segunda-feira, setembro 17, 2012

Hollywood e a engenharia dos sonhos dos ratos do MIT

Coincidência? A vida imita a arte? Ou simplesmente o cinema hollywoodiano é um instrumento para tornar a agenda tecno-científica atual politicamente aceitável e natural para a sociedade? Uma dupla de pesquisadores do Departamento de neurociências do MIT anunciou em artigo publicado na “Nature Neuroscience” online o sucesso na manipulação do conteúdo de sonhos em ratos. Isso abriria a perspectiva de uma “engenharia dos sonhos”: o controle amplo das memórias através de bloqueios, seleção ou alteração. Isso faz lembrar uma série de filmes cujos roteiristas anteciparam ou simplesmente replicaram essa agenda de início do século: “Quero Ser John Malkovich”, “Vanilla Sky”, “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, “Ciência dos Sonhos”, entre outros.

Foi publicado neste mês um artigo de Matthew Wilson e Daniel Bendor na edição on line da “Nature Neuroscience” intitulado “Biasing the Content of Hippocampal Reply During Sleep” (leia aqui o artigo). Os autores são, respectivamente, professor do Departamento de Neurociências e pesquisador do Instituto de Aprendizagem e Memória do MIT (Massachusetts Institute of Technology – EUA). No artigo descrevem o sucesso na manipulação dos conteúdos de sonhos de um rato. Segundo eles, a descoberta reforçaria a nossa compreensão de como a memória se consolida durante o sono, produzindo a perspectiva da criação de uma espécie de “engenharia do sonho”.

O cientista explorou a forma como o hipocampo do cérebro codifica os eventos na memória. A equipe de Wilson e Bendor treinou um grupo de ratos a percorrer um labirinto usando duas diferentes orientações sonoras, ao mesmo tempo em que eram gravadas as atividades neurais. Mais tarde, quando os ratos estavam dormindo, os pesquisadores registraram a mesma atividade neural (os ratos sonhavam com as atividades no labirinto do dia anterior). Os mesmos sinais sonoros de orientação foram tocados, quando os pesquisadores perceberam algo interessante: os ratos sonhavam com a mesma seção do labirinto correspondente ao sinal que era tocado.

Olhando para o futuro, os pesquisadores acreditam que este exemplo simples de “engenharia sonho” poderia abrir a possibilidade de um controle mais amplo do processamento da memória durante o sono - e até mesmo a noção de que as memórias podem ser selecionadas ou reforçadas, bloqueadas ou alteradas. Wilson e Bendor também apontaram para a possibilidade de se desenvolver novas abordagens à aprendizagem e à terapia comportamental através de tipos semelhantes de manipulação cognitiva.


O termo “engenharia do sonho” como a possibilidade de manipulação cognitiva do conteúdo onírico para finalidades de performance (aprendizagem, seleção, bloqueio, etc.) nos faz lembrar de uma série de filmes do início desse século onde, dentro de um universo ficcional logicamente exagerado, já antecipava essa possibilidade: “Quero Ser John Malkovich” (Being John Malkovich, 1999), “Vanilla Sky” (2001), “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004), “Sonhando Acordado” (The Good Night, 2007), “Ciência dos Sonhos” (La Sceince Dês Revês, 2006), “Alice no País das Maravilhas” (2010) de Tim Burton, “A Origem” (Inception, 2010) e a série televisiva “O Prisioneiro” (The Prisoner, 2009), só para ficar nessa pequena amostragem dos mais conhecidos.

Cartografias e topografias
mentais em dois diagramas 

e gráficos do artigo da
"Nature Neuroscience".
Na foto: mapeamento mental da
Lacuna Inc. no filme "Brilho
Eterno de Uma Mente
Sem Lembranças"
Todos esses filmes parecem empreender um mapeamento, uma cartografia e uma topografia do mundo mental, algo semelhante à pesquisa do MIT sobre a “engenharia do sonho”. Uma verdadeira geografia alegórica dos processos mentais (sonhos, devaneios, pensamentos, emoções etc.). Por exemplo, em “Vanilla Sky” vemos, próximo ao final do filme, a revelação de que o protagonista David Aymes vive em um “sonho lúcido” criado a partir de um mapeamento das referências afetivas e emocionais feitas dentro do repertório imagético dele: filmes preferidos, musicas, bandas de rock e fragmentos diversos da cultura pop. 

O “sonho lúcido” do protagonista seria como um trajeto sentimental através das suas memórias.

Na série O Prisioneiro uma verdadeira cartografia da mente coletiva das pessoas que necessitam ser “consertadas” através de uma radical técnica neurocientífica: transportar o Eu para uma realidade paralela consensual (“A Vila”). Todos levam uma vida dupla: enquanto seus “Eus” conscientes habitam o mundo real, simultaneamente seus “eus” inconscientes vivem o cotidiano bucólico da Vila. Dessa forma seus “eus” inconscientes são “consertados” na Vila através de uma agenda de valores “positivos” levada a cabo pelo líder da cidade.

Já no filme “A Origem”, temos uma topografia elaborada da geografia mental: diversos níveis dos sonhos sobrepõem-se, cada um com seu fuso horário distinto, produzindo uma arquitetura semelhante a um hipertexto ou a narrativa de um game de computador com diversos níveis como etapas.

Se em “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” vemos a empresa Lacuna Inc. vendendo serviços de mapeamentos mentais para deletar memórias infelizes sob a perspectiva de um novo recomeço para corações partidos, em uma incrível sincronicidade Bentor e Wilson abrem a perspectiva de intervenções no mapeamento das memórias a partir da janela aberta dos sonhos: os pesquisadores do MIT falam em “bloqueio”, “seleção” e “reforço” de conteúdos.

Sincronicidade entre Cinema e Agenda Tecnognóstica


O que está por trás dessa sincronicidade entre a recorrência temática da cartografia e topografia da mente nos filmes recentes e a agenda tecnológica tecnognóstica - o esforço multidisciplinar envolvendo as neurociências e ciências cognitivas para desvendar um dos últimos grandes mistérios da ciência: o funcionamento da mente humana e a natureza da consciência?

A primeira hipótese vem de uma expressão que, de tão repetida, tornou-se um clichê: “a vida imita a arte”. Será que a agenda de pesquisadores e cientistas poderia se inspirar nos conteúdos ficcionais dos principais roteiristas de Hollywood? A analogia culinária feita por Gondry na primeira sequência de “Ciência dos Sonhos” – os ingredientes dos sonhos associados a itens culinários e condimentos que são acrescentados a uma panela dentro de um show televisivo no interior da mente – poderia inspirar esse anseio pragmático de manipulação de sonhos e memórias no mundo real dos Institutos de neurociências?

A empresa Lacuna Inc. de “Brilho Eterno...” teria inspirado a pesquisa da dupla Bentor e Wilson no Departamento de Neurociências do MIT?

Segunda e conspiratória hipótese: pensar Hollywood como um braço estratégico de uma verdadeira “agenda setting” para promover junto à opinião pública a agenda tecnológica estratégica dos EUA, tornando os seus objetivos naturais e aceitáveis. Sabemos que desde a Segunda Guerra Mundial, Hollywood e MIT formaram uma espécie de complexo propagandístico-científico-militar para a política externa norte-americana. De um lado os filmes patrióticos, a promoção dos novos heróis pós-depressão econômica de um país revitalizado pela vitória na Segunda Guerra Mundial e a “política de Boa Vizinhança” com Carmem Miranda e Zé Carioca para agradar os “amigos do Sul”; do outro o desenvolvimento de novas tecnologias para aplicação militar pelo MIT – o esforço da Teoria da Informação e Cibernética de Shannon, Weaver e Wiener nas décadas de 1940-50 e suas aplicações como radar, computadores e “armas inteligentes”.

Mas tudo isso foi ainda dentro do cenário da Guerra Fria. Com o fim da ameaça simbólica do Comunismo passam a se sofisticar os processos de controle e vigilância internos dos cidadãos: o inimigo pode estar ao lado na figura do terrorista (islâmico ou mesmo de algum supremacista branco ou fundamentalista de direita).

"A Rede" (1995)
No final do século passado temos a profusão de filmes onde “Matrix” (1999) foi o ápice: filmes sintonizados com a euforia tecnológica computacional e o fascínio por realidade virtual (RV) e mundos simulados por tecnologias onipresentes e oniscientes capazes de criar simulações tão perfeitas onde os limites entre real/virtual se apagariam. É a época da euforia pela Internet e RV onde mesmo distopias como “Matrix” ou “A Rede” (The Net, 1995 – a possibilidade do cidadão ser integralmente vigiado e controlado através da Internet) preparavam a opinião pública para os novos tempos que viriam: novas formas de socialização por meio de redes sociais, games e mundos simulados como “Second Life”.

A mente como máquina cognitiva


A generalização da computação ofereceu um modelo de funcionamento da mente muito mais pragmático do que o modelo do psiquismo freudiano com suas complexas leituras dos sonhos por meio de condensações e deslocamentos. A mente poderia ser reduzida a uma máquina cognitiva análoga a computadores – input, output, processamento, memória etc.

Se a mente é uma questão de assimilação, processamento, codificação de informações na memória, torna-se tentadora a possibilidade prática de realizar uma cartografia (mapeamento da mente) e uma topografia (um mapeamento 3D das redes neuronais) para objetivos bem pragmáticos – primeiro na esfera micro ou pessoal: libertar-se de barreiras, constrangimentos ou traumas para ser uma pessoa mais assertiva, moralmente leve e sem culpas, liberar as potencialidades latentes e tornar-se um profissional ou pessoa bem sucedida.

E na esfera macro a engenharia social, monitoramento e controle através do mapeamento dos fluxos de dados em uma Internet pensada e organizada como redes neuronais.

De qualquer forma, em ambas as hipóteses o universo ficcional da arte parece que sempre se antecipou à realidade. Veja, por exemplo, a arte surrealista e expressionista do início do século XX que pela primeira vez materializou em imagens o universo dos sonhos. Antecipou o que hoje a publicidade e a indústria do entretenimento fazem diariamente através de efeitos especiais digitais, montagem e edição.

A diferença em relação ao cinema hollywoodiano é que roteiristas, diretores e produtores parecem estar antenados e, quase que simultaneamente, antecipam ou replicam a agenda tecnológica atual baseada no esforço das neurociências em criar modelos de funcionamento da mente e da consciência. E os sonhos são as principais janelas de acesso à alma, tanto para o cinema quanto para as neurociências. 

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