Coincidência? A vida
imita a arte? Ou simplesmente o cinema hollywoodiano é um instrumento para
tornar a agenda tecno-científica atual politicamente aceitável e natural para a
sociedade? Uma dupla de pesquisadores do Departamento de neurociências do MIT
anunciou em artigo publicado na “Nature Neuroscience” online o sucesso na
manipulação do conteúdo de sonhos em ratos. Isso abriria a perspectiva de uma “engenharia
dos sonhos”: o controle amplo das memórias através de bloqueios, seleção ou
alteração. Isso faz lembrar uma série de filmes cujos roteiristas anteciparam
ou simplesmente replicaram essa agenda de início do século: “Quero Ser John
Malkovich”, “Vanilla Sky”, “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, “Ciência
dos Sonhos”, entre outros.
Foi publicado neste mês um artigo de Matthew Wilson e Daniel
Bendor na edição on line da “Nature
Neuroscience” intitulado “Biasing the Content of Hippocampal Reply During Sleep”
(leia aqui o artigo). Os autores são, respectivamente, professor do Departamento
de Neurociências e pesquisador do Instituto de Aprendizagem e Memória do MIT
(Massachusetts Institute of Technology – EUA). No artigo descrevem o sucesso na
manipulação dos conteúdos de sonhos de um rato. Segundo eles, a descoberta
reforçaria a nossa compreensão de como a memória se consolida durante o sono,
produzindo a perspectiva da criação de uma espécie de “engenharia do sonho”.
O cientista explorou a forma como o hipocampo do cérebro
codifica os eventos na memória. A equipe de Wilson e Bendor treinou um grupo de
ratos a percorrer um labirinto usando duas diferentes orientações sonoras, ao
mesmo tempo em que eram gravadas as atividades neurais. Mais tarde, quando os
ratos estavam dormindo, os pesquisadores registraram a mesma atividade neural
(os ratos sonhavam com as atividades no labirinto do dia anterior). Os mesmos
sinais sonoros de orientação foram tocados, quando os pesquisadores perceberam
algo interessante: os ratos sonhavam com a mesma seção do labirinto correspondente
ao sinal que era tocado.
Olhando para o futuro, os pesquisadores acreditam que este
exemplo simples de “engenharia sonho” poderia abrir a possibilidade de um
controle mais amplo do processamento da memória durante o sono - e até mesmo a
noção de que as memórias podem ser selecionadas ou reforçadas, bloqueadas ou
alteradas. Wilson e Bendor também apontaram para a possibilidade de se desenvolver
novas abordagens à aprendizagem e à terapia comportamental através de tipos
semelhantes de manipulação cognitiva.
O termo “engenharia do sonho” como a possibilidade de
manipulação cognitiva do conteúdo onírico para finalidades de performance
(aprendizagem, seleção, bloqueio, etc.) nos faz lembrar de uma série de filmes
do início desse século onde, dentro de um universo ficcional logicamente
exagerado, já antecipava essa possibilidade: “Quero Ser John Malkovich” (Being
John Malkovich, 1999), “Vanilla Sky” (2001), “Brilho Eterno de uma Mente Sem
Lembranças” (2004), “Sonhando Acordado” (The Good Night, 2007), “Ciência dos
Sonhos” (La Sceince Dês Revês, 2006), “Alice no País das Maravilhas” (2010) de
Tim Burton, “A Origem” (Inception, 2010) e a série televisiva “O Prisioneiro”
(The Prisoner, 2009), só para ficar nessa pequena amostragem dos mais
conhecidos.
Cartografias e topografias mentais em dois diagramas e gráficos do artigo da "Nature Neuroscience". Na foto: mapeamento mental da Lacuna Inc. no filme "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças" |
Todos
esses filmes parecem empreender um mapeamento, uma cartografia e uma topografia
do mundo mental, algo semelhante à pesquisa do MIT sobre a “engenharia do sonho”.
Uma verdadeira geografia alegórica dos processos mentais (sonhos, devaneios,
pensamentos, emoções etc.). Por exemplo, em “Vanilla Sky” vemos, próximo ao final
do filme, a revelação de que o protagonista David Aymes vive em um “sonho
lúcido” criado a partir de um mapeamento das referências afetivas e emocionais
feitas dentro do repertório imagético dele: filmes preferidos, musicas, bandas
de rock e fragmentos diversos da cultura pop.
O “sonho lúcido” do protagonista
seria como um trajeto sentimental através das suas memórias.
Na série O
Prisioneiro uma verdadeira cartografia da mente coletiva das pessoas que
necessitam ser “consertadas” através de uma radical técnica neurocientífica:
transportar o Eu para uma realidade paralela consensual (“A Vila”). Todos levam
uma vida dupla: enquanto seus “Eus” conscientes habitam o mundo real,
simultaneamente seus “eus” inconscientes vivem o cotidiano bucólico da Vila. Dessa
forma seus “eus” inconscientes são “consertados” na Vila através de uma agenda
de valores “positivos” levada a cabo pelo líder da cidade.
Já no
filme “A Origem”, temos uma topografia elaborada da geografia mental: diversos
níveis dos sonhos sobrepõem-se, cada um com seu fuso horário distinto,
produzindo uma arquitetura semelhante a um hipertexto ou a narrativa de um game
de computador com diversos níveis como etapas.
Se em “Brilho
Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” vemos a empresa Lacuna Inc. vendendo
serviços de mapeamentos mentais para deletar memórias infelizes sob a
perspectiva de um novo recomeço para corações partidos, em uma incrível sincronicidade
Bentor e Wilson abrem a perspectiva de intervenções no mapeamento das memórias
a partir da janela aberta dos sonhos: os pesquisadores do MIT falam em “bloqueio”,
“seleção” e “reforço” de conteúdos.
Sincronicidade entre Cinema e Agenda Tecnognóstica
O que está por
trás dessa sincronicidade entre a recorrência temática da cartografia e
topografia da mente nos filmes recentes e a agenda tecnológica tecnognóstica - o esforço multidisciplinar
envolvendo as neurociências e ciências cognitivas para desvendar um dos últimos
grandes mistérios da ciência: o funcionamento da mente humana e a natureza da
consciência?
A primeira hipótese
vem de uma expressão que, de tão repetida, tornou-se um clichê: “a vida imita a
arte”. Será que a agenda de pesquisadores e cientistas poderia se inspirar nos
conteúdos ficcionais dos principais roteiristas de Hollywood? A analogia
culinária feita por Gondry na primeira sequência de “Ciência dos Sonhos” – os
ingredientes dos sonhos associados a itens culinários e condimentos que são
acrescentados a uma panela dentro de um show televisivo no interior da mente –
poderia inspirar esse anseio pragmático de manipulação de sonhos e memórias no
mundo real dos Institutos de neurociências?
A empresa Lacuna
Inc. de “Brilho Eterno...” teria inspirado a pesquisa da dupla Bentor e Wilson
no Departamento de Neurociências do MIT?
Segunda e
conspiratória hipótese: pensar Hollywood como um braço estratégico de uma
verdadeira “agenda setting” para promover junto à opinião pública a agenda
tecnológica estratégica dos EUA, tornando os seus objetivos naturais e
aceitáveis. Sabemos que desde a Segunda Guerra Mundial, Hollywood e MIT
formaram uma espécie de complexo propagandístico-científico-militar para a
política externa norte-americana. De um lado os filmes patrióticos, a promoção
dos novos heróis pós-depressão econômica de um país revitalizado pela vitória
na Segunda Guerra Mundial e a “política de Boa Vizinhança” com Carmem Miranda e
Zé Carioca para agradar os “amigos do Sul”; do outro o desenvolvimento de novas
tecnologias para aplicação militar pelo MIT – o esforço da Teoria da Informação
e Cibernética de Shannon, Weaver e Wiener nas décadas de 1940-50 e suas
aplicações como radar, computadores e “armas inteligentes”.
Mas tudo isso foi
ainda dentro do cenário da Guerra Fria. Com o fim da ameaça simbólica do
Comunismo passam a se sofisticar os processos de controle e vigilância internos
dos cidadãos: o inimigo pode estar ao lado na figura do terrorista (islâmico ou
mesmo de algum supremacista branco ou fundamentalista de direita).
"A Rede" (1995) |
No final do
século passado temos a profusão de filmes onde “Matrix” (1999) foi o ápice:
filmes sintonizados com a euforia tecnológica computacional e o fascínio por
realidade virtual (RV) e mundos simulados por tecnologias onipresentes e
oniscientes capazes de criar simulações tão perfeitas onde os limites entre
real/virtual se apagariam. É a época da euforia pela Internet e RV onde mesmo
distopias como “Matrix” ou “A Rede” (The Net, 1995 – a possibilidade do cidadão
ser integralmente vigiado e controlado através da Internet) preparavam a
opinião pública para os novos tempos que viriam: novas formas de socialização
por meio de redes sociais, games e mundos simulados como “Second Life”.
A mente como máquina cognitiva
A generalização
da computação ofereceu um modelo de funcionamento da mente muito mais
pragmático do que o modelo do psiquismo freudiano com suas complexas leituras
dos sonhos por meio de condensações e deslocamentos. A mente poderia ser reduzida
a uma máquina cognitiva análoga a computadores – input, output,
processamento, memória etc.
Se a mente é uma
questão de assimilação, processamento, codificação de informações na memória,
torna-se tentadora a possibilidade prática de realizar uma cartografia
(mapeamento da mente) e uma topografia (um mapeamento 3D das redes neuronais) para
objetivos bem pragmáticos – primeiro na esfera micro ou pessoal: libertar-se de barreiras,
constrangimentos ou traumas para ser uma pessoa mais assertiva, moralmente leve
e sem culpas, liberar as potencialidades latentes e tornar-se um profissional
ou pessoa bem sucedida.
E na esfera macro a engenharia social, monitoramento e controle através
do mapeamento dos fluxos de dados em uma Internet pensada e organizada como
redes neuronais.
De qualquer forma, em ambas as hipóteses o universo ficcional da arte
parece que sempre se antecipou à realidade. Veja, por exemplo, a arte surrealista
e expressionista do início do século XX que pela primeira vez materializou em
imagens o universo dos sonhos. Antecipou o que hoje a publicidade e a indústria
do entretenimento fazem diariamente através de efeitos especiais digitais,
montagem e edição.
A diferença em relação ao cinema hollywoodiano é que roteiristas,
diretores e produtores parecem estar antenados e, quase que simultaneamente,
antecipam ou replicam a agenda tecnológica atual baseada no esforço das
neurociências em criar modelos de funcionamento da mente e da consciência. E os
sonhos são as principais janelas de acesso à alma, tanto para o cinema quanto
para as neurociências.
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