Muitos consideram o filme “bizarro”, “esquisito” e “sem sentido”. Antes das viagens ao interior da mente em filmes como “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (2004) e “Sinedoque: Nova York” (2008), o roteirista Charlie Kaufman nos oferece a estranha narrativa do filme “Quero Ser John Malkovich” (Being John Malkovich, 1999). Em parceria com o diretor Spike Jonze, Kaufmann conta uma parábola contemporânea sobre identidade, mediações, avatares e reencarnação através de pessoas que querem encontrar a felicidade no corpo de outras pessoas. Como? Escorregando para o interior da cabeça de um famoso ator: John Malkovich.
Você já se sentiu
preso em seu próprio corpo, desejando ardentemente ir para outro lugar e ter um
novo nome, novo emprego e até mesmo uma nova personalidade? Você já teve
fantasias escapistas de ganhar na Mega Sena para fugir de uma rotina cinzenta,
ficar milionário e ter o amor e as coisas com que sempre sonhou?
Até onde você
estaria disposto a ir para ganhar dinheiro, ou seja, achar que seria uma boa
ideia invadir a privacidade de uma pessoa através de um telescópio instalado em seu escritório e cobrar taxas de pessoas que querem secretamente espionar
a vida de alguém famoso? Você sempre quis ser famoso não apenas por 15 minutos,
mas se tornar um tipo que usasse óculos de sol apenas para dar um passeio em
torno do quarteirão e não ser reconhecido e incomodado por pedidos de autógrafos?
Finalmente,
você já foi incomodado por pessoas que lhe fazem perguntas como estas?
Pois se você
respondeu “Sim” a algumas dessas perguntas ou se mesmo acha tais perguntas totalmente sem sentido está preparado para assistir a um filme estranho, bizarro e
nonsense chamado “Quero Ser John Malkovich”.
Um titereiro
fracassado chamado Craig (John Cusack) vive com sua esposa Lott (Cameron Diaz,
irreconhecível) e com um chipanzé vitimizado por um “trauma infantil”.
Desempregado, autoindulgente (se vê como um “artista torturado”) Craig consegue
um misterioso novo emprego que unicamente exige do candidato “dedos ágeis”. Lá
encontra uma porta escondida por trás de um arquivo que conduz a um escuro é
úmido túnel que o faz escorregar para dentro da mente do famoso ator John
Makovich, onde pode permanecer por 15 minutos vendo e experimentando sensações
por meio da mente hospedeira.
Passado o tempo limite, Craig é cuspido para uma
estrada na periferia da cidade. Impressionado com a descoberta, resolve montar
um negócio vendendo passagens para outras pessoas infelizes com suas próprias
vidas que desejem ser por, alguns instantes, outra pessoa.
Mas Craig percebe
que pode ter mais: aproveitando-se das suas habilidades de manipulador de
fantoches, ele descobre que pode ficar indefinidamente na cabeça de John
Malkovich, manipulando a personalidade da mente receptora até tornar-se outra
pessoa em um novo corpo e conquistar o amor da sua amante Maxine (Catherine
Keener) que o rejeita por ser um perdedor.
Mas as coisas se
complicarão para Craig quando Lott entrar na mente de Malkovich e também se apaixonar
por Maxine, criando um inusitado relacionamento lésbico por meio de um corpo
hetero e um imprevisível triângulo amoroso.
Marionetes e a condição humana
A marionete é o
símbolo principal em Quero Ser John
Malkovich. Além do simbolismo óbvio presente na narrativa (Craig - John
Cusack - utiliza-se da sua habilidade de titereiro para manipular identidades e
a marionete como paralelo à condição manipulada de John Malkovich), há um significado
mais profundo: as marionetes são descendentes diretos dos antigos ídolos
divinos, adorados e animados pelos seus sacerdotes.
Victoria Nelson
demonstrou como na cultura popular do século XX temos um aumento do fascínio
por autômatos e bonecos com o surgimento do conceito marionete-mestre (humana
ou divina) inserida dentro de uma cosmologia gnóstica das relações entre
homem/autômato e homem/deus (NELSON, Victória, The Secret Life of Puppets. Cambridge: Havard
UP, 2001).
O imaginário do fascínio humano pelos fantoches |
Esse fascínio por
autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria a maneira
pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como nos vemos
como prisioneiros dentro de um cosmos hostil. Além disso, as marionetes se
metamorfosearam, na modernidade, em figuras como robôs, ciborgues, andróides e,
mais recentemente, na hibridação do corpo humano. Só que, agora, com um
ingrediente a mais: a criação de uma mediação para a qual a consciência humana
se transfira e transcenda a prisão da carne. O anseio humano em migrar para
mediações idealmente modeladas. O filme simboliza esse anseio pelas mediações
em diversos momentos. Podemos observar isso em dois diálogos. Após Maxine
transar com Malkovich sabendo que Lotte estava na sua cabeça, provocativamente
comenta com Craig:
Craig: Você me tortura de
propósito?
Maxine: Eu me apaixonei.
Craig: Acho que não. Eu me
apaixonei, e pessoas apaixonadas ficam assim.
Maxine: Escolheu o tipo não
correspondido. Isso faz mal para a pele!
Craig: Você é má Maxine!
Maxine: Sabe como é ter duas
pessoas olhando para você, com total luxúria e devoção através do mesmo par de
olhos?
Pessoas
apaixonadas umas pelas outras, mas que necessitam de mediações para
consolidarem os relacionamentos. Uma espécie de sexo platônico onde o objeto da
paixão é visto através de olhos ideais, despertando impulsos exibicionistas em
Maxine. Ou a aspiração pelas mediações decorre da negação da condição física
atual:
Primeiro cliente da JM Inc.:
Quando dizem que posso ser outro o que querem dizer?
Craig: É exatamente o que
dissemos. Podemos colocá-lo no corpo de outra pessoa por 15 minutos.
Primeiro
cliente da JM Inc.: Posso ser quem eu quiser?
Craig: Bem, você pode ser
John Malkovich.
Primeiro cliente da JM Inc.:
Perfeito! É minha segunda escolha, mas é maravilhoso. Sou um homem gordo. Sou
triste e gordo.”
A cultura tecnológica das “Mediações”
Esta antiga busca gnóstica em transcender a carne é o
emocional subtexto por trás da eufórica reação a cada novidade em informática
no mercado e a cada website ou blog com frivolidades que é lançado.
O
cientista de computação Jaron Lernier chega a sugerir uma nova categoria
psicológica de usuários: a “nerdice”: intelectualmente busca digitalizar
qualquer distinção de qualidade, sentimento e afeto. Emocionalmente, procura
abrigo que o proteja da intimidade humana e das demandas corporais.
Alegremente, o sujeito se despoja do corpo para viver
uma fantasia de poder sem limites. Erick Felinto vai nomear este sujeito das
ciberutopias como “sujeito pneumático”, uma forma de subjetividade que se
pretende libertar dos limites do corpo, um self
quase divino e de natureza espiritual (pneuma).
Este sujeito pneumático teria as seguintes características: a comunicação total
(como anjos incorpóreos vagando pelo ciberespaço sem barreiras para
comunicar-se), por meio da “hipermediação que equivale à imediação das mídias
digitais” e a mobilidade total (veja FELINTO, Erick, “A Tecnoreligião e o
sujeito pneumático no imaginário da cibercultura”, In: Revista Alceu v.6 - n.12 - p. 115 a 125 - jan./jun. 2006).
O que temos aqui
é o tema da crise de identidade no mundo contemporâneo. Craig é um titereiro
que, embora talentoso, está desempregado. Sua esposa Lotte fala que ele deveria
arrumar um pequeno emprego. “Quem vai querer contratar um titereiro numa
economia invernal como a de hoje?”.
Como afirma Bauman (veja BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001), as profundas mudanças econômicas e gerenciais do
mundo contemporâneo nos força a viver como jogadores que devem experimentar a
identidade como “novos começos”, ou seja, trocar identidades como trocamos de
roupas – a modernidade marcada pelo fluxo e liquidez.
Portanto, no filme, Craig
passa de titereiro talentoso a arquivista na Lestercorp (por ter mãos rápidas)
e, após o trabalho, explora o “bico” de ganhar dinheiro com o portal que conduz
à cabeça de John Malkovich.
Mas, nessas três situações, há uma coisa que as une: a
busca de uma mediação que o faça transcender a sua vida frustrada e
melancólica: no começo, as marionetes e, no final, a cabeça de John Malkovich.
No primeiro caso, a transferência é simbólica, no segundo é literal: transferir
sua consciência para a Mediação.
Reencarnação e Identidade
Todos os
personagens do filme querem viver os 15 minutos na cabeça de John Malkovich. Procuram
transferir-se para uma mediação como forma de transcenderem das suas existências
infelizes. É uma parábola do espírito de final de século, onde as novas
tecnologias do virtual vão oferecer através de avatares, perfis criados em
blogs, orkuts, twitters etc. a
possibilidade de viverem outras ou múltiplas identidades. No filme os
personagens perceberão que é uma falsa gnose.
Ao contrário, o
grupo do Dr. Lester (o proprietário da empresa que possui a passagem para a
cabeça de Malkovich) procura a verdadeira gnose. Pretende alcançar a vida eterna
pregando um “pequeno” golpe no Demiurgo: driblar a lei da Reencarnação. A
mitologia gnóstica vê na reencarnação uma perversa estratégia do Demiurgo para
nos manter presos nesse mundo através do esquecimento. Condenados a recomeçar
sempre do zero, não somamos conhecimentos, esquecemos por subtração.
O grupo de
Lester alcança a imortalidade não mais reencarnando, mas transferindo a
consciência para um “corpo recipiente” na sua fase mais madura em termos de
consciência e formação mental. Eles têm até a meia-noite do dia designado para
transferirem-se, pois, caso contrário, “seriam absorvidos, presos, enjaulados
no cérebro do anfitrião, impossibilitado de controlar qualquer coisa,
sentenciados a ver o mundo através dos olhos de outra pessoa”, como afirma Dr.
Lester.
Ou seja, a prisão
da Reencarnação, tal qual denunciada pelo Gnosticismo. Enquanto Craig, Maxine e
Lotte querem transferir-se para a mediação pelo desejo de ver o mundo através
dos olhos de outras pessoas, o grupo de Lester quer mais do que isso: mantendo
intacto o núcleo da consciência, pular de um corpo para o outro alcançando a
imortalidade e mantendo a identidade.
- Título: Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich)
- Diretor: Spike Jonze
- Roteiro Charlie Kaufman
- Elenco: John Cusack, Cameron Diaz, Catherine Keener, John Malkovich
- Produção: Propaganda Films, Gramercy Pictures
- Distribuição: Columbia TriStar
- Ano: 1999
- País: EUA
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