerido em um artigo em 2003 e sustentado apenas por uma fórmula probabilística que seria
essa:
Onde:
- fp é a fração de todas as civilizações humanas que alcançaram a capacidade tecnológica de produzir programas simuladores de realidade;
- “N” é a média de simuladores ancestrais funcionando pelas civilizações mencionadas em fp;
- “H” é a média do número de indivíduos que viveriam em uma civilização antes dela estar hábil a criar simuladores de realidade;
- “fsim” é a fração de todos os humanos que vivem em realidades virtuais.
Pois “H” terá um
valor tão grande que, pelo menos, uma das três aproximações será verdadeira:
fp ≈ 0
N ≈ 0
fsim ≈
0
Apesar da fórmula que dá um aspecto de cientificidade, a
hipótese de Bostrom era principalmente filosófica e poucos ousariam a dar
continuidade a uma ideia como essa. Até ser noticiado que uma equipe de físicos
teria afirmado que seria possível confirmar ou não essa hipótese, bastando
encontrar uma “assinatura cósmica” (clique aqui para ler a notícia). E os pesquisadores já teriam uma descrição do que
seria essa “assinatura”.
sexta-feira, outubro 12, 2012
Os Cátaros, Paulo Coelho e o turismo esotérico
sexta-feira, outubro 12, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Escalar uma "montanha
mágica" nos Pirineus para encontrar a fortaleza dos heréticos Cátaros do século
XII. O problema é que, para eles, toda a suposta beleza dos céus e da Terra era
“obra de um demônio”. Mas para um turista esotérico isso não importa: a jornada
descrita pelo famoso escritor de best sellers esotéricos Paulo Coelho confirma
os principais mitos dessa agenda “new age” cujo imaginário criou um subgênero
na indústria do turismo. Os mitos dessa jornada: Os “Sinais”, O “Todo”, Os “Lugares
Especiais” e O “Antigo”.
Em uma das minhas visitas à cidade de Santos (meus pais
moram lá) me detive diante de uma banca de jornal e parei na primeira
página do jornal “A Tribuna de Santos”. Era domingo, dia em que o jornal vem
com o suplemento “ATrevista”, uma revista de variedades culturais, culinárias e
dicas de compras. Temas bem amenos para um típico domingo santista ensolarado e
quente. Folheando a revista, perdido entre receitas culinárias e páginas
publicitárias, encontro uma coluna do famoso escritor de best sellers esotéricos Paulo Coelho intitulado “Montanha Mágica”
(clique aqui para ler).
O texto começa com uma típica descrição turística sobre “uma
das as mais belas regiões do mundo”, Languedoc nos Pirineus e Sudoeste da
França. “Mas foi nesse lugar magnífico que nasceu a
primeira grande “heresia” europeia: o catarismo. Muitos livros foram escritos
sobre o tema, entretanto, é possível resumir a filosofia cátara numa simples
frase: o universo foi criado pelo demônio. Toda esta beleza aparente é uma obra
diabólica.” Uauuu! Que tema para um domingo de sol e praia!
Para quem não
sabe, os Cátaros foram os responsáveis pelo reaparecimento do Gnosticismo na
Europa no século XII, esparramados pelo Sul da França, Languedoc, Catalunha e
norte da Itália. Foi um movimento cristão considerado herético pela Igreja, com
forte paralelo com os gnósticos do princípio da era cristã, mais precisamente
com o dualismo de Mani (viveu no Irã no século III) que sustentava que o cosmos
seria dividido por dois poderes opostos: o Bem e o Mal, o verdadeiro Deus e o
Demiurgo, uma divindade decaída e enlouquecida com o próprio poder que nos
aprisiona em um universo físico corrompido.
sábado, outubro 06, 2012
O mundo que nos expulsa no filme "Lugares Comuns"
sábado, outubro 06, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
O filósofo alemão Hegel dizia que “a coruja de Minerva somente levanta voo ao entardecer” numa alusão à esperança de que a Razão ganhe força em momentos de crise e obscurantismo. E se a Razão falhar? Então, seremos expulsos desse mundo. Esse é o tema filosófico dentro do cenário da crise econômica no filme argentino “Lugares Comuns” (Lugares Comunes, 2002). Um professor de Literatura é compulsoriamente aposentado em um reflexo da crise econômica do país e vê seus valores iluministas e humanistas desmoronarem, sentindo-se um estrangeiro em um mundo cujo lógica não trabalha com soma, mas com subtração.
“Eu sei que existe a desordem, a decepção e a desarmonia. Existe um país nos destruindo, um mundo que nos expulsa, um assassino impreciso que nos mata dia após dia, sem que percebamos. Não tenho uma resposta. Escrevo do caos, da mais completa escuridão”. Essas são as primeiras frases em off do protagonista enquanto escreve apontamentos ou pequenas crônicas para o seu diário. Fernando (Frederico Luppi) é um professor de Literatura em uma universidade em Buenos Aires sob a catastrófica crise econômica argentina do início dos anos 2000 pós-política neoliberais do presidente Carlos Menen.
Como podemos perceber nessa fala inicial, o filme “Lugares Comuns” fará um paralelo entre a crise em uma dimensão material (a econômica) é a outra crise em um plano metafísico ou filosófico (as velhas questões da Filosofia que, de tão repetidas, tornaram-se “lugares comuns” – caos e ordem, necessidade e liberdade, livre arbítrio e destino).
Fernando é casado com Lili (Mercedes Sampietro) uma assistente social que acompanha de perto as consequências da crise no país. Apegado ao pensamento crítico, ao Iluminismo e Humanismo tenta exercer a crítica literária e, ao mesmo tempo, ensina seus alunos a pensarem e manterem-se longe dos dogmas políticos e religiosos. Tenta transformar a Razão em bússola em um momento de crise e caos social. A frase de Hegel de que “a coruja de Minerva levanta voo somente no entardecer” (a Razão torna-se mais forte em momentos de obscurantismo) seria a convicção salvadora de Fernando.
quinta-feira, outubro 04, 2012
Em busca do Cinema Acontecimento
quinta-feira, outubro 04, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Uma época em que o cinema não era apenas entretenimento, mas um acontecimento capaz de transformar vidas. Do início do cinema lembramos principalmente dos Irmãos Lumière e de Meliés. Mas poucos pesquisadores dão espaço para relatos sobre uma produção cinematográfica norte-americana do começo do século XX que tematizava os conflitos capital-trabalho, o sindicalismo e a dura vida de imigrantes e trabalhadores em fábricas e minas. O maravilhamento do primeiro público do cinema formado pelos estratos inferiores da sociedade ao se ver representado na tela transformava as primeiras salas de cinema em eletrizantes acontecimentos de participação e interatividade. Logo esses verdadeiros filmes-acontecimentos foram reprimidos e enquadrados por Hollywood e, a partir de 1924, considerados "anti-americanos" (comunistas) pelo Bureau of Investigation de Edgar Hoover. Desses primeiros tempos ficou o desejo da ruptura da ordem e da rotina que nos acompanha a cada ida ao cinema, o anseio pelo Acontecimento.
Para a maioria
dos espectadores, ir ao cinema não é uma atividade que esteja associada ao
perigo e comportamentos transgressivos. Tido como um local onde fantasias podem
ser vividas e tudo pode acontecer em um universo ficional, está mais comumente
associado ao entretenimento ou, no mínimo, a uma fuga dos problemas ou do
esquecimento momentâneo dos aborrecimentos do dia-a-dia.
Mas nem sempre
foi assim ou, talvez, nunca tenha sido. De um lado há uma história descrita por
pesquisadores que localiza no chamado primeiro cinema um tipo de experiência
estética que não se resumia unicamente a uma forma de entretenimento: pelo
contrário, era uma forma de experiência que poderia transformar vidas; de
outro, pesquisas críticas que descrevem o cinema e a própria experiência
estética como uma arena de tumulto e contenção, quebras e retornos à ordem,
crítica e reação. Para esses pesquisadores, desde o primeiro cinema e a
posterior industrialização, enquadramento e controle, o cinema traria ainda
dentro de si a potencialidade em transcender a si mesmo, mudar vidas de
espectadores, transformar a experiência estética em um acontecimento.
domingo, setembro 30, 2012
O olhar surrealista sobre o consumismo em "Little Otik"
domingo, setembro 30, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Se nos contos de fadas
tradicionais ogros, lobos e bruxas ameaçam devorar crianças, em “Otesánek”
(Little Otik, 2000) do animador e diretor checo Jan Svankmajer vemos o inverso:
uma criança ameaça devorar seus próprios pais. Ligado ao movimento surrealista
desde a década de 1970, Svankmajer oferece um olhar carregado de humor negro
sobre uma cultura de consumo baseado na regressão infantil à compulsão e voracidade
oral onde objetos assumem dimensões fetichistas e mágicas ganhando vida
própria, e nos prometendo a redenção das frustrações. O olhar surrealista de
Svankmajer questiona: estaria nessa verdadeira cultura da devoração do outro a origem das guerras,
desigualdades e terrorismo do mundo contemporâneo?
Membro do movimento de artistas surrealistas checos desde os
anos 1970, Jan Svankmajer possui em seu currículo uma série de curtas e filmes longa
metragem onde animações em stop motion, fantoches e animações 2D interagem com
atores. Como cineasta, tenta livrar seu trabalho de tendências decorativas,
maneiristas ou “artísticas” (palavra que Svankmajer rejeita em favor da “criação”)
para buscar em suas narrativas realidades disfarçadas por trás do utilitário e
do convencional.
Dessa maneira, Svankmajer neste filme “Otesánek” (Little Otik, 2000) transforma o prosaico ato de comer associado a um conto de fadas checo
e referências explícitas a Luis Buñuel (como na sequência onde um homem pega
bebês e os envolve em jornais para serem vendidos com peixes para a ceia de
Natal) como metáforas do inconsciente por trás da cultura do consumo.
“Little Otik” é baseado em um antigo conto de fadas tcheco
sobre um casal que descobre que não pode ter filhos, mas adquire um bebê de
forma incomum: o Sr. Horák, um pacato burocrata que trabalha em uma repartição,
ao cavar a terra no fundo do jardim para arrancar uma árvore, encontra uma raiz
com forma curiosa que lembra vagamente uma criança. Horák esculpe a raiz dando
formas definitivas e apresenta à esposa que, de imediato, adota como um bebê
imaginário: secretamente lhe dá banho e o “alimenta”.
quarta-feira, setembro 26, 2012
Espiritismo e iconolatria no filme "Chico Xavier"
quarta-feira, setembro 26, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Mais do que um filme que evita tratar o tema Espiritismo para um nicho de público especializado, "Chico Xavier" de Daniel Filho apresenta um sintoma do destino da religisiosidade e do sagrado na atualidade. Ao tratar o tema de forma comercial para um grande público (sejam ateus, católicos ou mesmo espíritas) acaba reduzindo o Espiritismo ao mínimo denominador comum de toda religiosidade na indústria do entretenimento: iconolatria e um, por assim dizer, ecumenismo pós-moderno que filtra a vida de Chico Xavier através do ideário pragmático da autoajuda.
Depois da comédia de costumes, os olhos do cinema de massa do chamado período de “retomada” do cinema brasileiro volta-se para o Espiritismo e religiosidade. Depois do sucesso de “Bezerra de Menezes – Diário de um Espírito” de Glauber Filho e José Pimentel, o diretor Daniel Filho (no esteio de sucessos de bilheterias à época como “Se Eu Fosse Você”) explorou esse novo filão temático do cinema brasileiro.
A primeira coisa que chama a atenção no filme “Chico Xavier” é o apuro técnico com muitos travellings e movimentos de grua com câmera, a decupagem “clipada” e inquieta, a narrativa marcada por sucessivos flash backs (o eixo da narrativa – o “tempo presente” – é a noite da histórica participação do protagonista no Programa “Pinga Fogo” da TV Tupi em 1971 que, programado para uma hora, acabou se estendendo para três).
domingo, setembro 23, 2012
Desconstruindo o yuppie em "Depois de Horas"
domingo, setembro 23, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Depois da experiência
da direção do filme “O Rei da Comédia” com um amargo Jerry Lewis e um
esquizofrênico Robert De Niro, Martin Scorsese mergulhou de cabeça na paranoia
e ansiedade em “Depois de Horas” (After Hours, 1985). O filme tornou-se o
paradigma de um curioso subgênero da década de 1980, o “Desconstruindo o Yuppie”
onde um protagonista certinho e bem sucedido é vítima de uma sequência de
eventos em cadeia exponencialmente perigosos. Forma e conteúdo do filme
coincidem com a própria experiência estética do espectador que caracteriza o
cinema: o “deixar se perder” no fluxo da edição e montagem. Porém, “Depois de
Horas” não consegue transformar-se em “cinema acontecimento”, limitando-se a um
terapêutico “cinema recuperativo” que nos prepara a voltar para a realidade
quando são acesas as luzes do cinema.
A vivência da experiência estética de produtos ficcionais do
cinema ou da TV é totalmente distinta do assistir um telejornal, da leitura da
imprensa escrita ou do radiojornalismo. O jornalismo estaria no campo do
profano, dos discursos racionais, enquanto os produtos ficcionais estariam no
campo do sagrado (festas e envolvimento coletivo e emocional) onde os
participantes consentem em se “perder”.
Desde o primeiro cinema o perigo, a ansiedade, a paranoia, a
vertigem e a perseguição se constituíram na essência de uma mídia onde a
sensação de desorientação e quebra da ordem passou a ser o elemento definidor
da experiência estética – não é à toa que o primeiro gênero de sucesso popular
no cinema foi o filme de perseguição com o “The Great Train Robbery” de 1903.
Talvez um dos filmes que melhor exemplifique essa natureza
da experiência do cinema seja “Depois de Horas” de Martin Scorsese. Nele
acompanhamos um protagonista em uma situação tal e qual Alice de Lewis Carroll:
ele irá escorregar por um buraco urbano que o fará encontrar um submundo onde “após
a meia-noite as leis mudam”, como afirma um dos alucinados personagens que ele
encontrará em sua jornada.
segunda-feira, setembro 17, 2012
Hollywood e a engenharia dos sonhos dos ratos do MIT
segunda-feira, setembro 17, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Coincidência? A vida
imita a arte? Ou simplesmente o cinema hollywoodiano é um instrumento para
tornar a agenda tecno-científica atual politicamente aceitável e natural para a
sociedade? Uma dupla de pesquisadores do Departamento de neurociências do MIT
anunciou em artigo publicado na “Nature Neuroscience” online o sucesso na
manipulação do conteúdo de sonhos em ratos. Isso abriria a perspectiva de uma “engenharia
dos sonhos”: o controle amplo das memórias através de bloqueios, seleção ou
alteração. Isso faz lembrar uma série de filmes cujos roteiristas anteciparam
ou simplesmente replicaram essa agenda de início do século: “Quero Ser John
Malkovich”, “Vanilla Sky”, “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, “Ciência
dos Sonhos”, entre outros.
Foi publicado neste mês um artigo de Matthew Wilson e Daniel
Bendor na edição on line da “Nature
Neuroscience” intitulado “Biasing the Content of Hippocampal Reply During Sleep”
(leia aqui o artigo). Os autores são, respectivamente, professor do Departamento
de Neurociências e pesquisador do Instituto de Aprendizagem e Memória do MIT
(Massachusetts Institute of Technology – EUA). No artigo descrevem o sucesso na
manipulação dos conteúdos de sonhos de um rato. Segundo eles, a descoberta
reforçaria a nossa compreensão de como a memória se consolida durante o sono,
produzindo a perspectiva da criação de uma espécie de “engenharia do sonho”.
O cientista explorou a forma como o hipocampo do cérebro
codifica os eventos na memória. A equipe de Wilson e Bendor treinou um grupo de
ratos a percorrer um labirinto usando duas diferentes orientações sonoras, ao
mesmo tempo em que eram gravadas as atividades neurais. Mais tarde, quando os
ratos estavam dormindo, os pesquisadores registraram a mesma atividade neural
(os ratos sonhavam com as atividades no labirinto do dia anterior). Os mesmos
sinais sonoros de orientação foram tocados, quando os pesquisadores perceberam
algo interessante: os ratos sonhavam com a mesma seção do labirinto correspondente
ao sinal que era tocado.
Olhando para o futuro, os pesquisadores acreditam que este
exemplo simples de “engenharia sonho” poderia abrir a possibilidade de um
controle mais amplo do processamento da memória durante o sono - e até mesmo a
noção de que as memórias podem ser selecionadas ou reforçadas, bloqueadas ou
alteradas. Wilson e Bendor também apontaram para a possibilidade de se desenvolver
novas abordagens à aprendizagem e à terapia comportamental através de tipos
semelhantes de manipulação cognitiva.
domingo, setembro 16, 2012
O corpo é uma prisão em "Quero Ser John Malkovich"
domingo, setembro 16, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Muitos consideram o filme “bizarro”, “esquisito” e “sem sentido”.
Antes das viagens ao interior da mente em filmes como “Brilho Eterno de Uma
Mente Sem Lembranças” (2004) e “Sinedoque: Nova York” (2008), o roteirista Charlie Kaufman nos
oferece a estranha narrativa do filme “Quero Ser John Malkovich” (Being John
Malkovich, 1999). Em parceria com o diretor Spike Jonze, Kaufmann
conta uma parábola contemporânea sobre identidade, mediações, avatares e reencarnação
através de pessoas que querem encontrar a felicidade no corpo de outras pessoas. Como? Escorregando para o interior da cabeça de um famoso ator: John Malkovich.
Você já se sentiu
preso em seu próprio corpo, desejando ardentemente ir para outro lugar e ter um
novo nome, novo emprego e até mesmo uma nova personalidade? Você já teve
fantasias escapistas de ganhar na Mega Sena para fugir de uma rotina cinzenta,
ficar milionário e ter o amor e as coisas com que sempre sonhou?
Até onde você
estaria disposto a ir para ganhar dinheiro, ou seja, achar que seria uma boa
ideia invadir a privacidade de uma pessoa através de um telescópio instalado em seu escritório e cobrar taxas de pessoas que querem secretamente espionar
a vida de alguém famoso? Você sempre quis ser famoso não apenas por 15 minutos,
mas se tornar um tipo que usasse óculos de sol apenas para dar um passeio em
torno do quarteirão e não ser reconhecido e incomodado por pedidos de autógrafos?
Finalmente,
você já foi incomodado por pessoas que lhe fazem perguntas como estas?
Pois se você
respondeu “Sim” a algumas dessas perguntas ou se mesmo acha tais perguntas totalmente sem sentido está preparado para assistir a um filme estranho, bizarro e
nonsense chamado “Quero Ser John Malkovich”.
Um titereiro
fracassado chamado Craig (John Cusack) vive com sua esposa Lott (Cameron Diaz,
irreconhecível) e com um chipanzé vitimizado por um “trauma infantil”.
Desempregado, autoindulgente (se vê como um “artista torturado”) Craig consegue
um misterioso novo emprego que unicamente exige do candidato “dedos ágeis”. Lá
encontra uma porta escondida por trás de um arquivo que conduz a um escuro é
úmido túnel que o faz escorregar para dentro da mente do famoso ator John
Makovich, onde pode permanecer por 15 minutos vendo e experimentando sensações
por meio da mente hospedeira.
Passado o tempo limite, Craig é cuspido para uma
estrada na periferia da cidade. Impressionado com a descoberta, resolve montar
um negócio vendendo passagens para outras pessoas infelizes com suas próprias
vidas que desejem ser por, alguns instantes, outra pessoa.
sábado, setembro 08, 2012
Nos abismos metalinguísticos da TV Globo
sábado, setembro 08, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
No ônibus-estúdio do
programa “Globo Esporte” da TV Globo o jornalista Tiago Leifert comanda uma
espécie de “narrativa em abismo” em pleno CT do São Paulo F.C.: um programa
televisivo em um estúdio itinerante mostra através do monitor que compõe o cenário um evento (coletiva do técnico da
seleção brasileira de futebol Mano Menezes) programado para coincidir com o
próprio programa esportivo global. Qual é afinal a notícia: a novidade do
ônibus-estúdio estacionado no meio de um centro de treinamento ou a coletiva
que, no final, era um “evento-encenação” programado para acontecer dentro da
grade horária da emissora? Nesse abismo metalinguístico encontramos tanto o
resultado da evolução histórica das mídias quanto a constituição do próprio monopólio midiático
e político da TV Globo.
Vemos imagens de uma tomada aérea do Centro de Treinamento
do São Paulo FC e percebemos, em destaque, no centro do campo visual, o teto do
ônibus-estúdio do programa “Globo Esporte” da TV Globo. Corta para dentro deste
estúdio onde vemos o apresentador Tiago Leifert fazendo as tradicionais
introduções ao noticiário esportivo da seleção brasileira. Em segundo plano uma
tela onde vemos a imagem do repórter Mauro Naves, pronto para iniciar a cobertura
de uma coletiva à imprensa com o técnico da seleção brasileira Mano Menezes. “Está
iniciando nesse momento a coletiva do técnico da seleção...”, começa a falar o
repórter. Na verdade “está iniciando nesse momento” é um eufemismo para dizer “está
iniciando dentro do Globo Esporte”, isto é, a assessoria de imprensa da CBF
apenas esperava a introdução de Tiago Leifert para iniciar o evento.
A imagem do
apresentador do Globo Esporte tendo ao fundo uma tela de um evento logisticamente
programado para a grade horária da TV Globo produz uma estranha sensação
daquilo que os teóricos do cinema chamam de “narrativa em abismo”: vemos um
filme sendo produzindo e dentro dele outro filme também é produzido. Um curioso
efeito recursivo, reforçado pelo enquadramento de câmera que sugere uma “profundidade
de campo” que lembra o expressionismo alemão e o filme noir: quadros dentro de
quadros com a presença de janelas, portas e espelhos.
Porém, estamos falando de uma emissora de TV com controle
monopolístico onde tudo isso que descrevemos acima nada tem a ver com os profundos
significados que a profundidade de campo produz na narrativa cinematográfica - ligação
com outras dimensões, o medo e ilusões. Há uma espécie de saturação ou abismo
metalinguístico: os sistemas de comunicação midiáticos parecem funcionar como
se eles mesmos fossem o mundo e como se não houvesse nenhum mundo além deles.
sábado, setembro 01, 2012
A "zona cinza" do conservadorismo
sábado, setembro 01, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Em debate na Faculdade
de Ciências Sociais da USP sobre “A Ascensão Conservadora em São Paulo”, a
filósofa Marilena Chauí sugeriu em sua fala uma interessante conexão entre os “aparatos
neoliberais” oferecidos à classe média, o encolhimento da esfera pública e a
expansão da privada e o conservadorismo político. Talvez tenhamos aqui uma novidade: a
percepção de uma zona cinza ou desconhecida ainda não plenamente explorada nem
pela psicologia ou pelas ciências sociais: seriam possíveis os aspectos
sensoriais e cognitivos envolvidos nas diferentes "acoplagens" das pessoas com
esses “aparatos” (automóvel, computador, celulares, TV etc.) moldarem visões de
mundo e ideologias?
Na história da ciência a psicologia social surgiu como uma
tentativa de criar uma ponte entre as ciências sociais (sociologia,
antropologia e ciência política) e a psicologia. Na verdade, procurava dar
conta de uma urgência muito mais dramática: compreender os movimentos
ideológicos de massa do século XX (em particular o nazi-fascismo) baseados no
linchamento, racismo, homofobia e fanatismo coletivos. Entender o porquê do
surgimento de uma psicologia de massas que, muitas vezes, era diametralmente
oposta à individual: indivíduos aparentemente civilizados de repente podem
tornar-se violentos e regressivos em ambientes públicos e de interação
interpessoal.
Esforços como os estudos sobre a formação da personalidade
autoritária liderados por Theodor Adorno na década de 1950 e a criação da
chamada “Escala F” (a aplicação de um questionário para detectar traços
protofascistas na personalidade) tentavam compreender a dinâmica desse “encaixe”
entre o individual e o coletivo.
A fala da filósofa Marilena Chauí em um debate sobre “A
Ascensão Conservadora em São Paulo” na Faculdade de Ciências Sociais da USP no dia 28 (veja vídeo abaixo) sugeriu um novo enfoque nessa discussão: a conexão entre os “aparatos
neoliberais”, encolhimento da esfera pública e o conservadorismo da classe
média paulistana.
Chauí parte do fenômeno clássico objeto da psicologia
social: “a classe média paulistana é um mistério. Convidam você para ir a casa
deles, é bem recebido, fazem uma comida especial para você, te levam até a porta,
oferecem carona etc. Mas basta dirigir um carro, entrar numa fila ou num espaço
que deve ser compartilhado para se transformarem em bestas selvagens”.
quinta-feira, agosto 30, 2012
"Matrix" revisitado: por que Jean Baudrillard não gostou do filme?
quinta-feira, agosto 30, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
“’Matrix’ é certamente
o tipo de filme sobre a matriz que a matriz teria sido capaz de produzir”,
afirmou de forma mordaz o pensador francês Jean Baudrillard em uma das raras
entrevistas sobre o filme dos irmãos Wachowski. Além dos irmãos terem se
inspirado no livro “Simulacros e Simulações” do francês para o argumento de
“Matrix”, convidaram-no para assessorar a continuação da trilogia. Baudrillard
prontamente declinou do convite passando a raramente opinar sobre a relação do
filme com seus conceitos filosóficos. Em uma das poucas entrevistas sobre o filme concedida ao "Le Nouvel Observateur" em 2003, Baudrillard criticou a ausência de ironia em "Matrix" e de ter tomado os princípios de "simulacro" e "simulação" a partir das categorias da realidade.
Certamente o filme “Matrix” tornou-se um clássico, não tanto
pelas suas virtudes cinematográficas (na verdade, um típico blockbuster com todas as convenções do
gênero), mas por ter se tornado uma síntese dos temas explorados em filmes como
“Show de Truman”, “O Décimo Terceiro Andar”, “Ed TV” etc.: as crises decorrentes
do apagamento das fronteiras entre o real e o virtual. Embora o filme faça uma
alusão ao pensador francês Baudrillard, nas poucas entrevistas concedidas sobre
“Matrix” ele demonstrou a estranheza de ver um conceito filosófico transposto
para a realidade com muitos efeitos especiais. Para ele, o filme foi equivocado
em aproximar o tema da noção do Mito da Caverna de Platão, além de conceber a
simulação da matriz a partir das categorias da realidade.
Na entrevista que transcrevemos abaixo concedida ao Le Nouvel Observateur, Baudrillard
afirma que o equívoco de Matrix foi retirar a ambiguidade do choque entre o
virtual e o real e conceber a Matriz como uma tecnologia de onde é retirado o
perigo e o negativo. Uma narrativa esquemática onde o deserto do real (sujo,
decadente e perigoso) é substituído por uma tecnologia maquiavelicamente
precisa, onde até as anomalias e revoltas já estariam previstas nas equações.
Em outras palavras, sob a aparente crítica “Matrix” representaria um sintoma do
fascínio cultural pelas tecnologias computacionais.
domingo, agosto 26, 2012
Ocultismo e política no fenômeno viral "I, Pet Goat II"
domingo, agosto 26, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Propaganda Iluminati? Denúncia à hipocrisia da política
anti-terror dos EUA? Uma metáfora da decadência espiritual do Ocidente? O curta
canadense de animação “I, Pet Goat II” virou um fenômeno viral da Internet,
produzindo as interpretações mais extremas. Elegante e ao mesmo tempo bizarro,
o vídeo mergulha em uma série de simbolismos relacionados com fundamentalismo
religioso, propaganda política e ocultismo. Mas ao mesmo tempo a narrativa
contém uma estranha ambiguidade: será que o vídeo não cai na mesma armadilha
ideológica de todos os fundamentalismos que procura denunciar – o messianismo?
O curta de animação “I, Pet Goat II” virou um fenômeno viral
na Internet. O curta multiplicou-se em uma série de vídeos onde se tenta
enumerar e explicar, sequência por sequência, os inúmeros simbolismos presentes
na animação do canadense Louis Lefebvre. Simbolismos políticos, místicos,
ocultistas e conspiratórios que fazem a delícia tanto dos teóricos de
conspirações quanto dos estudiosos em propaganda e política internacional.
O curioso é que as interpretações são ambíguas e extremas:
de um lado veem na animação uma denúncia à política anti-terror dos EUA e a
utilização da religião como forma de manipulação das mentes conformadas; do
outro, interpretam o vídeo como uma propaganda Iluminati e o personagem central
da narrativa (Jesus redivivo sob uma roupagem esotérica) como o próprio
Anti-Cristo que estaria por trás da construção da chamada “Nova Ordem Mundial”
(NWO, em inglês).
O curta de animação é uma produção do estúdio canadense Heliofant
(o nome sugere um trocadilho entre o termo “hierofante” – sacerdotes da alta
hierarquia dos mistérios da Grécia e Egito antigo - “Heliópolis” – cidade do antigo Egito cuja
divindade máxima era “Rá”) formada por um grupo de artistas nas áreas de dança,
música, animação digital e artes visuais. Nas palavras de Louis Lefebvre, a
proposta do estúdio é “explorar diversas tradições espirituais e filosóficas em
diferentes formas líricas” (veja “Interview with Director of I, Per Goat II Louis Lefebvre”). E a animação “I, Pet Goat II” atinge esse objetivo de forma
simultaneamente elegante e bizarra: pelo acúmulo de simbolismos e personagens
mitológicos (“O Guardião do Fogo”, “O Feiticeiro”, “A Pietá” etc.) em um
estranho universo gelado e sombrio, ficamos nos perguntando o tempo inteiro “o
que isso quer dizer?” a cada cena.
sexta-feira, agosto 24, 2012
A paranoia gnóstico-noir do filme "Ilha do Medo"
sexta-feira, agosto 24, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Para
quem lida com pesquisa sobre a recorrência de temas gnósticos na produção
cinematográfica atual, ver Ilha
do Medo (Shutter Island,
2010) faz lembrar de toda uma gama de filmes (Matrix, Cidade das Sombras, Show de Truman, Amnésia, Décimo Terceiro
Andar etc.) que tematizam a paranoia e a esquizofrenia como
caminhos para o despertar da consciência frente à realidade ilusória
artificialmente criada por uma trama conspiratória.
Scorsese constrói uma pesada e tensa atmosfera típica dos filmes noir (gêneros de filme norte-americano
dos anos 1940-50 notabilizado pela fotografia em preto e branco com alto
contraste e personagens com motivações cínicas em um mundo que se desfaz em
névoas e chuva) , com toda a iconografia e simbologia do gênero (neblina, fogs,
fumaça de cigarros, chuvas e tempestades, overcoats, vidros e espelhos) sobre a
estória de dois policiais federais (Teddy – Di Caprio e Chuck – Mark Ruffalo)
que desembarcam numa ilha onde está instalado um manicômio judiciário. Estão lá
para desvendar o mistério do desaparecimento de uma prisioneira em uma ilha
cuja fuga é impossível.
O detalhe importante é que a narrativa se situa no ano
de 1952, no auge da paranoia da opinião pública norte–americana sobre a Guerra
Fria e o anti-comunismo, contexto que potencializa ainda mais a vertigem paranoica
do filme.
Como em todo filme noir onde
nada é o que aparenta ser, Teddy encarna o personagem arquetípico do Detetive:
ele tem que resolver um enigma proposto, sem saber que a solução final desse
enigma levará à própria identidade perdida ou esquecida. Esta perda cria o
estado de paranoia: em quem confiar? Como distinguir a verdade da mentira, a
ilusão da realidade? Por que os fatos se sucedem sem causalidade? Como saber se
o que ele sente é sanidade ou loucura?
terça-feira, agosto 21, 2012
Nova versão de "O Vingador do Futuro" neutraliza visões de Philip K. Dick
terça-feira, agosto 21, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
A versão atual de “O
Vingador do Futuro” (Total Recall, 2012) à primeira vista parece ser mais fiel ao conto de
Philip K. Dick ao adotar uma narrativa mais séria, grave e sombria do que o
original de 1990 de Paul Verhoeven. Mero engano. Como é possível um filme hollywoodiano assumir a virulência de um escritor que denunciava conspirações cósmicas e
pregava a revolta contra sistemas autoritários de controle em nome de ideais ocultistas
e esotéricos? Por meio de sutis estratégias que neutralizam as visões radicais de K. Dick permitindo ao
espectador voltar para a sua rotina como se nada tivesse acontecido depois que
as luzes do cinema forem acesas.
Desde que o escritor norte-americano Philip K. Dick atendeu
à campainha da sua casa em março de 1974 e surgiu uma menina de entrega de uma
farmácia usando um delicado colar de onde pendia um peixe dourado, sua vida
nunca mais foi a mesma. Se desde a década de 1950 K. Dick escrevia livros e
contos sobre conspirações cósmicas, universos
paralelos, amnésia, paranoia, estados ambivalentes entre a realidade e ilusão e
revolta contra sistemas autoritários de controle, essa prosaica experiência de
atender a uma entrega confirmou tudo o que imaginava: viu um raio cor de rosa
sair do peixe (símbolo do Cristianismo primitivo) e atingi-lo na região do
terceiro olho (sobre esse episódio da gnose do escritor veja links abaixo).
A partir daí, o
tecido da realidade se esgarçou para K. Dick que passou a vislumbrá-la como um constructu a partir de memórias artificiais implantadas em
cada um de nós: descobriu em uma espécie de epifania religiosa que seu
verdadeiro eu estava em uma realidade alternativa, arquetípica, negada pela
artificialidade dessa realidade.
O conto “We Can
Remember it for You Wholesale” (“Recordações por Atacado”) publicado em 1966 é um
dessas visões de K. Dick sobre a fragilidade da noção de realidade (como
escreve no conto “um conjunto de reações bioquímicas do cérebro estimuladas por
impulsos visuais”). Após o grande sucesso de “Blade Runner – O Caçado de
Andróides” de 1982, baseado em um livro de K. Dick (Do Androids Dream of
Eletric Sheeps?), Hollywood interessou-se pelos insights assumidamente
gnósticos do escritor.
sexta-feira, agosto 17, 2012
O drama subliminar da música de sucesso
sexta-feira, agosto 17, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
A música popular de
sucesso esconde um drama subliminar: a tensão entre o beat, ritmo, melodia e
harmonia. E essa tensão é resolvida pelas seguintes maneiras: imposição de uma
estrutura circular, o tempo padrão, a linguagem tatibitate e dependência oral e
a auto-referência. Se Freud estiver correto ao afirmar que toda produção
simbólica humana como a arte, religião e mitologia partilham do mesmo processo
primário da elaboração neurótica do inconsciente como o devaneio, o sonho e o
pensamento infantil, essa tensão presente na música seria aquela existente
entre inconsciente e sociedade. A diferença, é que no hit popular essa tensão é
mais ampla: a luta entre as necessidades mercadológicas da indústria do
entretenimento e a liberdade.
“Ai Se Eu Te Pego” de Michel Teló, “Vem Dançar com Tudo” de
Robson Moura e Lino Krizz (tema da novela "Avenida Brasil" da TV Globo) e “Eu
Quero Tchu Eu Quero Tcha” de João Lucas e Marcelo. Por mais que torçamos o
nariz para esses hits efêmeros, temos que admitir que esses produtos midiáticos
expõem de forma explícita os mecanismos de criação da indústria do
entretenimento. São exemplos didáticos pelo seu esquematismo, repetição e
clichê.
Ouvir essas músicas não é apenas um tipo de entretenimento,
mas em termos de conteúdo significa viver. Numa análise estrutural da harmonia
das canções populares percebe-se uma estrutura básica periódica ou cíclica
refrões e riffs que se repetem criando uma tensão que aprisiona a melodia. A
música termina sempre exatamente onde começou, o que explica, em geral, o final
da canção terminar lentamente em BG: nenhum processo é concluído porque nada
aconteceu.
Para pesquisadores alemães sobre a canção de massas como S. Schädler (“Das Zyklische und das Repetitive: Zur Struktur populärer Musik” In: Prokop,
Dieter: Medienforschung, 2011) e Carmen Lakaschus (“Die Kommunikationswirkung des
Werbefernsehens”, Bauer, 1973) , o tempo cíclico das canções corresponde à própria
natureza cíclica dos eventos da vida cotidiana: amor, objetos, sexualidade,
natureza etc.
Ao analisar o fenômeno da música de massas esses pesquisadores aproximam-se
bastante das ideias sobre emoção estética em Freud como descarga (neurótica) de
intensidades afetivas por meio de condensações e deslocamentos (em termos
linguísticos por metáforas e metonímias). Schadler faz uma interessante análise
estrutural da canção popular ao descrever uma espécie de “drama subliminar” que
ocorreria no interior de cada sucesso: afetos, emoções, aspirações e desejos em
tensão com a ordem social do tempo cíclico e repetitivo das normas e demandas sociais,
representados na música na tensão entre ritmo, riffs e refrões cíclicos que
confinam da melodia.
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