“’Matrix’ é certamente
o tipo de filme sobre a matriz que a matriz teria sido capaz de produzir”,
afirmou de forma mordaz o pensador francês Jean Baudrillard em uma das raras
entrevistas sobre o filme dos irmãos Wachowski. Além dos irmãos terem se
inspirado no livro “Simulacros e Simulações” do francês para o argumento de
“Matrix”, convidaram-no para assessorar a continuação da trilogia. Baudrillard
prontamente declinou do convite passando a raramente opinar sobre a relação do
filme com seus conceitos filosóficos. Em uma das poucas entrevistas sobre o filme concedida ao "Le Nouvel Observateur" em 2003, Baudrillard criticou a ausência de ironia em "Matrix" e de ter tomado os princípios de "simulacro" e "simulação" a partir das categorias da realidade.
Certamente o filme “Matrix” tornou-se um clássico, não tanto
pelas suas virtudes cinematográficas (na verdade, um típico blockbuster com todas as convenções do
gênero), mas por ter se tornado uma síntese dos temas explorados em filmes como
“Show de Truman”, “O Décimo Terceiro Andar”, “Ed TV” etc.: as crises decorrentes
do apagamento das fronteiras entre o real e o virtual. Embora o filme faça uma
alusão ao pensador francês Baudrillard, nas poucas entrevistas concedidas sobre
“Matrix” ele demonstrou a estranheza de ver um conceito filosófico transposto
para a realidade com muitos efeitos especiais. Para ele, o filme foi equivocado
em aproximar o tema da noção do Mito da Caverna de Platão, além de conceber a
simulação da matriz a partir das categorias da realidade.
Na entrevista que transcrevemos abaixo concedida ao Le Nouvel Observateur, Baudrillard
afirma que o equívoco de Matrix foi retirar a ambiguidade do choque entre o
virtual e o real e conceber a Matriz como uma tecnologia de onde é retirado o
perigo e o negativo. Uma narrativa esquemática onde o deserto do real (sujo,
decadente e perigoso) é substituído por uma tecnologia maquiavelicamente
precisa, onde até as anomalias e revoltas já estariam previstas nas equações.
Em outras palavras, sob a aparente crítica “Matrix” representaria um sintoma do
fascínio cultural pelas tecnologias computacionais.
A HIPÓTESE DO
SIMULACRO MERECIA MUITO MAIS DO QUE TORNAR-SE REAL
Aude Lancelin – 25/06/2003
Le Nouvel Observateur: Suas reflexões sobre a realidade e o
virtual são algumas das principais referências usadas pelos criadores de
“Matrix”. O primeiro episódio explicitamente faz alusão a você quando o
espectador claramente vê a capa de seu livro “Simulacros e Simulações”. Você
ficou surpreso com isso?
Os irmãos Wachowski |
Jean Baudrillard: Certamente houve erros de interpretação, o
que seja por isso que tenho sido hesitante até agora para falar sobre o filme “Matrix”.
A equipe dos irmãos Wachowski contatou-me em vários momentos após o lançamento
do primeiro episódio, a fim de me envolver com os seguintes, mas isso realmente
não era concebível (risos). Basicamente, um mal-entendido semelhante ocorreu em
1980, quando um grupo de artistas de Nova York chamado “Simulacionistas”[1] me
contatou. Eles tomaram a hipótese do virtual como um fato irrefutável e
transformouo-a em um fantasma visível. Mas é precisamente isso, o fato de não
podermos utilizar categorias do real a fim de discutir as características do
virtual.
Nouvel Observateur: A conexão entre o filme e a sua visão
desenvolvida, por exemplo, no livro “O Crime Perfeito”, é, no entanto, bastante
impressionante. Ao evocar um deserto do real, esses humanos totalmente
virtualizados e espectrais não são mais do que a reserva energética de objetos
de pensamento ....
Jean Baudrillard: Sim, mas já houve outros filmes que tratam a
indistinção crescente entre o real e o virtual: “Show de Truman”, “Minority
Report”, ou mesmo “Mulholland Drive”, a obra-prima de David Lynch. O valor de “Matrix”
é, principalmente, o de ser uma síntese de tudo isso. Mas a narrativa é muito crua
e não verdadeiramente evoca o problema. Os personagens ou estão na matriz, isto
é, no sistema digitalizado de coisas, ou estão radicalmente fora dele, tal como
em Sião, a cidade da resistência. Mas seria interessante mostrar o que acontece
quando esses dois mundos colidem. A parte mais constrangedora do filme é que o
novo problema colocado pela simulação é confundido com o tratamento clássico
platônico. Esta é uma falha grave. A ilusão radical do mundo é um problema
enfrentado por todas as grandes culturas e que é resolvido através da arte e
simbolização. O que nós inventamos a fim de dar conta desse mal estar é um real
simulado, que doravante suplantará o real como a sua solução final, um universo
virtual do qual tudo o que é perigoso e negativo foi expulso. E “Matrix” é,
inegavelmente, parte disso. Tudo que pertence à ordem do sonho, utopia e ilusão
é dada uma forma concreta, é realizado." Estamos na transparência sem
cortes. “Matrix” é certamente o tipo de filme sobre a matriz que a matriz teria
sido capaz de produzir.
Nouvel Observateur: É também um filme que pretende denunciar
alienação tecnicista e, ao mesmo tempo, demonstra inteiramente o fascínio exercido
pelo universo digital e das imagens geradas por computador.
Para Baudrillard é notável a ausência de ironia que permita aos espectadores irem para além dos efeitos especiais |
Jean Baudrillard: O que é notável sobre “Matrix Reloaded” é a
ausência de um lampejo de ironia que permita aos telespectadores transformar
este gigantesco efeito especial em sua cabeça. Não há uma seqüência que seja o “punctum”,
sobre qual Roland Barthes escreveu, esta marca impressionante que lhe traz
cara-a-cara com uma imagem verdadeira. Além disso, isso é o que torna o filme
um sintoma revelador do fetiche real em torno deste universo de tecnologias de
tela no qual não há mais distinção entre o real e o imaginário. Podemos
considerar “Matrix” um objeto extravagante, ao mesmo tempo sincero e perverso,
onde não há nem um aqui nem lá. O pseudo-Freud que fala na conclusão do filme
coloca muito bem: em um determinado momento nós reprogramamos a matriz a fim de
integrar anomalias na equação. E você e as resistências seria uma parte delas.
Dessa maneira estamos, ao que parece, dentro de um circuito virtual total sem
um exterior. Aqui, novamente estou em desacordo teórico (risos). “Matrix” pinta
a imagem de uma superpotência monopolista, como vemos hoje, e então colabora em
sua refração. Basicamente, a sua difusão em escala mundial é conivente com o
próprio filme. Sobre este ponto, vale a pena lembrar Marshall McLuhan: o meio é
a mensagem. A mensagem de “Matrix” é a sua própria difusão por meio de uma contaminação
incontrolável.
Nouvel Observateur: É um pouco chocante ver que, doravante,
todos os sucessos de marketing norte-americanos, de “Matrix” ao novo álbum de
Madonna, são apresentados como críticas ao sistema que maciçamente os promove.
Jean Baudrillard: Isso é exatamente o que faz com que nosso
tempo seja tão opressivo. O sistema produz uma negatividade em trompe-l'oeil, que é integrado em
produtos do espetáculo, assim como a obsolescência é construído em produtos
industriais. É a forma mais eficiente de incorporação de todas as alternativas
genuínas. Não há um ponto Omega mais externo ou meios disponíveis antagônicos para
analisar o mundo. Não há nada mais do que uma adesão fascinada. Deve-se
entender, no entanto, que quanto mais se aproxima de um sistema de perfeição
mais nos aproximamos do acidente total. É uma forma de ironia objetivo estipulando
que nada aconteceu. O 11 de setembro foi um exemplo disso. O terrorismo não é
um poder alternativo, não é nada, exceto a metáfora deste retorno quase suicida
do poder ocidental sobre si mesmo. Isso foi o que eu disse na época e foi
amplamente criticado. Não se trata de ser niilista ou pessimista em face de
tudo isso. O sistema, o virtual, a matriz - tudo isso talvez retorne à lata de
lixo da História. Enquanto a reversibilidade, desafio e sedução são
indestrutíveis.
Comentário
De Hollywood ao meios intelectuais e
acadêmicos, as ideias de Baudrillard foram
interpretadas por leituras esquemáticas a
partir da noção ideológica de "falsa consciência"
|
A estranheza de Baudrillard em ver seus conceitos de
simulacro e simulação traduzidos por meio de efeitos especiais
em uma típica narrativa maniqueísta de luta entre o bem e o mal, a realidade e
o virtual, não se refere apenas uma interpretação equivocada de Hollywood e dos
irmãos Wachowski. Os próprios círculos intelectuais e acadêmicos também
acabaram fazendo uma leitura sobre Baudrillard semelhante ao partir da tradicional crítica da
ideologia como falsa consciência.
É como se tudo fosse uma estória narrada com a seguinte
sinopse: era uma vez o virtuoso real que, de repente, foi corrompido pela
ambição humana traduzida por uma sofisticada tecnologia que criou uma
representação ideológica do mundo que subjuga os homens bons sedentos pela Verdade e Realidade.
Essa leitura esquemática de Baudrillard não compreende o
ponto crucial no pensamento do francês expresso na entrevista acima: a
realidade, desde o seu início, já foi seduzida pela ilusão através da ironia,
reversibilidade e sedução. Como vimos em postagem anterior (veja links abaixo) é o postulado gnóstico de que o mundo físico é corrompido desde sua criação, seduzido pelo Mal tomado aqui em um sentido mais ontológico do que moral.
O que Baudrillard qualificava como “estratégia fatal” era o
fato de a realidade ser irônica e desafiar todos os propósitos humanos de
controle, assepsia e transparência. Chamava essa estratégia irônica de “reversibiliade”:
o destino de cada ação no sentido do Bem (progresso, transparência,
desenvolvimento, funcionalidade, racionalidade etc.) resulta em uma espécie de
efeito entrópico: dissolução, regressão, opacidade. A tecnologia que de tão
sofisticada e complexa converte-se em gadgets inúteis; a assepsia e o ideal de
brancura total produz a infecção hospitalar; o sistema econômico que de tanta
racionalidade resulta em um gigantesco potlach. Dessa forma, para cada ato bom
produz-se um efeito perverso: a produção reverte-se em destruição, a paz produz
a guerra, a realidade a ilusão, e assim por diante.
Por isso, como diz Baudrillard na entrevista, todas as
culturas se defrontaram com a suspeita da ilusão radical do mundo e tentaram
elaborá-la por meio das artes e simbologia. A cultura tecnológica, ao contrário,
procurar dar conta desse mal com a simulação do real, criar uma ilusão que
supere outra ilusão por meio da tentativa de eliminar a negatividade e o mal
através da precisão, racionalidade e assepsia.
Por isso, Baudrillard criticava a falta de ambiguidade e
ironia à trilogia “Matrix”: a matriz é perfeita demais e o real é
excessivamente desértico. Tudo preto/branco, binário, tal qual a lógica do
sistema contra a qual a narrativa tenta rebelar-se.
[1]
Foi talvez Peter Halley, mais do que qualquer outro pintor americano “Simulacionista”,
que triunfou a conceituação de Baudrillard de hiper-realidade na arte. E, como
ele observa com ironia, Baudrillard acabou com as esperanças de Halley ao
afastar-se dele com críticas. Mas não foi apenas os pintores “Simulacionistas” que
mereceram a crítica. Como Paul Hegarty disse em uma recente entrevista com
Baudrillard (Abril de 2003, em seu livro Jean
Baudrillard: Live Theory, London: Continuum, 2004): "os últimos foram
os ‘artistas simbióticos’. Eles continuaram insistindo, dizendo: 'mas você deve
amar o que estamos fazendo’. Baudrillard disse: 'espera aí, isso não é
aceitável".
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